06/08/2024 07h00 - Atualizado 05/08/2024 13h03

Funções do Estado e os limites orçamentários diante de situação de Calamidade Pública

Por Terezinha
para IARGS

Diante da situação calamitosa enfrentada pelos gaúchos, com enchentes que ultrapassaram os níveis mínimos aceitáveis, que assolou grande parte do seu território, muitas questões vieram à tona. Mas uma delas clama por atenção: o papel do Estado e os limites orçamentários de sua atuação, principalmente diante de condições urgentes de necessidade da população atingida.

A sociedade contemporânea vem se desenvolvendo ao longo da história. Após a queda do feudalismo e, como reação às ideias e práticas políticas absolutistas, surge o Estado Liberal clássico (SALDANHA, 2002, p. 21), promovendo a passagem do monopólio de poder pessoal para monopólio público, e ascensão da burguesia, pondo-se o Estado a serviço dos interesses capitalistas (GRAU, 2010, p. 15), com fortes notas de racionalidade e formalismo (BERCOVICI, 2009, p. 504).

No entanto, as crises econômicas cíclicas, a ação dos monopólios e o surgimento das desigualdades sociais, mostrou as deficiências do regime liberal clássico. Diante de acontecimentos imprevisíveis, como as grandes guerras, a queda da bolsa de Nova Iorque, revolução industrial, o Estado abandonou sua passividade em favor de uma atuação mais positiva, para assegurar a efetividade do estamento institucional e preservar o ideal de livre concorrência (GRAU, 1978, p. 18 e 19; SALDANHA, 2002, ps. 69-71).

A passagem do Estado liberal clássico para um Estado Social, que opera a reconciliação entre o capital e o trabalho, num regime constitucional de consenso mediante pacto de convergência e solidariedade econômica e social (BONAVIDES, 1995, p. 232), mostra-se como um novo momento de transformação. Essa transformação surge do fato de que não se pode ter um desenvolvimento homogêneo nos movimentos do mercado, impondo a necessidade do Estado se fazer presente na economia; é uma questão de imposição dos fatos (CAMARGO, 2024, p. 18)

E a nova realidade não passou despercebida pelo Poder Constituinte de 1988, quando adota uma ordem econômica capitalista, mas com notas de “intervencionismo” estatal (atuação “sobre” e “no” domínio econômico), comprometida com a finalidade de preservação do capitalismo e, daí, a sua conotação social, assumindo um conteúdo nitidamente ideológico (GRAU, 2010, p. 73). Talvez melhor seria dizer que o texto constitucional adota uma economia social de mercado como ideologia constitucionalmente adotada (SOUZA, 2002, p. 99 e 449), ideologia tomada, aqui, não no sentido filosófico ou político amplo, mas nos vetores valorativos fundamentais na construção da ordem jurídica brasileira, encarada essa como expressão metajurídica, que deverá ser tomada como elemento referencial e fundamental das medidas postas em prática na vida econômica do país (SOUZA, 1980, p. 136-137).

O que queremos dizer com toda essa digressão é que, no Estado Social, as funções estatais ultrapassam a simples manutenção da segurança interna e externa, funcionamento da justiça e das instituições e realização de obras públicas. O Estado passa a ter também funções assistencialista e de integração social (MEDAUAR, 2007, p. 25).

À nível de finanças públicas, essa transformação também irradia efeitos. O desejável equilíbrio econômico orçamentário pode e deve ceder diante de determinadas circunstâncias, como foi a situação da pandemia e é o caso das enchentes no Estado gaúcho.

O equilíbrio orçamentário, baseado numa visão contábil-financeira, pondo as receitas nos limites das despesas, torna-se impraticável diante de um Estado que deve tomar uma postura mais ativa

no enfrentamento das desigualdades sociais (CAMARGO, 2020, p. 79-80). Esse tal equilíbrio orçamentário depende de algo inexequível, que é a previsibilidade do mercado, sem falar que nem todo ingresso constitui receitas públicas (CAMARGO, 2020, p. 80). “Não há nenhum paradoxo em buscar o equilíbrio econômico-social do país, mediante um orçamento público contabilmente desequilibrado; a contradição é apenas aparente, pois resulta da ilusão ótica de analisar o orçamento público sob o ângulo das finanças privadas” (BECKER, 2007, p. 234).

O “equilíbrio orçamentário era regra de ouro das finanças públicas”, mas a primeira grande guerra veio a transformar essa clássica concepção. Os países então beligerantes, tendo de enfrentar despesas imensas com a manutenção do estado de guerra, “[…] passaram a sofrer as mesmas moléstias que censuravam nas jovens e irrequietas repúblicas latino-americanas. Conheceram não só o regime do déficit e da inflação crônica (aguda na Alemanha, em 1920-1922), mas também a depressão mundial iniciada em 1929” (BALEEIRO, 2015, p. 540).

Importante deixar claro que não se está defendendo uma política de déficit sistemático. Um juízo de valor deve ser feito sobre o déficit, na medida em que o mesmo for compensado pelo incremento do patrimônio público (BALEEIRO, 2015, p. 543). Mas, em situações de necessidade, como grandes depressões ou situações extraordinárias, como agora enfrentada pelo povo gaúcho, o equilíbrio deve ceder em favor do bem-estar social e econômico.

