O Contencioso Judicial do IBS e da CBS pós-reforma Tributária – breves considerações
para IARGS
O novo modelo de tributação sobre o consumo – baseado em um IVA dual – substitui tributos heterogêneos (ICMS, ISS, PIS, COFINS e IPI) por dois tributos com regras uniformes de interpretação e de incidência, como base de cálculo, fato gerador e não cumulatividade.
A Emenda Constitucional n.º 132/2023 inaugurou o mais disruptivo processo de reforma tributária sobre o consumo da história republicana, instituindo um modelo de Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e de Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) em substituição aos atuais tributos incidentes sobre a produção, circulação e serviços.
Embora a reforma tenha como premissa a simplificação e a neutralidade, sua implementação traz implicações profundas ao sistema federativo e ao contencioso judicial tributário. Os aspectos constitucionais, administrativos e processuais decorrentes da repartição de competências, da criação do Comitê Gestor do IBS e da proposta para o contencioso judicial, possivelmente com a criação de uma jurisdição tributária compartilhada, trarão significativas alterações.
No entanto, a transição para o regime do IBS (de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios) e da CBS (de competência federal) revela uma intricada teia de desafios jurídicos e processuais, sobretudo no tocante à definição do sujeito ativo da relação tributária, à estrutura administrativa de arrecadação e à organização jurisdicional para dirimir eventuais litígios tributários.
As modificações constitucionais introduzidas pela reforma redefiniram o pacto federativo fiscal. O artigo 156-A da Constituição da República institui o IBS, um imposto de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios, fundamentado na neutralidade e na não cumulatividade. Sua arrecadação será calculada pela soma das alíquotas dos entes de destino da operação.
O artigo 156-B, por sua vez, criou o Comitê Gestor do IBS (CG-IBS), encarregado de arrecadar, compensar e distribuir o produto da arrecadação. A nova lógica rompe com o modelo tradicional de competência isolada, prevendo uma administração fiscal integrada. Contudo, essa integração impõe pensar sobre a manutenção da autonomia federativa, reafirmada constitucionalmente, princípio basilar do federalismo fiscal. Já a CBS permanece de competência federal, sem maiores modificações nesta senda.
Pois bem, esse modelo precisa ser analisado à luz do que está disposto no ordenamento jurídico brasileiro, a fim de que se verifique se as modificações não impactarão negativamente no contencioso judicial em seu atual formato constitucional e infraconstitucional, já que o contencioso administrativo vem todo regrado no PLP 108/24[1].
O artigo 119 do Código Tributário Nacional é categórico ao dispor que o sujeito ativo da obrigação é o ente titular da competência tributária. A inovação constitucional, entretanto, cria um sujeito ativo múltiplo, uma vez que cada ente federativo de destino será titular do crédito tributário correspondente às operações nele realizadas.
Dessa forma, um mesmo contribuinte que realize operações em diversos Estados e Municípios poderá figurar em centenas de relações jurídico-tributárias distintas, submetendo-se a diferentes entes arrecadadores, com potencial aumento exponencial de litígios.
O Código de Processo Civil (art. 52, parágrafo único) dispõe que, se o Estado for demandado, o contribuinte poderá ajuizar ação no foro do seu domicílio, no da ocorrência do fato gerador, ou na capital do ente federado. Todavia, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 5737, fixou entendimento de que a prerrogativa de foro dos Estados decorre de sua capacidade de auto-organização, vedando que sejam demandados fora de seus limites territoriais.
Diante disso, o novo sistema, se mantida a lógica de competência individualizada por ente federativo, levará à necessidade de ajuizamento de ações antiexacionais em múltiplas comarcas do país, caso o contribuinte atue em âmbito nacional. Isso tornaria o contencioso mais oneroso, fragmentado e ineficiente, contrariando o propósito de simplificação que inspira a reforma.
Outro ponto de tensão está na coexistência de dois contenciosos distintos: um referente à CBS, de competência da Justiça Federal; outro relativo ao IBS, de competência das Justiças Estaduais.
Essa duplicidade implicará certamente em custas processuais duplicadas, perícias repetitivas, decisões contraditórias e prazos processuais descoordenados, afetando gravemente a coerência do sistema e a segurança jurídica.
