Inteligência Artificial e Advocacia – Um desafio a ser enfrentado
para IARGS
A advocacia é chamada a enfrentar a revolução tecnológica representada pelo advento da inteligência artificial generativa.
Em junho de 2025, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do A G .REG . NA RECLAMAÇÃO 78.890 – BAHIA vislumbrou má-fé processual em uma peça recursal redigida com uso de inteligência artificial, e na qual haviam sido invocadas decisões judiciais supostamente proferidas no ARE 1.218.084 AgR e nos REs 464.867/SP e 328.111/DF e que teriam sido violadas pela autoridade reclamada.
Ao exame atento do Ministro Relator Cristiano Zanin, não passou despercebido o fato de que a peça recursal, na verdade, era provável fruto de inteligência artificial. Ao julgar o caso, destacou o relator que “As páginas da petição inicial têm a marca d’água “Criado com MobiOffice”. Esse fato, aliado às citações de julgados inexistentes, assim como às afirmações falsas sobre o conteúdo de súmula vinculante e acórdão desta Suprema Corte, permite concluir que o advogado subscritor da exordial possivelmente usou ferramenta de inteligência artificial na elaboração da petição inicial e, sem nenhuma revisão posterior, de forma temerária, protocolou-a no Supremo Tribunal Federal, o que caracteriza má-fé processual” (grifei)
O caso trouxe a lume a necessidade de reflexão acerca do uso ético das ferramentas de inteligência artificial pela advocacia.
O advogado é, e sempre será, essencial à Justiça. Nesse sentido, o advogado presta serviço público e exerce função social
É certo que advogar é vencer diariamente desafios de inteligência. O advogado trava um constante embate com a inteligência de seu opositor e necessita diuturnamente construir a decisão judicial dialogando com a inteligência da magistratura.
Advogar é, portanto, um exercício de inteligência a serviço da Justiça. A boa advocacia é feita de escuta e argumentação: nada de artificial, ela demanda um profundo mergulho na narrativa do cliente e a capacidade de inteligir essa narrativa com os princípios jurídicos e o texto da lei. Um brutal desafio na sociedade da informação.
Como advertia Benjamin “se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio”.
Cada um de nós, humanos, somos, em síntese, narrativa daquilo que somos e fomos. E se no percurso da vida julgamos que nossos direitos foram violados, buscamos o advogado, que tem a hercúlea missão de traduzir nossa narrativa de vida em tese jurídica pela aproximação dos fatos à norma.
Nesse sentido, advocacia é costura. A costura do narrado com a previsão legal para que se restaure a Justiça abalada pela hamartia, pelo ferimento da ordem jurídica.
Advogar é, então, enfrentar constantes desafios. O primeiro e talvez o mais importante deles é o de não se deixar seduzir pelo caminho mais fácil se isso representa trair o interesse do cliente. Sim, a advocacia pressupõe um laço de confiança entre cliente e advogado, fidúcia essencial ao contrato de mandato.
O advogado é desafiado, portanto, pelo dever de não trair a missão para a qual foi contratado, missão que, em síntese, é a de falar pelo cliente (ad vocare), na defesa de sua narrativa de vida e direito.
A esse se seguem inúmeros outros, como o de empenhar todos os esforços para ampliar seu conhecimento jurídico, o de jamais perder a urbanidade e nunca mercantilizar a profissão. Todos desafios diários para qualquer um que pretenda construir uma carreira exitosa na advocacia.
Nos dias de hoje a advocacia é chamada a enfrentar um novo e imenso desafio: o de não se deixar seduzir pelas facilidades trazidas pela inteligência artificial, sobretudo em um país como o Brasil, que optou por assumir o uso da inteligência artificial no Poder Judiciário antes mesmo que fosse, no território nacional, aprovada a legislação regulamentadora dessa tecnologia.
A inteligência artificial vem se apresentando como “alternativa ao trabalho cognitivo de base humana” (GOUVEIA, MARQUES E SANTOS,2024). Sabemos que os benefícios da inteligência artificial, como tecnologia, são inúmeros. Basta que se observem os avanços da medicina com o desenvolvimento da Inteligência Artificial.
