08/02/2023 08h10 - Atualizado 08/02/2023 08h10

Artigo- A Finalidade Absoluta do Direito Penal

Por Terezinha
para IARGS
Artigo do Desembargador Marco Aurélio Costa Moreira de Oliveira,
Autor de Justiça e Ética – Ensaios sobre o uso das Togas
Membro do Conselho Superior do IARGS
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Nossa Constituição sempre deve ser examinada a partir de seu preâmbulo. Nele encontramos direções essenciais para reconhecer as linhas ideológicas que orientam a Ordem Jurídica, destinadas a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais como valores supremos.
 
Ao exame de suas linhas fundamentais, existentes a seguir em seu no artigo 5º, fica estabelecido devam ser protegidas, a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade. Isto é, os bens da maior importância por sua ontologia e por seu relevo jurídico.
 
Segundo esses bens, o Estado deverá defender e patrocinar as obrigações estabelecidas constitucionalmente para garantir aos indivíduos os direitos e deveres decorrentes das regras jurídico-constitucionais, contidas nos setenta e oito incisos do referido artigo quinto.
 
O Legislativo, na elaboração das leis, e a administração, na edição de normas de sua competência, são exemplos dessa adequação aos princípios da isonomia, da legalidade, da liberdade de pensamento e de palavras, da democracia adotada, da casa como refúgio das pessoas, da conduta de ir e vir, do sigilo de correspondência, e de tantos outros bens, em favor das pessoas e da harmonia social.
 
Na defesa dos direitos, tanto os constantes do artigo quinto e incisos, como também os das leis editadas e normas complementares, o Estado é chamado a garanti-los, devendo, para isso, organizar-se, previamente. Em sua atuação, cabe estabelecer, primordialmente, a distinção entre os direitos privados e os direitos públicos, segundo suas próprias naturezas.
 
Quanto aos direitos privados, deve-se usar o arsenal jurídico posto à disposição de pessoas jurídicas e indivíduos, bem como, em certos casos, ao adotar renúncias ou abdicações de faculdades.
 
Fazem parte desse arsenal jurídico de direito privado vários ramos a orientar seus titulares, bem como de pessoas que à ordem jurídica deve obediência, de servidores públicos, de custos legis e de aplicadores dos direitos desses ramos jurídicos.
 
Aqui, quanto aos direitos privados, encontramos matérias cíveis, leis comerciais, direitos do trabalho, regulações empresariais, disposições agrárias, direitos do consumidor e todas as normas sobre os direitos individuais.
 
Em paralelo aos direitos privados, encontram-se os direitos públicos, em cujo âmbito estão a normatividade sobre a administração pública. Nos direitos públicos, em geral, constituem-se, por exemplo, as normas tributárias, a ampla legislação eleitoral, as normas processuais assecuratórias dos direitos das partes em juízo e, finalmente, as normas punitivas dentre as quais sobressai o Direito Penal. Nele encontram-se, em toda sua abrangência, as garantias das pessoas, a harmonia da sociedade e do estado como regulador e garantidor do direito e da ordem jurídica, tudo segundo o princípio da ofensividade.
 
Na organicidade penal, encontram-se os bens que se apresentam como essenciais e intrinsecamente necessários. São eles devidamente indicados, nominados e descritos na elaboração das normas do Direito Penal, quanto aos bens a serem por ele protegidos. Exemplificativamente, cita-se a vida, a liberdade, a honra, o patrimônio público, privado e social, bem como o próprio poder do estado, formulando-se, pelo estado-legislador, as normas descritivas que os garantam.
 
Ou seja, o Direito Penal protege bens individuais e sociais, por serem sagrados, ou como se diz em literatura, diante da sua sacralidade. Por isso, o legislador os enumera, explicitamente, em leis punitivas. O estado organizado reage ao sofrer danos ou lesões. Por isso, inspirado pelo princípio da ofensividade, trata de cominar penas que incidam em relação aos agentes que, com seus atos, ofendam tais bens.
 
Ao nominar os bens a serem protegidos, descreve condutas que se ligam ao dano realizado, numa necessária relação de causalidade. Para tanto, utilizam-se descrições dessas condutas na primeira parte de normas protetivas, isto é, na parte que os juristas denominam de preceito ou preceito criminal.
 
