Para além do espelho: o direito à saúde integral contra a classificação estética em cirurgias reparadoras
para IARGS
A sociedade contemporânea, mergulhada em uma cultura de visibilidade digital, transformou a estética em uma “moeda de troca” social, em que a imagem filtrada e padronizada prevalece sobre a complexidade humana.O conceito de “instramagização” — o ato de viver e ser visto através das lentes filtradas e curadas de plataformas como o Instagram — ilustra bem essa transformação: a imagem projetada frequentemente se sobrepõe à essência multifacetada do ser. No entanto, o espelho que tanto exalta a forma humana, também a distorce quando reduz a complexidade da saúde e do bem-estar a um simples reflexo estético. É nesse contexto que emerge um paradoxo doloroso no campo do direito à saúde: intervenções médicas cruciais, como as cirurgias reparadoras necessárias após grande perda ponderal (pós-bariátrica) e o tratamento para a condição crônica do lipedema, são frequentemente desvalorizadas.
Impõe-se distinguir, conforme a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), a cirurgia reparadora, cujo desígnio precípuo é restaurar a função e aproximar da normalidade estruturas corporais alteradas, da cirurgia estética, que visa primariamente aprimorar a aparência para além dos parâmetros funcionais. Desqualificar como “estéticos” procedimentos indicados para aliviar dor, prevenir infecções ou restabelecer mobilidade equivale a negar a finalidade terapêutica e restauradora intrínseca a esses atos médicos. Essa vocação fundamentalmente reparadora evidencia-se na própria história da especialidade. Mormente forjada em contextos de necessidade premente, a cirurgia plástica moderna foi catalisada pelas devastadoras lesões faciais da Primeira Guerra Mundial – as trágicas “Gueules Cassées” –, consolidando-se sob pioneiros como Sir Harold Gillies. Sua célebre síntese – ‘a cirurgia reparadora é uma tentativa de retornar o paciente à normalidade; a cirurgia estética, uma tentativa de ultrapassar a normalidade’ – plasma a essência nascida da urgência em restaurar a integridade: devolver função e dignidade, não meramente embelezar.
Pacientes com lipedema ou com sequelas pós-bariátricas enfrentam, frequentemente, uma dupla invisibilidade. A primeira é social: a dor crônica, as limitações funcionais severas e o impacto psicossocial são minimizados ou estigmatizados por não se alinharem ao ideal estético celebrado na cultura digital. A segunda invisibilidade é jurídico-administrativa: procedimentos médicos necessários são classificados como “estéticos” pelas operadoras e, consequentemente, negados. Diante dessa recusa, não raro recorrem ao Judiciário, instância que perscrutará a necessidade de tutela do direito invocado.
A justificativa recorrente das operadoras para a negativa ancora-se na alegação de finalidade exclusivamente estética, invocando a cláusula de exclusão do Art. 10, II, da Lei 9.656/98. Essa leitura sistematicamente ignora a natureza terapêutica desses procedimentos, mesmo diante de normativos como a Resolução Normativa 465/2021 da ANS (e suas atualizações posteriores, impactadas pela Lei 14.454/2022), colocando o paciente em extrema vulnerabilidade.
O lipedema, classificado na CID-11 como EF02.2, é uma condição crônica que provoca dor, limitações funcionais e edema progressivo. A lipoaspiração linfopreservadora, reconhecida como terapia eficaz pela comunidade médica após a falha do tratamento conservador, não busca primariamente a estética, mas o alívio funcional e a prevenção de complicações incapacitantes. Similarmente, as cirurgias reparadoras pós-bariátricas — como abdominoplastia e braquioplastia — são etapas essenciais para restabelecer mobilidade, prevenir infecções e reintegrar o paciente socialmente. A lógica do Tema 1069 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que reconhece a obrigatoriedade de custeio dessas cirurgias como continuidade do tratamento da obesidade, deveria nortear a análise, mas ainda encontra resistência administrativa.
Como lapidarmente assinala Susan Sontag, “a dor que não pode ser vista não deixa de existir”. A cultura da imagem, ao obscurecer narrativas de sofrimento que não se encaixam em fotos “instagramáveis”, contribui para a deslegitimação dessas condições perante as instituições.
A recusa contumaz das operadoras em autorizar esses procedimentos impulsiona a judicialização. Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2023) revelam um crescimento de 24% em ações judiciais por negativa de cobertura entre 2018 e 2022, com destaque para casos envolvendo lipedema e pós-bariátrica.
O processo judicial impõe ao paciente um pesado ônus da prova. É necessário demonstrar, por meio de laudos médicos detalhados, exames e pareceres técnicos, que o procedimento pleiteado não constitui um luxo estético, mas sim uma necessidade terapêutica funcional. A Lei nº 14.454/2022, ao reforçar a análise baseada em evidências para cobertura off-roll (mediante comprovação de eficácia ou recomendação técnica da CONITEC/HTA internacional), trouxe um avanço, mas a construção dessa prova permanece um desafio complexo e desgastante.
