Perspectiva agrarista dos eventos edafoclimáticos na pecuária gaúcha
para IARGS
Os fenômenos climáticos extremos têm gerado impactos cada vez mais frequentes e severos em diversas partes do mundo, impulsionando discussões sobre a vulnerabilidade das sociedades frente ao aquecimento global e suas consequências. No Brasil, especificamente no Rio Grande do Sul, a situação foi especialmente grave durante o outono de 2024, quando chuvas torrenciais desencadearam uma enchente sem precedentes, afetando a economia, a infraestrutura e, principalmente, a produção agropecuária do estado. As chuvas acumuladas entre 27 de abril e 24 de maio, atingiram 1.023 milímetros, causando o transbordamento das bacias dos rios Taquari, Caí, Pardo, Jacuí, Sinos e Gravataí, resultando em vastas áreas urbanas e rurais submersas, elevando em níveis recordes a régua de medição da cota de inundação na bacia do Estuário do Guaíba.
O evento afetou aproximadamente 80% do Estado, em 397 dos 497 municípios gaúchos atingidos. A enchente causou grandes prejuízos, deixando mais de 629 mil desabrigados e centenas de feridos, além de 183 mortes confirmadas por informações da Defesa Civil. O cenário urbano ficou caótico, com serviços essenciais de água e energia interrompidos, deslizamentos de terra em áreas serranas e estradas bloqueadas. O Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre, também sofreu severos danos, permanecendo fora de operação, obstaculizando não só o transporte de passageiros, quanto a logística das cadeias de produção, funcionando precariamente até hoje.
Na zona rural, as perdas foram ainda mais intensas, pois as propriedades rurais estão sempre sujeitas a fatores agrobiológicos e edafoclimáticos, que diferem a atividade agrária de qualquer outro empreendimento ou iniciativa econômica exatamente por isto, segundo Sodero. O termo “agrariedade”, cunhado por Carrozza é baseado na teoria agrobiológica de Carrera, que define a atividade agrária como inerentemente dependente dos elementos naturais. Isso significa que, apesar dos modernos avanços tecnológicos no setor, a agricultura e a pecuária continuam desprotegidas das variações climáticas, doenças e pragas, todavia, quando se trata de desastres nesta escala, as perdas econômicas são significativas e afetam não só o homem do campo, como também o cidadão urbano.
Segundo Laranjeira (1975) a atividade agrária compreende a exploração rural típica (agricultura, pecuária, extrativismo vegetal e animal), exploração rural atípica (agroindústria) e atividade complementar da exploração rural (transporte, armazenamento, fomento, comercialização etc.). Os agraristas (cultores do Direito Agrário), no Esboço Parcial de Anteprojeto de Consolidação de Diplomas Agrários, citados por Querubini, compreenderam a atividade agrária como: “aquela na qual se interrelacionem certo trato de terra, o processo agrobiológico e o homem, este agindo profissionalmente e sujeito ao risco biológico, visando a um produto, agrícola, pecuário, florestal ou do extrativismo, e, até, ao beneficiamento, à transformação e à alienação deste, quando pertinentes à exploração da terra rural.”.
A Agrariedade, adaptada a estes conceitos, atualmente consiste na atividade econômica empresarial, organizada em cadeias de produção e sistemas produtivos, de exploração agrossilvipastoril ou seu beneficiamento. Seu objetivo é a produção de bens de primeira necessidade, provenientes do cultivo da terra, ou similar tecnológico, sujeita aos riscos que lhe são peculiares, além daqueles imanentes a qualquer empreendimento, limitada pelo Direito Agrário perante a função socioambiental da propriedade rural.
No caso das enchentes de 2024, a interferência dos riscos edafoclimáticos se manifestaram de forma dramática, porque consistem basicamente nas condições de solo e de clima. Adequando-se características definidas por coeficientes do meio: o tipo de solo, da litologia (das rochas que formarão o solo), da geomorfologia (pela composição mineralógica e o tamanho do grão), do relevo, das condições climáticas, das temperaturas, da altitude, da latitude, da pressão atmosférica, da radiação, do tipo de vegetação, da umidade do ar e do solo, da reserva hídrica, da precipitação pluvial e do vento. Esses fatores, somados à continentalidade de algumas regiões no Brasil, podem provocar sérios problemas de seca, enchentes, geadas, erosão ou desertificação, que são incontroláveis pelo produtor rural. Porém, obviamente, podem ser minorados mediante calagem, adubação, irrigação, ajuste de carga, plantio direto e outras técnicas de manejo, além do acompanhamento meteorológico.