Mas o que chamamos de inteligência artificial não é inteligente. Como bem destaca FLORIDI, inteligência artificial é um oxímoro, pois nada que é artificial é realmente inteligente. A inteligência artificial é uma tecnologia, não mais que isso.
E como tecnologia que é, pode estar a serviço da advocacia, jamais substituí-la.
A subjetividade humana, entendida aqui como a capacidade de narrar e ser comovido pelo mundo (ser afetado) (HAN, 2024), corre o risco de ser reduzida a padrões algorítmicos, algo que tem profundo impacto no exercício da profissão de advogado.
Como destaca OLIVEIRA (2025), ao citar o poeta Octavio Paz:
“a linguagem é o que nos faz humanos. Foi a linguagem que conduziu ao
desenvolvimento da capacidade de raciocínio tão singular do ser humano, conduzindo por sua vez ao desenvolvimento da cultura, da civilização, da ciência e da tecnologia. É o domínio da linguagem, a capacidade de combinar símbolos num número infinito de sequências, que nos permite transmitir ideias através do espaço e do tempo. Usamos a linguagem não só para comunicar com os outros, mas também para pensar, para raciocinar, para planear e para expressar, interna ou externamente, emoções e sentimentos. É difícil imaginar inteligência sem linguagem.
A capacidade para comunicar usando linguagem é uma marca inconfundível da inteligência humana.”
O grande risco do uso da inteligência artificial para a produção de peças jurídicas é esvaziamento da experiência da advocacia enquanto atividade humana, com o desaparecimento gradual da linguagem e sua substituição pela lógica algorítmica que, embora simule a capacidade humana de linguagem, não a substitui.
Como adverte HAN, na sociedade do cansaço em que vivemos “A experiência, que pressupõe duração e profundidade, dá lugar ao vivenciar fugaz. O sujeito de desempenho, ocupado em otimizar-se e em explorar-se, já não se abre ao outro, mas consome vivências. O excesso de estímulos e de produção conduz ao enfraquecimento da experiência.” (HAN, 2017)
Ademais, existe farta literatura que aponta para os riscos inerentes à inteligência artificial. A Inteligência artificial generativa opera a partir de método indutivo e trabalha como respostas prováveis, resultando daí falhas de desempenho, vieses algorítmicos, e insegurança cibernética. Isso sem contar os riscos de desinformação e deepfakes e os riscos inerentes à opacidade algorítmica.
Ademais, o Relatório do Conselho de Consumidores da Noruega (NORWEGIAN CONSUMER COUNCIL, 2023) demonstra que a inteligência artificial generativa pode coletar dados para treinar seus modelos sem uma base legal adequada e pode criar informações falsas sobre uma pessoa ou grupo de pessoas, o que é conhecido como “alucinação”. O caso da citação de precedentes jurisprudenciais inexistentes é prova disso.
Além disso, se usada incorreta ou maliciosamente, essa tecnologia pode manipular o comportamento das pessoas, com o potencial de ter efeitos prejudiciais, incluindo discriminação contra indivíduos ou grupos vulneráveis.
O relatório Norueguês aponta os seguintes riscos inerentes ao uso de sistemas de Inteligência Artificial: 1 Manipulação e Engano,2. Desinformação e Deepfakes,3. Viés e Discriminação,4. Opressão por Opacidade,5. Erosão da Privacidade,6. Fragilidade da Segurança,7. Desemprego e Automação Precária 8. Impacto Ambiental, 9. Trabalho Invisível e Exploração.
Ciente desses riscos, a União Europeia, de forma precursora, publicou o Artificial Intelligence Act que “visa assegurar que os sistemas de inteligência artificial (IA) são desenvolvidos e utilizados de forma responsável”.
O primeiro passo a ser dado pelo advogado para o uso responsável da Inteligência Artificial como ferramenta de trabalho é, portanto, ter noção dos riscos que ela encerra.
Consciente dos riscos ontológicos da Inteligência Artificial, o advogado tem o dever de observar os postulados éticos do uso dessa tecnologia.