Reconhecendo os riscos do aumento de litigiosidade, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio da Portaria nº 96/2025 e a partir do trabalho prévio do GT Procuradorias na Reforma Tributária, criou um grupo de trabalho composto por ministros do STF e STJ, Procuradores e representantes das Magistraturas federal e estadual, com a finalidade de elaborar uma proposta para reestruturar o contencioso do IBS e da CBS ou adequar o ordenamento jurídico processual hoje vigente à nova dinâmica estabelecida.
O Superior Tribunal de Justiça, de forma prévia, através da Portaria STJ/GP nº 458/2024, instituiu grupo técnico para analisar os impactos da reforma tributária sobre o Poder Judiciário. O relatório inicial previu aumento significativo de litigiosidade e demanda orçamentária, advertindo que a mera unificação normativa dos tributos não seria suficiente para reduzir o contencioso.
Assim, evidencia-se imprescindível repensar também o contencioso judicial. Entre as soluções em debate, ganha destaque a proposta de criação de uma jurisdição tributária compartilhada, desterritorializada, com previsão de varas e turmas mistas compostas por juízes federais e estaduais, desembargadores estaduais e federais, inclusive com Órgão Especial também misto. Essa estrutura garantiria paridade entre Magistrados federais e estaduais, assegurando uma interpretação uniforme das normas do IBS e da CBS, bem como racionalizando os recursos judiciais, o que vem ao encontro da proposta da própria reforma.
Trata-se de inovação institucional e constitucional que preserva o federalismo cooperativo, princípio norteador, evitando a federalização integral do contencioso e permitindo a harmonização jurisprudencial entre os dois sistemas tributários.
Ademais a reforma tributária não tratou expressamente (ou tratou de forma muito tímida ao dispor sobre o incentivo à utilização), dos métodos consensuais de resolução de conflitos, instrumentos essenciais à redução de litigiosidade. Essa omissão preocupa, sobretudo considerando os avanços recentes da legislação tributária brasileira e as experiências exitosas em programas de transação tributária e resolução administrativa por câmaras de mediação e conciliação.
Como ressaltado em diversos relatórios do CNJ (Justiça em Números), há excessiva litigiosidade nas questões tributárias no país, sendo a mais alta taxa de congestionamento hoje na justiça brasileira quando avaliadas as execuções fiscais. A reforma tributária posta não pode agravar essa situação, mas sim buscar a redução de litígios e garantir segurança jurídica.
A implantação do IBS e da CBS inaugura um novo paradigma de federalismo fiscal cooperativo, mas também impõe desafios inéditos ao sistema de justiça tributária. A coexistência de múltiplos sujeitos ativos, a ausência de critérios processuais uniformes e a dualidade jurisdicional configuram riscos concretos de fragmentação e insegurança jurídica.
Nesse contexto, a proposta de jurisdição tributária compartilhada, noticiada e atualmente em debate no CNJ, surge como solução institucional promissora, desde que acompanhada de uma política de integração administrativa e fortalecimento dos métodos consensuais.
O êxito da reforma tributária dependerá, portanto, não apenas da clareza das normas materiais, mas da capacidade do Estado brasileiro de construir um contencioso racional, unificado e eficiente, que não seja ainda mais onerado, capaz de garantir a aplicação equitativa dos novos tributos e preservar o equilíbrio federativo.
Referências
- Constituição Federal de 1988, arts. 156-A e 156-B, com redação da EC 132/2023.
- Código Tributário Nacional – Lei nº 5.172/1966.
- Projeto de Lei Complementar nº 108/2024 (PLP) – Dispõe sobre o Comitê Gestor do IBS.
- Portaria CNJ nº 96/2025.
- Portaria STJ/GP nº 458/2024.
- ADI 5737, Supremo Tribunal Federal.
- Migalhas Jurídico, “Consensualidade na Reforma Tributária e a Transação do IBS”, 2025.
- JOTA Info, “PEC da Jurisdição Tributária Compartilhada”, out. 2025.
[1] O PLP 108/24 segue em tramitação no Congresso Nacional.
Cristiane da Costa Nery
Vice-presidente do Conselho Superior do IARGS. Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS. Pós-graduada em Direito Municipal/UFRGS. Mestre em Direito/FMP