A própria lei que estabelece normas gerais de direito financeiro (Lei n. 4.320/64) caminha na direção de admitir um orçamento deficitário, ao preceituar no seu art. 7, que em caso déficit a lei do orçamento indicará as fontes de recursos que o Poder Executivo fica autorizado a utilizar para atender a sua cobertura.

À exemplo da pandemia, enfrentou-se circunstâncias nunca antes imaginadas, ao menos levando em conta as últimas décadas, afetando milhões de pessoas no mundo todo. Nesse ambiente, foi criado o regime extraordinário fiscal e financeiro instituído para a União durante o estado de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, decorrente da pandemia, promovido pela EC n. 106/2020, onde foi autorizado mecanismos de flexibilização orçamentário, como por exemplo, a não observância dos limites legais quanto à criação, à expansão ou ao aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento de despesas e à concessão ou à ampliação de incentivos ou benefícios de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita (art. 3), bem com a dispensa à observância da vedação constitucional de realização de operações de crédito que excedam o montante das despesas de capital (art. 4).

A Lei Complementar n. 173/2020, que instituiu o programa de enfrentamento ao Coronavirus, também é outro exemplo dessa mudança de paradigma orçamentário, pois adota certa mitigação da rigidez orçamentária, como, por exemplo, o afastamento de medidas compensatórias de incentivos que decorram renúncia de receita.

E segue a mesma linha a recente Lei Complementar n. 200/2024, determinando que, em caso de calamidade pública, aplica-se o art. 167-B, incluído no texto constitucional pela referida EC n. 106/2020, criando o regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações supracitado, bem como o art. 65 da LC n. 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), que determina uma série de medidas de flexibilização orçamentária.

O Supremo Tribunal Federal (ADI 6.357/DF MC-Ref) instado a enfrentar a constitucionalidade dos arts. 14, 16, 17 e 24 da Lei n. 4.320/66 e art. 114, caput, e § 14, da Lei de Diretrizes Orçamentárias/2020, teve a oportunidade de se posicionar a respeito da EC n. 106/2020, quando manifestou-se no sentido de que, embora a importância do planejamento e garantia de transparência sejam dois pressupostos para a responsabilidade na gestão fiscal, há situações que apresentam

condições supervenientes absolutamente imprevisíveis que afeta a possibilidade de execução do orçamento planejado, tendo a própria Lei de Responsabilidade Fiscal estabelecido um regime emergencial para os casos de reconhecimento de calamidade pública (art. 65), em que haverá a dispensa da recondução de limite da dívida e o cumprimento da meta fiscal, evitando-se o contingenciamento de recursos e afastando eventuais sanções pelo descumprimento de limite de gastos com pessoal do funcionalismo público.

E as circunstâncias ora enfrentada pelo povo gaúcho não distingue da mencionada pandemia. Trata-se de uma situação de calamidade pública, reconhecida pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul, por meio dos Decretos ns. 57.569/2024 e 57.600/2024, e confirmada pelo Governo Federal, via Decreto Legislativo n. 36/2024, hábil a atrair a aplicação do regime extraordinário fiscal e financeiro, autorizando a União a não computar, no atingimento dos resultados e metas fiscais, despesas autorizadas por meio de crédito extraordinário e as renúncias fiscais necessárias para o enfrentamento da calamidade e seus efeitos sociais e econômicos, o que vem possibilitando transferências pelo Tesouro Nacional, de recursos financeiros aos municípios do Rio Grande do Sul, dentre outras medidas que estão sendo tomadas pelo governo federal, estadual e municipais, buscando minimizar os prejuízos causados pelas enchentes.

Referência bibliográfica

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BERCOVICI, Gilberto. O ainda Indispensável Direito Econômico. In BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita; BERCOVICI, Gilberto; MELO, Claudineu de (coord). Direitos Humanos. Democracia e República: homenagem a Fábio Konder Comparato. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 505-519.

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GRAU, Eros Roberto Grau. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 14ª edição revista e atualizada. São Paulo: Malheiros, 2010.

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MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 11ª edição revista e atualizada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

SALDANHA JÚNIOR, Cesar. Consenso e Tipos de Estado no Ocidente. Porto Alegre: Editora Sagra Luzzatto, 2002.

SMITH, Adam. A mão invisível do mercado. Organização de André Filipe Zago de Azevedo; tradução Norberto de Paula Lima. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2021.

SOUZA, Washington Peluso Albino de. Primeiras linhas de direito econômico. 6ª edição. São Paulo: LTr, 2005.

________. SOUZA. Ideologia e ordem econômica. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, n. 23/25, p. 132-154, 1980/81/82.

Roberto Medaglia Marroni Neto

Professor e advogado. Graduação em Direito pela Uniritter. Especialização em Direito pela Escola Superior da Magistratura ESM/AJURIS. Mestrado em Direito Público com ênfase em Direito Tributário pela UFRGS. Associado e coordenador adjunto do Departamento de Direito Tributário do IARGS

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