Para que servem as penas? Breves reflexões sobre “As Leis”, de Platão
para IARGS
Platão é um dos maiores pensadores da história, influenciando inclusive o Direito Romano e muitas constituições e modelos políticos da atualidade. Todos os códigos e legislações modernas se apoiam em suas ideias. “As Leis” é o texto mais extenso e abrangente de Platão. Obra escrita nos últimos anos de vida do filósofo, representa o seu pensamento mais amadurecido, produto acabado de reflexões anteriores. Em “A República”, sua obra mais difundida, as ideias são expostas de forma mais teórica e abstrata. Em “As Leis”, a visão é mais realista e concreta de um Estado organizado, com poder compartilhado, eleições, tribunais, cargos públicos e códigos de leis para cada atividade (agricultura, comércio, processo judicial). O tema central é a legislação ideal, mas com o objetivo da educação dos cidadãos. O diálogo se desenvolve entre três personagens: O Ateniense; Clínias, de Creta; e Megilo, da Lacedemônia. A obra é composta de XII Livros. O tema das penas é tratado nos Livros IX, X e XI.
As grandes civilizações da antiguidade clássica deram grande importância à educação enquanto ética e moral prática. Formar seres humanos íntegros, justos e bons era o caminho mais inteligente para uma sociedade equilibrada e fraterna. A legislação que nos foi legada por babilônios, indianos, romanos e por grande parte dos povos civilizados previa a aplicação de penas severas àqueles que não se encaixavam no modelo civilizatório. Quanto mais grave o crime, mais severa a punição. Esse princípio de proporcionalidade na aplicação das penas tem, em sua raiz, a função educativa da sanção. A pena era considerada a ultima ratio, a medida extrema, reservada para o caso de as demais formas de educação terem falhado. Não obstante, a previsão da pena de morte sempre esteve presente, ao contrário da pena de prisão, que nunca teve muita importância nessas tradições.
Não parece contraditório outorgar às sanções uma função educativa e, ao mesmo tempo, cominar pena de morte para determinados crimes? A resposta é negativa, desde que recordemos a visão de mundo dessas civilizações, fundamentada na imortalidade da alma, na reencarnação, na lei dos ciclos, na causalidade (ou “karma”) e na formação moral dos cidadãos como essência da educação. À medida que essa visão de mundo foi sendo abandonada, a pena privativa de liberdade foi ganhando força, em especial no Ocidente, tornando-se a principal maneira de sancionar a prática de crimes graves.
Atualmente, temos três principais teorias sobre a função das penas aplicáveis àquelas condutas graves que a lei prescreve como crimes: a) absoluta (ou retributivista): sustenta que a pena seria a forma de retribuir o mal injusto causado pelo autor do crime por um mal justo (vingança estatal); b) relativa (ou utilitarista): a pena configura uma forma de evitar a prática de delitos futuros (utilitarismo) pelo próprio agente (função de prevenção especial) e pelos demais membros da sociedade (função de prevenção geral); c) mista: a pena teria a função dupla de retribuir (vingar) e também prevenir (evitar a prática de delitos futuros, tanto pelo agente como pelos demais cidadãos). A aposta na pena privativa de liberdade tem resultados muito ruins, especialmente no Brasil,
que apresenta reduzido coeficiente de ressocialização dos presos, com altos níveis de reincidência, além de péssimas condições de uso e conservação das casas prisionais. É consenso entre os estudiosos do tema que a ressocialização dos apenados, finalidade declarada das penas, geralmente não é alcançada; a pena privativa de liberdade não reduz a criminalidade, não protege a sociedade e não resulta seres humanos melhores.
No Ocidente, a prisão como regra punitiva nos foi legada pela tradição jurídica da Europa medieval, e tem recebido duras críticas desde então, como se lê no clássico ensinamento de Beccaria: “É porque o sistema atual da jurisprudência criminal apresenta aos nossos espíritos a ideia da força e do poder, em lugar da justiça; é porque se lançam, indistintamente, na mesma masmorra, o inocente suspeito e o criminoso convicto; é porque a prisão, entre nós, é antes um suplício que um meio de deter um acusado”.
Na obra “As Leis”, Platão parte da premissa que a função das penas não é a punição em si, tampouco a vingança. Se a aplicação das leis é medida de Justiça, não há lugar para a prática do mau. É célebre a afirmação de Sócrates, contida nas primeiras páginas do conhecido diálogo: “- Então, Polemarco, fazer mal não é ação do homem justo, quer seja a um amigo, quer seja a qualquer outra pessoa, mas, pelo contrário, é a ação de um homem injusto”. Platão deixa claro, em diversas passagens do texto, que o fundamento do Estado, ideia unificadora de Justiça, é a educação. Toda a legislação pressupõe como destinatários os cidadãos que receberam a educação desde a mais tenra infância.
