Reflexos do pós-enchente nos Planejamentos Sucessórios
para IARGS
Pode-se definir planejamento sucessório como o “instrumento jurídico que permite a adoção de uma estratégia voltada para a transferência eficaz e eficiente do patrimônio de uma pessoa após a sua morte”. Para grande parcela da população, contudo, equivale, um planejamento sucessório ou inventário em vida – como o é por muitos assim denominado –, a um chamado à morte, deixando muitas pessoas desconfortáveis com o assunto.
Com efeito, veja-se que, em que pese a cultura brasileira servir de desestímulo à prática de um planejamento para depois da morte de alguém (uma vez que “o brasileiro não gosta, em princípio, de falar a respeito da morte, e sua circunstância é ainda bastante mistificada e resguardada, como se isso servisse para ‘afastar maus fluidos e más agruras’ […][1]”, especialmente na sociedade hodierna, que cada vez mais cultua a vida e a beleza,), é inegável que a utilização de seus instrumentos, a exemplo do testamento, da doação, da holding, do seguro de vida, do usufruto, dentre outros, é de grande valia e serve como meio de auxílio a famílias que buscam conservar seus bens/riquezas.
Pode-se asseverar que o grande desafio atual é adequar os instrumentos disponíveis às características de cada composição familiar, para que os desgastes temporais, financeiros, emocionais, não ocasionem – ou agravem – conflitos entre os herdeiros nesse cenário de liquidez[2] e potencial beligerância familiar, o que pode se alterar por conta de fatores externos, como restou constatado com a pandemia e, no ponto, com a recente enchente no Rio Grande do Sul.
Hoje, como bem observado, “o tempo não está propício para deixar tal assunto para ser tratado depois”[3]. Tempos difíceis e inesperados exacerberam os assuntos patrimoniais e familiares, exigindo maior cuidado e atenção por parte de todos. A pandemia do Coronavírus (Covid-19) e a enchente do nosso Estado (2024), foco do presente exame, trouxeram (e trarão), junto com suas tristes histórias, o medo de desorganização para depois do passamento e inúmeras incertezas econômicas, o que acaba motivando a elaboração de testamentos, a título de exemplificação.
Com os efeitos da pandemia, disparou o número de pessoas interessadas em planejar a sua sucessão e o destino de seus bens, o que refletiu em um aumento expressivo no número de testamentos no Brasil durante os últimos anos. De acordo com um levantamento efetuado pelo Colégio Notarial do Brasil, o número de registros de testamentos no país passou de 38.566 em 2012 para 52.275 em 2021, um crescimento de 35,5%. O mesmo estudo demonstra, ainda, que mais de 16 mil testamentos foram registrados no Brasil somente neste ano de 2023, até o dia 13 de junho.[4]
De acordo com o Colégio Notarial do Brasil[5], os registros de testamentos cresceram 14% no segundo semestre de 2020, comparativamente ao período anterior. “Foram pouco mais de 19 mil no ano zero da pandemia. Nos primeiros três meses deste ano, cerca de 6 mil testamentos foram feitos, superando a média mensal do segundo semestre de 2020. A maioria […] São Paulo, Rio Grande do Sul e Maranhão”.[6] Conforme especialistas, a razão desse aumento expressivo de lavraturas deve-se pelo número surpreendente de mortes decorrentes do Coronavírus, acabando a pandemia por intensificar a busca e o debate por formas seguras de planejar a herança.[7]
Da mesma forma, entre o segundo semestre de 2019 e o segundo semestre de 2020, mais de 70 mil bens foram transferidos em vida, resultando em crescimento de realização de doações estimado em 7% nesse período.[8]
Assevera-se, nesse contexto, que são momentos de pesar e infortúnios que aproximam as pessoas da noção da finitude. A ida de um ente querido para uma longa e interminável viagem, ao lado da celebração de vida, faz com que se reflita sobre a forma como todos enfrentam o próprio viver. Situações de calamidade como a pandemia e a objeto do presente artigo, obrigam a todos a ponderar não somente sobre a vida, mas a refletir sobre a morte, em virtude das notícias fúnebres que as acompanham.
Inobstante os efeitos terríveis advindos das calamidades públicas, e os inúmeros desafios que dela se originam, não se pode deixar de grifar os benefícios de se realizar um bom planejamento, quais sejam: precaução de conflitos; economia de custos; preservação de vínculos; celeridade na partilha de bens; continuidade dos negócios; preservação da afetividade dos membros familiares.[9]
Outrossim, conclui-se que, seja em virtude das vantagens tributárias, da prevenção de litígios, ou de garantia de maior proteção e preservação à empresa, à sociedade e a todos envolvidos na sucessão, esses momentos de crise como o da enchente servem para que as famílias se dediquem a planejar a sucessão patrimonial, de modo a torná-la mais eficaz e organizada. Evidenciada a crise desses momentos de calamidade com o aumento exponencial das doações e testamentos realizados, urge a salvaguarda do patrimônio e a proteção dos autores da herança.
[1] CAHALI; HIRONAKA. Op. cit. p. 25.
[2] BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução de C. A. Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 08.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
[3] TEIXEIRA, Daniele Chaves. Planejamento sucessório no ordenamento brasileiro: limites e possibilidades. In: Tratado de Direito das Sucessões. p. 482.
[4] BRANCO, Claudia Castelo. Registros de testamentos crescem no Brasil após pandemia; audiência sobre herança de Gugu será retomada nesta quarta. g1 SP — São Paulo. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/06/21/registros-de-testamentos-crescem-no-brasil-apos-pandemia-decisao-sobre-heranca-de-gugu-sera-retomada-nesta-terca-em-sp.ghtml. Acesso em: 26 jul. 2024.
[5] JUNIOR, José Silvano Garcia. Dispara o número de testamentos no Brasil nos últimos anos. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/390294/dispara-o-numero-de-testamentos-no-brasil-nos-ultimos-anos. Acesso em: 24 jul. 2024.
[6] CNB. Colégio Notarial do Brasil. DEMANDA por testamentos e doações continua em alta com nova onda de covid. 23 de abril de 2021. Disponível em: https://cnbpr.org.br/valor-economico-demanda-por-testamentos-e-doacoes-continua-em-alta-com-nova-onda-de-covid/. Acesso em 26 jul 2024.
[7] FONTINI, Ana Paula. Disponível em: https://cnbsp.org.br/2022/09/08/infomoney-dispara-procura-por-testamentos-no-brasil-na-pandemia-veja-regras-e-para-quem-compensa/. Acesso em: 24 jul. 2024.
[8] Op. cit.
[9] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. 9. Ed. São Paulo. Juspodivm. 2023.
Rafaela Rojas Barros
Associada do IARGS, advogada especialista em Direito de Família e Sucessões. Mestre em Direito Privado. Sócia no Escritório Clóvis Barros Advogados. Comissão Nacional da Pessoa Idosa do IBDFAM. Integrante de grupos de pesquisas. Autora e coautora de artigos científicos e obras jurídicas