O Planejamento Sucessório frente a não Aplicação do Regime de Separação Convencional de Bens no Direito das Sucessões
para IARGS
Este tema passou a chamar a atenção quando, em 2017, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil de 2002, que tratava dos direitos sucessórios na união estável. Naquele julgado, a Corte Suprema firmou o entendimento de que não subsiste distinção entre casamento civil e união estável para fins sucessórios.
Ao declarar inconstitucional o referido artigo, o STF assim decidiu: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”. A decisão, em repercussão geral, estendeu os mesmos direitos sucessórios do casamento à união estável.
O artigo suprimido previa que o companheiro participaria da sucessão do outro quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, obedecendo a quatro condições ali dispostas.
Assim, o artigo 1.829 do Código Civil passou a reger os direitos sucessórios dos cônjuges e conviventes da mesma forma de modo que, sobre todas as sucessões hereditárias decorrentes de relacionamentos, o sobrevivente passou a ser herdeiro dos bens particulares do falecido, ainda que os conviventes ou cônjuges tenham eleito o regime da separação de bens.
Com o desaparecimento no ordenamento jurídico pátrio da norma inserta no art. 1.790 do Código Civil, os direitos sucessórios decorrentes da união estável foram equiparados aos do casamento, deixando de ser uma opção para aqueles que pretendiam viver num formato de relação em que a sucessão hereditária obedecia a regras diferentes das do casamento.
E aqui não se está a criticar a necessidade de serem equiparados os direitos sucessórios decorrentes das relações entre casais, mas sim, de considerar que, sendo diversas suas características, formas de constituição e dissolução, distintos podem ser os regimes legais.
Da forma como foram equiparados, dentro de uma mesma moldura normativa, subtraiu-se a autonomia privada, válida na vida comum e no divórcio, para os efeitos do evento de morte.
Como já acentuado, deixou de existir no ordenamento jurídico pátrio o regime da separação convencional de bens com efeitos no Direito Sucessório.
Como se pode antever, as consequências são graves e tratar este tema dentro de um planejamento sucessório é questão que merece um olhar atento e tem provocado estudos e reflexões das mais variadas entre os doutrinadores.
Hoje um dos maiores problemas de um planejamento sucessório é a impossibilidade de fazer valer, para a sucessão causa mortis, o regime da separação de bens.
Para a vida, ou seja, para o divórcio com partilha em um casamento ou união estável, o regime de bens escolhido pelo casal terá plena validade.
Porém, o mesmo não se dá na morte, ainda que a opção em vida seja o regime da separação de bens. O sobrevivente será herdeiro do falecido, seja no casamento seja na união estável.
A situação que permeia os planejamentos sucessórios inquietando famílias, é que mesmo tendo um Pacto Antenupcial ou Contrato de União Estável assinado onde houve a opção pelo regime da separação de bens, o sobrevivente será herdeiro do falecido e concorrerá com os demais herdeiros do falecido na integralidade dos bens do falecido.
Os pactos antenupciais e contratos de união estável têm valor para a vida, pois quando a relação se dissolve pela morte, a sucessão hereditária passa a ser regida pelas regras de Direito das Sucessões, passando a valer as normas de ordem pública das Sucessões.
Atualmente, as famílias podem ser recompostas, novos casais se formam e se desfazem. As famílias mosaico, como são chamadas as famílias recompostas, formadas por núcleos familiares diversos, ou seja, um segundo casamento onde cada um tem filhos de casamentos anteriores, podem apresentar situações em que o patrimônio, em caso de falecimento, seja desviado para um tronco familiar totalmente alheio à raiz familiar daquele que construiu o patrimônio. No evento morte pode resultar na destinação do patrimônio a ramo familiar distinto e sem qualquer ligação com a linha de origem daquele que o formou.
Por que hoje é possível dizer que não existe mais o regime de separação de bens para a morte?
Como era esta legislação antes de 2017
Antes de 2017, havia a opção viver com contrato de união estável de separação total de bens.
Antes da entrada em vigor do Código Civil de 2002, os efeitos do Contrato ou Pacto Antenupcial de Separação Total de bens eram assegurados na sua plenitude: ou seja, dissolvido o casamento pelo divórcio ou pela morte, os bens permaneciam com seu proprietário ou com seus sucessores, ou seja, conforme pactuaram em vida.
Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, o cônjuge sobrevivente passou a ser herdeiro necessário mesmo no regime de separação total de bens, inclusive para aqueles casos em que o pacto de separação tenha sido anterior a 2002.
No regime da comunhão parcial, também há o direito à herança nos bens particulares do falecido, mas o que mais causa impacto é no regime da separação de bens.
Até 2017, com a decisão do STF acima referida, havia a opção, para aqueles que não pretendiam que um fosse herdeiro do outro no caso de morte, de não se casar e viver em união estável. Hoje não mais existe essa possibilidade. Sempre o cônjuge ou companheiro sobrevivente será herdeiro necessário, em concorrência com os demais herdeiros do morto, mesmo no regime da separação de bens.
A questão não está na equiparação da união estável ao casamento, o que é louvável. Não há mais espaço para tal equivalência ser modificada. O problema está em não dar eficácia aos pactos feitos em vida, seja no casamento, seja na união estável. É a intervenção do Estado na autonomia privada. Isso leva à reflexão acerca de quais os limites que podem ser impostos às decisões do casal sobre suas relações familiares, sobretudo em relação a questões patrimoniais, direitos disponíveis, a toda evidência.
Sequer pode haver prévia renúncia de herança, mesmo que feita em pacto antenupcial ou contrato de união estável. O impedimento está no artigo 426 do CC/2002, cuja regra estabelece que “não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva.”