Segundo ele, nem todas as ofensas são injustiças. A injustiça, para Platão, emerge apenas quando um indivíduo justo (ou seja, um cidadão previamente educado conforme a legislação) comete uma ação mal-intencionada. Nesse contexto, a punição serve para a reeducação. A finalidade das penas seria tornar o ser humano melhor, afastando dele a injustiça, isto é, o domínio exercido na alma pela paixão, pelo medo, pela busca desmedida do prazer ou pela satisfação dos desejos egoístas. Ao receber prévia educação, o cidadão estará apto a superar tais defeitos. Todavia, não estará de todo isento, razão pela qual as suas faltas deverão ser punidas de acordo com lei, fomentando nele, mais uma vez, a virtude.
Fomentar o resgate da virtude no cidadão, reeducando-o de acordo com a legislação, é a única finalidade legítima para a aplicação de uma pena. Porém, em casos extremos, de falta gravíssima, ou seja, para os crimes contra os deuses, contra os próprios pais e contra as leis que constituem o Estado, a pena será a morte. Tais crimes (contra os deuses, os pais e a constituição), segundo Platão, violam de tal maneira os valores morais que afastam o homem dos arquétipos, colocando em risco a própria existência do Estado. O ser humano que, mesmo depois de educado, é capaz de praticar todas as espécies de crimes, não acredita em nada superior a ele próprio, o que configura uma falha incurável. A morte, portanto, é a melhor solução não apenas para o Estado, mas para o próprio indivíduo.
Obviamente que tal pensamento pressupõe a aceitação das teorias da imortalidade da alma e da reencarnação, visão de mundo coerente com as tradições da antiguidade. A aplicação da pena de morte exigia rituais sagrados de purificação, não apenas da alma do agente, mas do Estado inteiro, e deveria ser conduzida por magistrados com alto grau de sabedoria – em julgamento oferecido a Héstia, o fogo sagrado que une a humanidade aos deuses. Assim previam o Código de Hamurabi (2067-2025 a.C.), reunificador da Mesopotâmia e fundador do Primeiro Império Babilônico; o Código de Manu, legislador lendário da Índia (por volta de 1300 a.C.); a Lei das XII Tábuas, elaborada em Roma (451 a.C.). A tradição jurídica de Atenas e da Grécia em geral, de igual modo, estabelecia a pena de morte para os delitos mais graves, assim como a pena de exílio, considerada ainda mais nefasta e indesejável, segundo os escritos de Sófocles e Aristóteles.
Embora para as civilizações antigas, imersas em uma cosmovisão metafísica de imortalidade da alma e ciclos de purificação, a pena de morte pudesse se alinhar a uma função de reeducação e preservação do Estado, o mesmo não se aplica à nossa realidade atual. Longe de ser uma ferramenta que fomenta a virtude ou contribui para a construção de um ser humano melhor, a pena capital, sob a ótica dos valores éticos e jurídicos do presente, representa uma violência inegável e irremissível.
Ela macula não apenas a dignidade do condenado, mas também o próprio tecido social que a aplica, contradizendo qualquer pretensão de um sistema de Justiça. Assim, a reflexão sobre o propósito das penas nos impulsiona a buscar soluções que, de fato, se coadunem com a complexidade humana e os preceitos de uma sociedade que valoriza a vida e a busca incessante pela Justiça, sem recorrer a expedientes que perpetuam a lógica da violência. Qual perspectiva estaria mais correta, a dos antigos ou a dos contemporâneos? Platão diria, de forma misteriosa: “O que é verdade para os homens, é mentira para os deuses”.
Referências bibliográficas
ARISTÓTELES. Constituição de Atenas. São Paulo: Edipro, 2012. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2000.
PLATÃO. As Leis, ou da legislação. Bauru: Edipro, 2010.
SÓFOCLES. Antígona. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1997.
VIEIRA, Jair Lot. Código de Hamurabi: Código de Manu, excertos (Livros Oitavo e Nono): Lei das XII Tábuas. São Paulo: Edipro, 2011.
Tiago Ghellar Fürst
Associado do IARGS. Advogado especialista em Direito Penal (UFRGS) e Tributário (IBET). Professor de Filosofia (Nova Acrópole)