11/06/2024 07h00 - Atualizado 10/06/2024 18h31

Financiamento de projetos para a reconstrução das empresas e do ecossistema de negócios no Rio Grande do Sul

Por Terezinha
para IARGS

O Rio Grande do Sul viveu uma catástrofe climática de dimensões épicas. O alto volume de chuvas que atingiu o Estado, no mês de maio de 2024, provocou a maior cheia de que se tem notícia na história e deixou diversas regiões dos vales de diversos  afluentes do Guaíba devastadas pelas forças das águas. Porto Alegre e cidades da região metropolitana da capital conviveram com as inundações de bairros inteiros e desalojamento de moradores de suas casas.

Tendo se instaurado a calamidade pública, logo indivíduos, sociedade civil e Estado agiram para mitigar as consequências imediatas do desastre, resgatando vítimas das inundações, salvando animais, abrigando os desalojados, provendo auxílio financeiro e alimento aos sem alento e, em seguida, drenando regiões alagadas e promovendo a limpeza e recolhimento de lixo e o restabelecimento da circulação de veículos nas vias afetadas na capital e no interior.

Neste momento, muitos cidadãos ainda precisam de amparo e, por conta disso, uma série de medidas foram já adotadas e algumas outras anunciadas pelo Poder Público das três esferas para dar conta dos problemas de moradia e sobrevivência digna das pessoas diretamente atingidas pelas enchentes e assim também para a reconstrução de estradas e investimentos urgente na infraestrutura pública afetada pela calamidade, já tendo sido destinados vultosos recursos orçamentários para tal fim.

De outro lado, como se sabe, a calamidade afetou também muito severamente as empresas da região. Algumas indústrias, estabelecimentos comerciais e escritórios do setor de serviços foram inundados, enquanto outros tiveram suas sedes destruídas ou foram de alguma forma afetados pelas águas, perderam mercadorias ou comprometeram, ainda que parcialmente, a sua operação regular.  Além disso, mesmo empresas que não foram diretamente afetadas precisaram permanecer fechadas durante este fatídico mês de maio de 2024, seja porque estiveram sem o fornecimento de energia elétrica e água, seja porque não puderam receber ou entregar suas mercadorias por conta dos bloqueios nas estradas, ou não puderam contar com seus colaboradores cujas residências foram afetadas, dentre outras razões ligadas ao colapso sistêmico que se instaurou no Estado.

Os efeitos da catástrofe ainda serão sentidos por muito tempo nas empresas do Rio Grande do Sul e no ambiente de negócios local como um todo e, por isso, é imperioso que sejam levadas a cabo as medidas urgentes de auxílio financeiro às empresas dos Municípios afetados pela calamidade pública para que essas possam seguir produzindo riqueza e gerando empregos para a população local. No presente artigo, trataremos de analisar as medidas de suporte financeiro em vigor e também as já anunciadas pelo Governo Federal, porém ainda não implementadas, além de, ao final, propormos algumas soluções para o enorme desafio de longo prazo que se coloca de financiar os projetos de reconstrução das empresas e do ecossistema de negócios no nosso Estado. Antes, porém, relembraremos aos leitores algumas premissas necessárias para a correta compreensão do fenômeno do financiamento corporativo e de projetos e do endividamento das empresas para que reste clara a importância de medidas de apoio estatal para a sobrevivência, manutenção dos empregos e geração de riqueza por parte das empresas afetadas direta ou indiretamente pelas cheias da região.

Financiamento corporativo e de projetos e endividamento das empresas

Toda e qualquer empresa conta, em situação de normalidade, grosso modo, com duas fontes de recursos (funding) para implementar a visão de longo prazo de seus empreendedores: (i) os recursos aportados pelos seus sócios a título de participação societária (equity), os quais compõem ou virão a compor seu capital social, além de (ii) dívidas contraídas junto a instituições financeiras (mútuo feneratício) ou por meio da emissão e distribuição de valores mobiliários. A tomada de dívida  pelas empresas tem papel fundamental para a expansão de qualquer negócio com um mínimo de escalabilidade. Com tais recursos em caixa, os empreendedores são capazes de ampliar o número de funcionários, investir em obras, maquinário, novos projetos, desenvolver novos produtos, investir em pesquisa e desenvolvimento, em marketing e publicidade, dentre outros. Esses investimentos são o que vai possibilitar o aumento das receitas das empresas, viabilizando seu ganho de escala e, com isso, permitindo-as pagar o principal e o serviço da dívida (juros remuneratórios) e ainda obter algum ganho no lucro líquido apurado após o balanço. Além disso, porém, empresas costumam tomar dívidas para que tenham recursos destinados a seu capital de giro, i.e., para fazer frente às obrigações que se vencerem ao longo do mês, sem que precisem depender de suas receitas no mesmo período, ajustando assim seus ativos e passivos (assets and liabilities) ao longo de um período maior de tempo.