A terra, por sua vez, é o principal ativo imobilizado das atividades agrárias agropecuárias, que foi severamente comprometida. Quando o solo se encontra saturado e encharcado, ele perde a capacidade de infiltração, pela lixiviação, gerando erosões que arrastam nutrientes e matéria orgânica, fundamentais para a fertilidade e produtividade futuras. Avalia-se que a recuperação total da capacidade produtiva do solo levará mais de uma década, considerando que a formação de apenas um centímetro de solo fértil pode demorar até 300 anos, assim irrecuperável em curto prazo. A perda de até 20 centímetros de solo em poucas horas durante as enchentes é, portanto, uma catástrofe de proporções imensas, cuja estimativa ultrapassa as perdas no agronegócio em mais de três bilhões de reais, conforme dados da FARSUL.
Na pecuária, os prejuízos foram igualmente devastadores. Aproximadamente 1,1 milhão de aves, 15 mil bovinos e milhares de suínos e outros animais de produção morreram afogados durante as enchentes. Muitos animais foram arrastados pelas águas, que atravessaram cercas e alambrados, como no caso emblemático do cavalo “Caramelo”, que ganhou notoriedade após ser resgatado ilhado em um telhado. As pastagens, principal fonte de alimentação dos ruminantes, foram destruídas; os rebanhos, varas ou aviários que sobreviveram foram esparramados, aumentando o risco de surtos sanitários. Além da perda de animais e pastagens, a destruição da infraestrutura rural, o aumento dos custos operacionais, a interrupção no fornecimento de insumos e a devastação de estradas agravaram ainda mais a crise enfrentada pelos estancieiros, criando um cenário alarmante para a pecuária gaúcha.
Sob a ótica do direito agrário, os riscos edafoclimáticos e agrobiológicos, inerentes à atividade agrária, reforçam a necessidade de um arcabouço jurídico que proteja não apenas os recursos naturais, mas também as atividades econômicas ligadas ao campo, mormente quando a função socioambiental da propriedade rural obriga à produção ecoeficiente. A ecoeficiência agrária decorre da adaptação do termo de Glavič e Lukman à realidade do agronegócio, ao visar aumentar a produtividade agropecuária de forma sustentável, minorando impactos ambientais. Todavia, quando a geração de bens de primeira necessidade (alimentos e matérias-primas essenciais), é afetada por situações excepcionais: “se o campo não produz, a cidade não come”! Simples assim.
Nesta circunstância, a expressão: “a fazenda é um empreendimento a céu aberto” ganha ainda mais força ao evidenciar que, diferentemente de outros setores econômicos, a agricultura e a pecuária estão intrinsecamente ligadas às condições edafoclimáticas, que, inclusive já as descredenciaram pelo STJ às abordagens das Teorias da Imprevisão e Onerosidade Excessiva. Outrossim, diante de um cenário de crescente imprevisibilidade meteorológica e frequência de calamidades ambientais, a relação estreita entre a qualidade do solo, a forragem e a ocorrência de eventos extremos, como estas enchentes, exigem soluções inovadoras para garantir a sustentabilidade da atividade pecuária. Por isso, necessitam de proteção especial, garantindo assim a continuidade da produção de alimentos e a segurança alimentar da população.
A vulnerabilidade edafoclimática das propriedades rurais, demonstra a importância de uma abordagem jurídica que reconheça que, além dos riscos intrínsecos peculiares à atividade agrícola, considere medidas preventivas e de recuperação que integrem a sustentabilidade e a resiliência a esses eventos climáticos extremos. A recente catástrofe no Rio Grande do Sul reforça a necessidade de políticas públicas que promovam a adaptação às mudanças climáticas e a gestão de riscos na agricultura, em prol da segurança alimentar e do desenvolvimento rural sustentável. Infelizmente, até o momento, os esforços governamentais para apoiar os pecuaristas gaúchos afetados têm sido insuficientes. Muitos fazendeiros, diante das perdas incalculáveis, podem ser forçados a abandonar suas atividades, agravando o êxodo rural e comprometendo a produção de alimentos.
Dr. Valente Selistre
Advogado Agrarista; Mestre e Doutor em Agronegócios; membro da OABRS, IARGS e UBAU; professor em pós-graduações e autor de obras sobre Direito Agrário e Ambiental aplicado ao Agronegócio