A seguir, prevê uma sanção a ser imposta aos agentes que praticaram as condutas referidas no preceito e suas consequências, segundo dispõe a lei editada. A sanção é a reação própria contra a ofensa ao bem. A Ordem Jurídica vale-se, em consequência, da sanção denominada pena pelo poder punitivo, mas ainda não aplicável, pois somente cominada, ou seja de modo abstrato.
 
Nessa fase de atuação, a pena in abstracto figura como simples ameaça de aplicação, se o agente vier a atuar segundo os moldes fácticos do preceito criminal. Portanto, as normas punitivas fazem parte do denominado Direito Penal.
 
Essas normas penais, portanto, apresentam duas partes, como se salientou anteriormente: (a) o preceito que descreve condutas e o dano causado aos bens protegidos por sua sacralidade, (b) a sanção caracterizada pela pena cominada (abstratamente).
 
Ao exame interno do preceito, encontra-se um elemento central, constituído de um verbo definidor da conduta, denominado elemento nuclear, como por exemplo consta dos verbos, matar, lesionar, subtrair, enganar, afrontar, omitir, falsificar etc.
 
Em torno do verbo centralizador da conduta, engastam-se outros elementos descritivos ou ligados ao núcleo verbal. Temos, como exemplos, o que seja coisa alheia móvel no núcleo subtrair, o alguém que vem a ser morto no homicídio, ou lesionado nas lesões corporais, a vantagem patrimonial ou social ao enganar, a liberdade afrontada ao ameaçar, a vantagem no desvio de bem público etc.
 
O preceito é estabelecido como instrumento de impressão gráfica, denominado de tipo, igual a um tipo metálico, usado para impressões de palavras. Daí ter nascido a expressão jurídico-penal denominada de tipicidade. Isto é, a lei penal, em relação a uma conduta, vem marcada pela tipicidade do fato, pois se amolda exatamente ao tipo da lei. Além disso, individualiza os bens protegidos pela ameaça de pena.
 
Exemplificativamente, temos bens como a integridade corporal, a honra, o patrimônio público, o meio ambiente, a saúde pública, a liberdade, a correspondência, o patrimônio individual, social e público, a proteção à conduta, igual ao tipo protetivo de bens, amoldando-se exatamente ao tipo penal do preceito. Assim, teremos o tipo de conduta, ou seja, um fato penalmente relevante, previsto na lei penal. E esse fato é tão relevante que sobre ele está estabelecida a sanção denominada pena que o tipo comina in abstracto.
 
Diante dessa situação jurídica, cabe o exame da lei, aplicável ante a existência de fato que reproduza o preceito e a sanção penal cominada. A própria Constituição, para impor a lei, estabelece, em seu art. 5º, inciso 39, o princípio da legalidade, sendo obrigatório que crime somente exista como fato punível, se lei vier definido em lei pela prévia cominação legal.
 
Cabe aqui uma observação. O fato e o tipo devem apresentar uma perfeita coextensividade, sendo que só assim fica configurada a tipicidade da conduta.
 
Além do disposto na Constituição, outras normas existem que trazem alterações na tipicidade, tanto no preceito como na pena aplicável. O art.14, II diz respeito ao crime tentado, com modificação da pena cabível. O art. 18 cria uma diferença entre crime doloso e crime culposo, com penas diferenciadas, ante modificações da tipicidade. Vários artigos podem ser invocados como modificativos do tipo em crimes omissivos e comissivos e nas excludentes de criminalidade ou de culpabilidade, que desfazem a incidência da lei penal.
 
Ou seja, até aqui tratou-se do Direito Penal individualizado. Cabe outra investigação. As leis penais e o Direito Penal estão incorporados à Ordem Jurídica que, por sua abrangência, deve ser respeitada sempre que se tratar das bases fundamentais desse conjunto, desse arcabouço juridicamente completo.
 
Pelo Direito Penal, pretende-se proteger bens fundamentais, isto é, bens com conteúdo de sacralidade, como se diz em literatura. Esses bens respeitam ao ser humano e a seus fins naturais e sociais, a serem entendidos como as finalidades humanas e segundo a harmonia social que não pode ser afrontada.
 
Surge, então, a necessidade de sua proteção contra os danos e as lesões que as condutas produzem. Isto é, surge o princípio da lesividade que já se aludira. Por isso, afirma-se que o Direito Penal se vincula a esse princípio obrigatório para que a sanção penal seja aplicada. Assim, inexistindo lesão, como exige o princípio da lesividade, inaplicáveis serão as normais penais.
 