Há quase incontáveis operações financeiras que são disponibilizadas pelos bancos para atender às demandas das empresas, desde desconto de duplicatas, antecipação de recebíveis de cartão de crédito, até o financiamento de longo prazo para a implementação de projetos e inovação, para citar apenas algumas delas. Após a tomada de dívida, no âmbito de qualquer empresa saudável financeiramente, se estabelece um equilíbrio entre as obrigações que a empresa tem de fazer frente mês a mês e as suas receitas habituais. A calamidade pública que se instaurou nas áreas afetadas pelo dilúvio, entretanto, como já dito, teve muito frequentemente impacto nas operações quotidianas das empresas da região, causando importante perda de receitas e o sucessivo descompasso em relação a suas despesas, mesmo para aquelas empresas que não foram efetivamente inundadas e tiveram severos danos materiais – em relação as quais a situação é ainda mais grave.

Novo standstill do BNDES para as empresas gaúchas

Dentre as medidas já implementadas pelo Governo Federal para mitigar os efeitos deletérios da crise financeira instaurada nas empresas das regiões afetadas pelas cheias está a suspensão temporária de pagamentos (standstill), por até 12 meses, bem como o alongamento do prazo de amortização dos empréstimos para clientes do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) de cidades atingidas pelo desastre natural no Rio Grande do Sul, a exemplo de medida idêntica que fora adotada no período da pandemia de Covid-19. Tal suspensão precisa ser solicitada pelos mutuários do banco até o dia 31 de outubro de 2024 e se aplica tanto às operações realizadas pelo próprio BNDES, ditas diretas, como também às indiretas, em que a contratação da linha de crédito da instituição se deu através de um agente financeiro, que pode ser banco público ou privado, agência de fomento ou cooperativa de crédito. As condições para as operações indiretas encontram-se descritas na Circular nº 32/2024 do BNDES, a qual prevê a formalização de aditivo ao instrumento original por meio do qual tenha sido formalizada a operação.

Crédito emergencial com recursos da União

Já em 9 de maio de 2024, foi editada a Medida Provisória (MP) nº 1.216/2024, a qual previu a concessão de subvenção econômica no valor de até R$ 2.000.000.000,00 (dois bilhões de reais) por parte do Executivo Federal a mutuários que tiveram perdas materiais nas áreas afetadas pelos eventos climáticos extremos ocorridos nos meses de abril e maio de 2024, nos termos do disposto no Decreto Legislativo nº 36, de 2024.

Tais recursos foram destinados exclusivamente para operações de crédito a serem contratadas com instituição financeiras federais no âmbito do Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte – PRONAMPE no que se refere ao apoio a empresas (tendo sido, não obstante, dirigidos também para programas agrícolas). A subvenção econômica deve ser operacionalizada mediante desconto sobre o valor do crédito aos mutuários enquadrados na MP. Significa dizer que esses recursos, em termos práticos, servem para, já no momento da contratação, reduzir o saldo devedor das micro e pequenas empresas elegíveis a essa linha e tem como desiderato incentivar tais contratações emergenciais para amparar as empresas afetadas pelo desastre climático.

Além disso, referida MP também destinou adicionais R$ 4.500.000.000,00 (quatro bilhões e quinhentos milhões de reais) ao Fundo Garantidor de Operações (FGO), regulado pela Lei nº 12.087/2009 e também pela Lei nº 13.999/2020, podendo seu utilizado pelas empresas que tomarem recursos vinculados ao PRONAMPE para atender às exigências impostas pelas instituições financeiras de garantias para os empréstimos e reduzir o risco das operações financeiras.

Ainda, a MP instituiu o Programa Emergencial de Acesso a Crédito Solidário para atendimento à catástrofe natural em Munícipios do Estado do Rio Grande do Sul – Peac-FGI Crédito Solidário RS, possibilitando a utilização de outro fundo garantidor, no caso o Fundo Garantidor de Investimentos (FGI), gerido pelo BNDES, destinado a empresas com receita brut anual de até R$ 300.000.000,00 (trezentos milhões de reais). A União restou autorizada a aumentar em até R$ 20.550.000.000,00 (vinte bilhões e quinhentos e cinquenta milhões de reais) a sua participação no FGI, exclusivamente para a cobertura das operações contratadas no âmbito do Peac-FGI e no Peac-FGI Crédito Solidário RS.

Como se não bastasse, o art. 5º da MP autorizou a União a conceder subvenção a fundos de financiamento à estruturação de projetos, limitada ao valor de R$ 200.000.000,00 (duzentos milhões de reais), sob a forma de fomento não reembolsável, com a finalidade de constituir rede de estruturadores de projetos voltados a medidas de enfrentamento das consequências sociais e econômicas decorrentes dos eventos climáticos extremos.

Em 23 de mio de 2024, foi publicada a Portaria nº 843 do Ministério da Fazenda, regulamentando o uso dos recursos da MP destinados ao PRONAMPE, estabelecendo a forma de se operacionalizar as contratações com as empresas afetadas.