E os pactos sucessórios que tratam da renúncia de herança ou aqueles onde um renuncia à herança dos bens particulares do patrimônio do outro? São válidos? Como já referido, pela legislação vigente, esses pactos não estão sendo considerados, mas são feitos para terem validade quando houver alteração legislativa que permita os pactos sucessórios de renúncia recíproca dos direitos hereditários.
A autonomia privada está ligada aos princípios da dignidade da pessoa humana e da liberdade, previstos na Constituição Federal. Assim, as pessoas deveriam ter o direito de contratar entre si sobre esses temas gerando efeitos jurídicos válidos e eficazes.
Tanto é assim que o artigo 1.639 do Código Civil estabelece que é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.
Insista-se, a moldura jurídica que foi presumida pelo legislador não permite este tipo de pactuação, conforme já referido.
Sobre os Pactos Sucessórios, Francisco Cahali1 diz que em prestígio à vontade das partes entende que a convenção afastando o direito sucessório recíproco é válida e deve ser buscada eficácia. E não se trata da famosa pacta corvina do artigo 426 do Código Civil,
1 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; CAHALI, Francisco José, Direito das Sucessões. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 195.
pois trata-se de renúncia e não de disposição em favor de terceiros referente a herança futura.
Diante da inexistência de solução legal para esta questão, as construções doutrinárias e as teses devem ser colocadas pelos operadores do direito para que os tribunais as enfrentem.
E, se a família não fez planejamento sucessório, nunca fez um estudo de seu patrimônio, ou do destino que pretende dar ao patrimônio, a regra é aplicada na sua integralidade.
Não há prazo para o sobrevivente adquirir a condição de herdeiro. O contrato de união estável estabelecendo o regime de separação de bens pode ser recente. Mesmo assim, o sobrevivente será herdeiro necessário nos bens particulares do falecido. O mesmo ocorre nas relações sem contratualização, pois a união estável é um fato, não necessita de contrato ou escritura para declarar sua existência, e neste caso o regime é o da comunhão parcial de bens e a condição de herdeiro necessário permanece.
O Planejamento Patrimonial Sucessório
O cenário acima descortinado, de equiparar os efeitos sucessórios da união estável e do casamento, independente do regime de bens livremente pactuado, tem reflexos diretos quando se fala em planejamento patrimonial sucessório.
Pode-se definir esse planejamento como o conjunto de estratégias e ações voltadas para a organização e transmissão do patrimônio de uma empresa ou de um familiar aos seus sucessores de forma eficiente e em conformidade com as leis, podendo este patrimônio envolver empresas ou não.
Seu principal objetivo é garantir que o patrimônio seja transmitido da maneira mais adequada e justa possível, evitando conflitos e disputas futuras entre os herdeiros.
Esse planejamento pode envolver procedimentos como elaboração de testamentos, realizações de doações, constituição de holdings patrimoniais com definição de políticas de distribuição de dividendos, entre outras medidas.
Além disso, o planejamento sucessório busca preservar os valores, princípios e visão dos autores da herança garantindo a continuidade do legado da família.
O testamento, muito utilizado nos Planejamentos Sucessórios, é um instrumento que poderá resolver, em parte, o problema da sucessão hereditária do companheiro ou cônjuge sobrevivente. Por que em parte? Porque sendo o sobrevivente herdeiro necessário, sempre haverá uma legítima que ele deverá receber em concorrência com os demais herdeiros.
Quando estamos diante de uma sucessão onde o sobrevivente não é o genitor dos filhos do falecido e com eles concorrerá em partes iguais nos bens particulares que tampouco colaborou para construir, o Testamento pode destinar a parte disponível da herança para os filhos, deixando a concorrência apenas recaindo sobre a legítima. Ou seja, no caso de a concorrência ser apenas com um filho do falecido, se não houver
testamento a herança será dividida em partes iguais entre companheiro/cônjuge sobrevivente e filho, destinando o percentual de 50% para cada um. Na existência de Testamento dispondo sobre a parte disponível, o percentual para o sobrevivente reduz para 25%.
As doações de patrimônio aos filhos feitas em vida, têm sido utilizadas nos Planejamentos Sucessórios. Normalmente com reserva de Usufruto, bem como outras cláusulas, como a cláusula de reversão, dentre outras. São possibilidades de antecipação do patrimônio disponível, podendo ser dispensado da colação.
As holdings podem ser utilizadas também assim como as previdências privadas também podem ser caminhos para um bom Planejamento Sucessório.
O filósofo e jurista francês Jean Cruet1 dizia que não é a lei que faz a sociedade, mas a sociedade que faz a lei. Em conclusão, a reiteração desse problema e a legítima demanda social por sua superação recomendam uma solução normativa de modo a valorizar a autonomia de vontade e a liberdade de dispor de seu patrimônio post mortem. Revela-se oportuno e adequado promover alteração legislativa no artigo 1.829 do Código Civil, ou introduzir novo dispositivo legal no ordenamento jurídico, a fim de excluir a qualidade de herdeiro necessário do cônjuge ou companheiro sobrevivente casado ou unido sob o regime da separação convencional de bens, afastando-se, assim, sua concorrência sucessória com os descendentes do falecido.
A inserção de regra legal que assim disponha não colide com a Constituição Federal na medida em que não dá tratamento diverso para a união estável e para o casamento. Insere-se no âmbito do direito sucessório, viabilizando tratamento que se adequa às novas configurações familiares e aos reclamos da sociedade.
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Ana Lúcia Piccoli
Associada do IARGS. Secretária-geral da OAB/RS