(Disso nascem controvérsias sobre “crimes de mera conduta” e “crimes de perigo abstrato”. São eles diferentes dos crimes de perigo concreto, em que o princípio da lesividade e o dano emergente são reais).
 
En passant, cabe indicar que, dentro da Ordem Jurídica e do Direito Penal, há de se cuidar, também, de normas internacionais auxiliares da aplicação de nosso direito interno, citando-se, como contributo o Pacto de São José da Costa Rica, admitido no Brasil pelo Decreto 678 (6.11.92) em seu art. 9º e o Estatuto de Roma (24.11.2002) sobre o Tribunal Penal Internacional. Neste último, cabe citar, até como excelente fonte interpretativa, seu art. 66, item 3, que estabelece: “Para proferir sentença condenatória, o Tribunal deve estar convencido de que o acusado é culpado, além de qualquer dúvida razoável”. Aqui, o Estatuto exige certeza sobre um fato criminal.
 
Tudo examinado, chega-se à Lei Penal e aos bens por ela protegidos, ou seja, todos os que são nela são inscritos e apresentam um valor intrínseco, fundamental. São eles portadores de uma finalidade sendo essa finalidade que outorga valor aos bens contidos nas leis penais e em sua tipicidade. Esse valor, como ensinou o Professor Armando Câmara, é o próprio ser visionado racionalmente numa perspectiva de finalidade. Ou seja, o valor de um bem decorre de sua finalidade, pois o aspecto ontológico ou natural dos seres apresenta sempre sua axiologia ou finalismo incontestáveis. Disso decorre o valor dos bens contidos no Direito Penal e nas leis que estabelecem normas incriminadoras puníveis.
 
O Direito Penal e esse conjunto legislativo fazem parte da própria natureza humana, vinculada à proteção da vida, aos direitos do homem e à harmonia social, ligada às concepções sobre o justo com o qual sempre se preocupa a legislação e a ordem jurídica.
 
Examinando-se as leis penais, sempre se encontrarão relacões interpessoais, diferentes das condutas meramente pessoais mais adstritas ao campo da moral. O Direito Penal, por todo o exposto, faz parte da própria natureza humana, vinculada, por exemplo, à proteção da vida, dos direitos do homem e da harmonia social (como a isonomia, os pensamentos, as palavras, o ir e vir, o trabalho e a natureza das coisas) pois diz respeito ao justo, conceito com o que sempre se preocupa o Estado Legislador.
 
Assim, examinando-se as leis penais, sempre se encontrará a existência de relacionamentos interpessoais, diferentes das ações pessoais mais adstritas ao campo da moral.
 
O relacionamento interpessoal, quando for ofensivo a um bem e a sua natureza intrínseca ou essência natural, afeta a finalidade do bem ofendido, com necessária resposta do Direito Penal, segundo o princípio da ofensividade.
 
O valor do Direito Penal decorre axiologicamente de sua finalidade, sempre vinculada ao sentimento de que sua atuação deve ser justa, pois, para isso, há o direito penalmente punitivo, jamais injusto por sua natureza.
 
O relacionamento interpessoal, quando for ofensivo a um bem e a sua natureza intrínseca, afeta a finalidade do bem ofendido, com necessária resposta do Direito Penal, segundo o princípio da ofensividade que “chama”, isto é que atrai a atuação do Direito Penal, para o qual essa atuação sempre será satisfazer o anseio social.
 
Surge, então, um valor acima de todos os demais até aqui abordados. Esse valor máximo, intangível, necessário e inquestionável para o qual existe o Direito Penal, encontra-se, de modo definitivo, num valor supremo denominado de Justiça. É ela a finalidade absoluta desse ramo jurídico, pois, se não houver Justiça, não pode haver Direito Penal, destinado ele a manter a organização e a harmonia social por todos pretendida. O definitivo fundamento para a Ordem Jurídica é que nela se estabeleça a Justiça no Direito Penal, por suas qualidades incontestáveis, evidentes, absolutas, indiscutíveis e irrefutáveis, assim reconhecidas por todos.
 
Se a aplicação do Direito Penal não fizer Justiça, não haverá o Direito Penal almejado por todos para a segurança da vida social. Daí acentuarmos que é a Justiça a finalidade absoluta do Direito Penal.

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