Crédito para fomento da inovação

Por seu turno, o Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação (MCTI) anunciou a criação de uma nova linha de crédito para capital de giro associado aos investimentos em infraestrutura de PD&I destindas a empresas inovadoras que receberam financiamento da Embrapii, BNDES e Lei do Bem ou Finep nos últimos 10 anos. Da mesma forma, a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) anunciou a criação de uma linha de crédito para o Rio Grande do Sul destinada a reparos emergenciais de equipamentos para Centros de e reparos emergenciais de equipamentos para pesquisadores. Igualmente, o Ministério do Turismo anunciou a utilização de R$ 200 milhões de reais do Fundo Geral de Turismo (Novo Fungetur) voltados à concessão de financiamentos com condições especiais a atividades turísticas prejudicadas a serem utilizados para capital de giro, compra de equipamentos e obras de reforma e ampliação.

Uso do Fundo Social com recursos do pré-sal

A Medida Provisória nº 1.226, editada em 29 de maio de 2024, promoveu alterações na Lei nº 12.351/2010 que instituiu o Fundo Social (FS), o qual é composto principalmente por recursos dos royalties do pré-sal, possibilitando destinação de recursos para a disponibilização de linhas de financiamento a pessoas jurídicas e físicas localizadas em ente federativo em estado de calamidade pública.

A MP previu ainda a destinação do superávit financeiro do FS apurado em 31 de dezembro de 2023, no montante de até R$ 15.000.000.000,00 (quinze bilhões de reais), como fonte de recursos para a disponibilização de linhas de financiamento que serão operadas pelo BNDES para apoiar empresas de diversos portes financeiros.

Em 5 de junho de 2024, a MP em questão foi regulamentada pela Resolução nº 5.140 do Conselho Monetário Nacional (CMN), dando contornos mais definidos às linhas de crédito a serem disponibilizadas pelo BNDES e seus agentes financeiros, prevendo a remuneração máxima das instituições financeiras e do próprio FS de acordo com a modalidade da operação e o porte da empresa tomadora do crédito. As empresas poderão utilizar os recursos tomados para a finalidade de capital de giro, projetos de investimento, aquisição de máquinas e equipamentos, materiais de construção ou serviços relacionados, e deverão, no instrumento de crédito a ser avençado com a instituição financeira, firmar compromisso de manutenção ou ampliação do número de empregos. O prazo total previsto para pagamento desses financiamentos é de até cento e vinte (120) meses, com carência de até vinte e quatro (24) meses.

Demais medidas para auxílio das empresas afetadas

A essas medidas creditícias que estão sendo implementadas somam-se outras também destinadas contribuir para a recuperação econômica das regiões afetadas pelas enchentes no que se refere ao apoio às empresas, tais como isenções tributárias, a exemplo daquelas aprovadas pela Câmara Municipal de Porto Alegre  referente ao Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) e da Taxa de Coleta de Lixo (TCL) dos imóveis atingidos pelas enchentes. Assim também são as medidas decorrentes da aplicação da Lei nº 14.437/2022, criada durante a pandemia, mas também aplicável ao caso em tela, no que se refere a normas trabalhistas e a suspensão do recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) pelos empregadores situados em municípios do Rio Grande do Sul alcançados por estado de calamidade pública de que trata a Portaria nº 729 do Ministério do Trabalho e Emprego.

Considerações finais

Todas essas medidas referidas anteriormente certamente serão fundamentais para a reconstrução do Estado no que toca à atividade das empresas privadas afetadas direta ou indiretamente pela calamidade pública. É imperioso, no entanto, que tais recursos sejam liberados de forma ágil aos beneficiários para garantir a sobrevivência e manutenção da atividade produtiva das empresas e dos correlatos empregos gerados a partir disso. O caminho até então explorado, como visto, é o da utilização de recursos da União decorrentes de impostos e de fundos legais para promover a maior atratividade de linhas de crédito, seja através da redução do custo efetivo total das operações de crédito ou pela prestação de garantia por fundos especiais.

Ulteriores iniciativas, porém, são desejáveis para garantir que as empresas possam financiar seus projetos no Estado ao longo dos próximos anos. É importante que, para isso, possa haver a adequada conjunção de esforços e de recursos públicos e privados, bem como de recursos reembolsáveis e não reembolsáveis (blended finance).

Por fim, refira-se que as tecnologias utilizadas no âmbito das chamadas finanças descentralizadas (DeFi) também podem ter papel fundamental nesse esforço comum de reconstrução e aporte de recursos estatais e privados. O sistema de registros descentralizados (distributed ledger technology – DLT) associados a iniciativas de blended finance tem o potencial de permitir a rastreabilidade dos recursos não reembolsáveis, sejam públicos ou privados, aportados de modo a se evitar desvio de finalidade e também para que a efetividade dessas iniciativas possa ser adequadamente mensurada.

Fernando Gavronski Guimarães

Advogado, Mestre em Direito pela UFRGS, membro do IARGS, membro da Comissão de Relações Internacionais da OAB/RS e da Comissão Especial de Criptomoedas e Blockchain do Conselho Federal da OAB

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