A proteção ao paciente encontra sólido amparo legal. O Art. 196 da Constituição Federal consagra a saúde como direito fundamental, garantindo acesso integral. O Código de Defesa do Consumidor (CDC), aplicável aos planos (Súmula 608/STJ), veda cláusulas abusivas. A Lei nº 14.454/2022 reforça a análise baseada em evidências. A coexistência desses mecanismos (Junta Médica, NAT-Jus, CONITEC) reflete a complexidade de integrar conhecimento médico especializado, direitos legais e o processo decisório judicial em saúde.
Negar cobertura a procedimentos reparadores essenciais sob a etiqueta simplista de “estético” viola não apenas essas normas, mas também os princípios basilares da integralidade do cuidado, da dignidade da pessoa humana e da boa-fé objetiva, que devem permear os contratos de saúde.
A cultura da instramagização, com seu foco incessante na aparência, fomenta um ambiente onde a complexidade da saúde humana pode ser perigosamente reduzida a um reflexo superficial. A classificação arbitrária de cirurgias reparadoras necessárias – como as pós-bariátricas e o tratamento para lipedema – como meramente “estéticas” por parte das operadoras é um sintoma dessa distorção.
É imperativo mover-se “para além do espelho”. As operadoras devem avaliar as solicitações com base na necessidade terapêutica real, funcional e psicossocial do paciente, guiadas pelas evidências científicas e pelo princípio da saúde integral. Impulsionados pela recusa contumaz das operadoras, os pacientes buscam na judicialização a efetivação de seu direito à saúde integral. Os tribunais atuam, nesse cenário, como mediadores que aplicam o direito a partir das provas carreadas aos autos. Observa-se, contudo, que a obtenção de tutelas de urgência pode encontrar óbices na percepção do risco iminente, circunstância que, por vezes, prolonga o sofrimento dos postulantes
A judicialização, embora necessária, não é solução definitiva. É preciso que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e os próprios tribunais atuem na consolidação de entendimentos e na fiscalização para evitar que pacientes sejam penalizados por uma classificação que ignora sua realidade. Somente assim o direito à saúde transcenderá o espelho da burocracia e da superficialidade, encontrando ressonância na empatia e na justiça.
Referências
ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA: SOCIEDADE BRASILEIRA DE ANGIOLOGIA E DE CIRURGIA VASCULAR. Consenso Brasileiro de Lipedema. [S. l.]: AMB/SBACV, [2023?]. (Nota: Verificar detalhes de publicação e ano exato, se disponível. Citado com base na menção recorrente ao Consenso).
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [1988]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 23 abr. 2025.
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 set. 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm. Acesso em: 23 abr. 2025.
BRASIL. Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998. Dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 4 jun. 1998. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9656.htm. Acesso em: 23 abr. 2025.
BRASIL. Lei nº 14.454, de 21 de setembro de 2022. Altera a Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, para estabelecer critérios que permitam a cobertura de exames ou tratamentos de saúde que não estão incluídos no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 set. 2022. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/L14454.htm. Acesso em: 23 abr. 2025.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 608. Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão. Segunda Seção, aprovada em 11/04/2018, DJe 17/04/2018. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/sumstj/. Acesso em: 23 abr. 2025.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Tema Repetitivo nº 1069. Obrigatoriedade de custeio, pelo plano de saúde, de cirurgias plásticas de caráter reparador ou funcional indicadas pelo médico assistente, em paciente pós-cirurgia bariátrica, visto serem consideradas como parte integrante do tratamento da obesidade mórbida. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/. Acesso em: 23 abr. 2025. (Nota: Verificar detalhes do acórdão paradigma e data de julgamento final no STJ). BAMJI, Andrew. Sir Harold Gillies: surgical pioneer. Trauma, London, v. 8, n. 3, p. 143-156, Aug. 2006. DOI: 10.1177/1460408606072329.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Justiça em Números 2023: ano-base 2022. Brasília: CNJ, 2023. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/gestao-estrategica-e-planejamento/relatorios-anuais-do-cnj/. Acesso em: 23 abr. 2025. (Nota: Confirmação do título exato e disponibilidade online recomendada).
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – CID-11. Genebra: OMS, [Ano de lançamento/atualização]. Disponível em: https://icd.who.int/browse11/l-m/en. Acesso em: 23 abr. 2025. (Nota: Referenciar o código EF02.2 – Lipedema).
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Tradução Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. (Nota: Esta é uma das obras frequentemente associadas à citação., como “A Doença como Metáfora”).
Evânia Romanosky
Associada do IARGS, Advogada especializada em Direito da Saúde e Direito Civil. Especialização em Direitos Fundamentais e Direito do Consumidor pela UFRGS e Coordenadora do GT Saúde da Família da CEDS/OAB-RS