Nesse sentido FLORIDI E COWLS (2019) propõem cinco princípios éticos orientadores do uso responsável da inteligência artificial, buscando equilibrar inovação e valores humanos, quase sejam : o da beneficência (a IA deve ser usada para gerar benefícios reais para as pessoas e a sociedade), o da não maleficência ( A IA não deve ser fator de danos ou agravamento de vulnerabilidades), o da autonomia (a IA nunca deve substituir a capacidade humana de escolha e decisão, deve ser um instrumento para fortalecê-la), o da justiça de modo a garantir a equidade e a afastar preconceitos e exclusões e, finalmente, o da explicabilidade, que valoriza a transparência do processo algorítmico de modo que se possa entender e questionar as decisões que são fruto de sistemas automatizados.
O advogado que opta por utilizar desmedidamente a inteligência artificial, a ponto de substituir sua capacidade de inteligir os fatos com as normas e pensar o direito, em nome do desempenho, esvazia, portanto, a advocacia e sua essencialidade. O uso responsável dessa ferramenta demanda, portanto, consciência dos riscos e comprometimento ético.
Vale lembrar que o cliente contrata o advogado para verter sua narrativa em linguagem jurídica, esperando que ele empenhe todos os esforços intelectuais para o sucesso da causa, e não contrata uma inteligência artificial para tanto. O uso indiscriminado da tecnologia, sem interferência humana e crítica, pode, assim, configurar patrocínio infiel e contrariar princípios consagrados pelo Código de Ética e Disciplina como os de “proceder com lealdade e boa-fé em suas relações profissionais e em todos os atos do seu ofício. empenhar-se na defesa das causas confiadas ao seu patrocínio, dando ao constituinte o amparo do Direito, e proporcionando-lhe a realização prática de seus legítimos interesses”.
Em síntese, a inteligência artificial é um meio e não um fim em si própria, e como tal deve ser manejada pela advocacia.
Porto Alegre, 27 de agosto de 2025
Referências Bibliográficas:
Floridi, L. (s.d.). Ser humano e inteligência artificial: os próximos desafios do onlife. Instituto Humanitas Unisinos. https://www.ihu.unisinos.br/categorias/604136-ser-humanoe-inteligencia-artificial-os-proximos-desafios-do-onlife-entrevista-com-luciano-floridi
Floridi, L., & Cowls, J. (2019). “A Unified Framework of Five Principles for AI in Society”. Harvard Data Science Review.
Gouveia, L., Marques, A., & Santos, J. (2024, julho 12). IA como um caminho para IA generativa. Mediaethics, FLUC. https://bdigital.ufp.pt/bitstream/10284/13156/1/apre2_mediaethics2024.pdf
Han, B.-C. (2024). A crise da narração (D. Guilhermino, Trad.; 2ª ed.). Vozes.
Han, B.-C. (2017). A sociedade do cansaço (2ª ed., tradução de Enio Paulo Giachini). Vozes.
Conselho Nacional de Justiça. (2025, março 11). Resolução nº 615, de 11 de março de 2025: Estabelece diretrizes para o desenvolvimento, utilização e governança de soluções desenvolvidas com recursos de inteligência artificial no Poder Judiciário. https://atos.cnj.jus.br/files/original1555302025031467d4517244566.pdf
Norwegian Consumer Council. (2023). Generative AI: Consumer protection and transparency in the age of artificial intelligence [Report]. Norwegian Consumer Council. https://storage02.forbrukerradet.no/media/2023/06/generative-ai-rapport-2023.pdf
Oliveira, A. (2025). A inteligência artificial generativa. Fundação Francisco Manuel dos Santos / Guide – Artes Gráficas Ltda
Supremo Tribunal Federal. (2023). A G. Reg. na Reclamação 78.890/BA. STF. https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=7240744
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. (2015). Código de Ética e Disciplina da OAB. Brasília: OAB.
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). (2021). Recomendação sobre a ética da inteligência artificial.
Varoufakis, Y. (2025). Tecnofeudalismo: O que matou o capitalismo (É. N. Vieira, Trad.; 1ª ed. bras.). Autonomia Literária. (Obra original publicada em 2023)
União Europeia. (2024). Regulamento (UE) 2024/1689 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de junho de 2024, que estabelece regras harmonizadas em matéria de inteligência artificial […] (Ato de Inteligência Artificial). Jornal Oficial da União Europeia, L 2024. https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:32024R1689
César Vergara de Almeida Martins Costa
Diretor do Departamento de Inteligência Artificial e Direito do IARGS
Membro da Comissão de IA e Inovação do IAB