Violência Política, Lawfare de Gênero e a Lei 14.192/21.
para IARGS
Em agosto, a Lei n.º 14.192/2021, que alterou o Código Eleitoral e tornou crime a violência política de gênero contra a mulher, completou três anos. De acordo com ela, a violência política de gênero pode ser definida como toda e qualquer ação, conduta ou omissão cuja finalidade seja impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher. O texto normativo também qualificou expressamente como atos de violência política contra mulher, qualquer distinção, exclusão ou restrição no reconhecimento, no gozo, ou no exercício de seus direitos e liberdades políticas fundamentais que tenha como motivação o gênero da candidata ou detentora de mandato eletivo. O que inclui, na forma do art. 326-B, assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçá-la, por qualquer meio, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à sua condição de mulher.
Essa legislação tem como marco principal a criminalização de ações que menosprezem ou discriminem a condição feminina a fim de impedir e/ou dificultar a campanha eleitoral ou o desempenho do mandato eletivo pela mulher. A alteração legislativa previu, ainda, não ser necessária a ocorrência de uma agressão física para a consumação das novas tipificações, bastando que o ato ou omissão, comprovadamente, repercuta nas esferas psicológicas, ou simbólicas da candidata/eleita atacada. E, ainda, considerou como causa de aumento de pena o fato da violência ser praticada contra mulher com mais de 60 anos, gestante ou “com deficiência”. Porém, para além das formas de violência política de gênero que estão explícitas na legislação, atualmente, nós temos enfrentado um fenômeno sutil, mas talvez até mesmo mais prejudicial do que as condutas tipificadas pela legislação eleitoral.
Esse fenômeno é denominado Lawfare de Gênero, termo que combina duas palavras em inglês: “law” que significa “lei” e “warfare” que pode ser traduzido, de modo simplista, como “meio de guerra”. Trata-se de conceito que diz respeito ao uso de demandas judiciais ou manobras legais destinadas a, do mesmo modo, silenciar, limitar, ou deslegitimar a atuação das mulheres no âmbito político. Ele também ocorre quando adversários se utilizam dos meios legais para, de modo indireto ou velado, praticar condutas de subjugação às mulheres e às suas ações para, assim, comprometer ou desqualificá-las. Quando recursos, em tese, legítimos, são utilizados a fim de desgastar sua imagem pessoal, o conteúdo de sua campanha e/ou suas práticas enquanto detentora de mandato com o objetivo exclusivo de direcioná-las à desistência da vida pública.
O Lawfare de Gênero é uma prática que não apenas afeta e impacta diretamente aquelas mulheres que exercem mandatos políticos, ou se encontram presentes em campanhas eleitorais, mas que, sobretudo, reforça – contra todas as demais – as barreiras, ainda invisíveis, que seguem perpetuando a exclusão feminina dos espaços de decisão. E essa violência simbólica, muitas vezes, não é sequer percebida, justamente porque operada, ao menos, aparentemente, nos limites da legalidade. Um caso recente que bem ilustra a sutileza deste sistema, ocorreu, no Rio Grande do Sul, quando uma advogada gestante teve suas prerrogativas violadas ao ver indeferido seu requerimento de preferência para a realização de uma sustentação oral durante uma sessão virtual realizada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Neste caso específico, apesar da preferência se tratar de um direito garantido por lei, o magistrado que conduzia os trabalhos indeferiu repetidamente a postulação da advogada e a obrigou a esperar, aproximadamente, sete horas até que ela pudesse se manifestar.
Esse tipo de tratamento, refletido na forma como são conduzidos determinados processos, atesta como o Lawfare de Gênero pode atuar, de modo silente e nefasto no plano jurisdicional, prejudicando não apenas o exercício dos direitos das mulheres advogadas, mas também das partes e das vítimas. A esse respeito, destaca-se também o caso, nacionalmente conhecido, envolvendo Mariana Ferrer – especialmente no que tange à forma como foi conduzida a audiência de instrução do processo que versava sobre a prática, em tese do crime de estupro. Conforme amplamente divulgado pela mídia, durante a oitiva, a vítima sofreu, por intermédio da forma como o advogado do réu realizava seus questionamentos, reiterados abusos simbólicos. Isso porque, após ser amplamente criticada e desqualificada pelo procurador, também teve que lidar com a omissão do julgador e do promotor de justiça que se encontravam na solenidade e nada fizeram a fim de coibir os ataques.
Quando casos como esses ocorrem, inevitavelmente, acabam por repercutir sobre a forma como outras mulheres poderão interpretar ou, até mesmo, reagir acaso se deparem com situações semelhantes. O potencial de silenciamento de outras vítimas, ou até mesmo de profissionais que se vejam frente à violação de seus direitos – exclusivamente pelo fato de serem mulheres – ao enfrentar o real formato de funcionamento do sistema de Justiça em determinadas situações, é imenso e não deve ser subestimado, já que pode, até mesmo, afastá-las do enfrentamento de questões que reflitam diretamente em sua dignidade, intimidade, direito à vida, a saúde e tantos outros.
Nesse contexto, é imperativa a apropriação da noção de que, enquanto advogados, operadores do Direito, e, principalmente, cidadãos, temos o dever de transcender a pura e simples análise e aplicação da Lei a fim de nos colocarmos como instrumento de efetivação dos direitos das mulheres, especialmente em relação à participação feminina nos espaços de decisão. É necessária a consciência coletiva de que, temos no exercício da advocacia – combativa e consciente – significativo instrumento capaz de viabilizar a transposição das barreiras contra as quais lutamos, ressignificando os desafios enfrentados por aquelas que buscam transformar a realidade política, institucional e social em que inseridas. Embora importantes, sabemos que as leis, sozinhas, não são capazes de alterar o mundo em que vivemos. Por isso, nossa voz e nosso conhecimento devem ser utilizados, com força máxima, nas batalhas destinadas à modificação das estruturas que seguem perpetuando a desigualdade de gênero.
Somente com o compromisso íntimo e individual de homens e mulheres, será possível superar os obstáculos que, diariamente, têm sido enfrentados por nós na busca de nossos direitos. E, assim, garantir que em um futuro, talvez não tão distante, possamos exercer nossa cidadania, liderança e participação política com igualdade, plenitude e o mais importante: sem o medo constante de sermos silenciadas, atacadas ou desqualificadas pelo simples fato de sermos quem somos. Mudar este cenário não será possível somente com a criação de lei ou tipificação de condutas, infelizmente. Mas apenas quando a sociedade, em sua totalidade, tiver alterado o modo como percebe e valoriza o papel e a atuação das mulheres nos espaços de decisão. Eis aqui a nossa árdua missão.
Simone Camargo Padilha
Advogada, há mais de 25 anos, associada do IARGS, Doutoranda em Direito Constitucional e ex-Procuradora Municipal