Tributação e o Processo Legislativo
para IARGS
A inevitabilidade da tributação como forma de sustentação do Estado é inquestionável. Nesse contexto, a lógica é simples: quanto mais o Estado gasta, mais o Estado precisa arrecadar. A afirmação pode soar pejorativa; contudo, em um Estado Democrático de Direito, é incontestável a necessidade de gastos públicos. A discussão, por sua vez, pode — e deve — concentrar-se no tamanho do Estado e nos direitos que ele deve garantir.
Nessa toada, até mesmo os maiores defensores de um Estado mínimo reconhecem a fala da existência de um dever fundamental de pagar tributos como forma de sustentação do Estado, uma vez que a própria garantia dos direitos de liberdade impõe um custo estatal, por exemplo.
Destinar parte de recursos privados para o Estado através da tributação parece não agradar ninguém. Em países subdesenvolvidos, no entanto, a irresignação parece ser maior na medida em que a tarefa estatal é executada de forma falha e o tamanho da máquina pública muitas vezes é questionado.
A lógica imposta é a seguinte: o Estado tributa porque precisa e o cidadão quer destinar o menor valor possível de seus recursos ao Estado seja por descrédito no sistema, seja por carência econômica, seja mesmo por motivos egoísticos.
Nessa briga de gato e rato, juristas são desafiados a defender certezas dentro do Direito Tributário. Tudo é questionável e aquele que não questiona coloca-se em posição de extrema desvantagem concorrencial. Seriam inúmeros os exemplos de casos em que o bom pagador de tributo acabou em situação de desvantagem, diante da famigerada modulação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade para citar como exemplo.
O Judiciário muitas vezes aparece como o vilão ao extrapolar suas competências. Contudo, o arcabouço legislativo do Brasil tem colocado magistrados em situações de extrema dificuldade. A correta análise de constitucionalidade material da lei parece ser menos preocupante do que a impossibilidade de análise do devido processo legislativo, sob pena de acusação de usurpação de poder. Por outro lado, eleger o Poder Judiciário como justiceiro da nação gera um completo desequilíbrio aos Poderes da Nação.
Mas qual a realidade posta? No âmago de arrecadar e em meio a negociatas, surgem medidas provisórias sem a menor urgência e relevância, inserem-se jabutis tributários em projetos de lei completamente desconexos, projetos são votados em um piscar de olhos enquanto outros ficam engavetados por mais de décadas.
Em manifestação, o famoso tributarista Paulo de Barros Carvalho explanou sua surpresa quando Senador, após a aprovação da Emenda Constitucional que aprovara a Reforma Tributária, respondeu a jornalista que não sabia o que tinha sido decidido sobre determinada temática porque o texto só estaria disponível no dia seguinte a partir de “x” horas da manhã.
Obviamente que não se espera o conhecimento profundo de toda a legislação em aprovação pelos Congressistas, entretanto, em matérias sensíveis e questões de tamanha relevância para o país, o desconhecimento é quase uma afronta.
Existiriam inúmeras críticas a serem feitas ao atual processo legislativo. Não obstante, merece destaque tática quem vem sendo utilizada nos últimos anos como forma de garantir que o real conteúdo material de texto legislativo, em verdade, seja desconhecido mesmo após a sua aprovação formal.
Por diversas oportunidades, quando determinado texto vai ao plenário para votação, o relator inicia a sua explanação final do relatório final referindo algo no seguinte sentido “foram aprovadas, ainda que parcialmente, as Emendas no. X, Y, Z etc”. Posteriormente estão páginas e páginas do suposto texto final.
Qual o problema? As emendas aprovadas ou aprovadas parcialmente, por vezes, não têm coerência com o texto final. Em alguns casos, a prova dessa distorção é mais difícil ou exige maior esforço hermenêutico, diante da frase mágica inserida no relatório “ainda que parcial”. Ocorre que, por vezes, essa deformidade é gritante como em casos em que a emenda pedia a exclusão de um inciso contendo uma única palavra, essa emenda é aprovada – “ainda que parcialmente” –, mas a sua redação segue no texto.
O problema é maior do que parece e tem origem sistêmica. A correção de distorções como as anteriormente apresentadas põe em risco a própria governabilidade. Isto porque os “jeitinhos” presentes no processo legislativo brasileiro foram necessários em um Estado de presidencialismo de coalizão.
Paira a velha dúvida, sobre os limites de interferência do poder judiciário no processo legislativo. O STF costuma aceitar se manifestar em casos “bizarros”, palavra generalista como referência as inúmeras terminologias com semântica parecida utilizada. Ocorre que, os casos são tantos, que estaríamos novamente diante de uma completa distorção nos poderes da nação.
Diante disso, indaga-se: qual a solução? A resposta não é trivial. Todavia, parafraseando Dworkin — que propunha “levar os direitos a sério” — talvez seja tempo de “levar o processo legislativo a sério”.
Obras Consultadas
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Ana Helena Karnas Hoefel Pamplona
Associada do IARGS. Doutora e Mestre em Direito. Sócia Fundadora AHP Advocacia. Professora Universitária. Membro da FESDT