22/08/2024 07h31 - Atualizado 22/08/2024 11h07

Enchentes no RS e Autismo: impactos, desafios e assistência

Por Terezinha
para IARGS

Os impactos das enchentes no Rio Grande do Sul foram devastadores para a população e para o meio ambiente, motivo pelo qual o evento tem sido considerado um dos piores desastres naturais do Brasil. Os danos ocasionados pelas enchentes no estado foram tantos, notadamente na região metropolitana de Porto Alegre, que houve a mobilização coletiva da sociedade brasileira e dos entes políticos e governamentais de diversas instâncias para o envio de doações e de ajuda humanitária, além da busca urgente por recursos para a reconstrução das áreas atingidas.

Assim, milhares de famílias foram diretas ou indiretamente afetadas. Casas foram inundadas, propriedades, estradas, pontes foram destruídas, serviços básicos foram comprometidos, pessoas precisaram evacuar de suas residências para locais seguros.  Muitas famílias, incluindo aquelas com pessoas com transtorno do espectro do autismo (TEA), foram forçadas a sair de suas residências e buscaram abrigos temporários, casas de parentes, amigos. Os desafios foram físicos e emocionais, afetando sua rotina diária, bem-estar, bem como, falta do acesso a serviços de apoio.

O TEA, ou simplesmente autismo, é um transtorno do neurodesenvolvimento. Isso significa que algumas funções neurológicas não se desenvolvem como deveriam nas expectativas nas áreas cerebrais das pessoas acometidas por ele. É uma condição muito complexa, e muitos fatores contribuem para o risco. São muitas as disfunções neurológicas encontradas em pessoas com autismo. O próprio nome Transtorno do Espectro Autismo, já nos dá uma ideia de amplitude e variedade. De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV), o autismo refere-se a um transtorno no qual as pessoas manifestam as seguintes características: prejuízos na interação social, problemas de comunicação e atividades e interesses repetitivos, estereotipados e limitados.

A catástrofe implicou diretamente na ruptura das atividades do cotidiano das crianças, adolescentes e adultos com TEA e seus familiares. Suas rotinas foram diretamente afetadas como por exemplo: ir para escola, trabalho, realizar as terapias (quando se tinha acesso a tratamento) salientando que muitos não possuem acesso a tratamentos. Além disso, exacerbando as principais dificuldades e características decorrentes do diagnóstico que já permeavam suas vidas como: rigidez cognitiva, alterações sensoriais, condição financeira, locomoção, moradia, restrições alimentares e aspectos comportamentais. Também as mudanças abruptas de ambiente, intensificação de estímulos sensoriais como sirenes, ambulâncias e sons de aeronaves, na maioria das vezes são desafiadoras para pacientes com TEA, causando crises de estresse e ansiedade em alguns casos, assim como, estar em locais com muitas pessoas desconhecidas e a falta de cuidados especializados contribui para a saturação sensorial.

Ter locais adaptados para pessoas autistas é crucial por várias razões, especialmente em emergências, como enchentes. Destarte, foi necessário compreender os impactos e desafios para proporcionar o suporte necessário garantindo segurança, apoio qualificado, inclusivo e adequado às pessoas com autismo e seus familiares. Muitos foram os desafios enfrentados. Nesse sentido, destaco um breve relato anônimo de uma mãe atípica que foi impactada diretamente pelas enchentes:

Sai de casa com meus dois filhos um deles autista de 4 anos e meu marido com água pelos joelhos. Fomos para casa dos meus irmãos e lá permanecemos por trinta e dois dias.  Foi muito triste viver tudo que vivemos pelo fato de ver a nossa casa tomada pela água, nossos móveis quase todos perdidos, os brinquedos favoritos do meu filho… Era uma angústia diária, pois não sabíamos quando retornaríamos para casa e como iríamos recomeçar.  Foi difícil passar por tanta coisa e tentar não transparecer para os nossos filhos, não deixamos que eles vissem o estado que ficou a nossa casa, principalmente o menor que é autista. Tenho crises de ansiedade até hoje, creio que foi por tudo que passamos. Mesmo que sejam meus familiares, esta longe de ser como na nossa casa. Apesar de ser meu irmão e minha cunhada, todos nós temos nossos hábitos, horários e tudo mudou.

Os primeiros dias foram menos difíceis, pois achávamos que logo voltaríamos para a casa, mas aos poucos a situação foi ficando mais preocupante, o meu filho por ser autista tem algumas particularidades, faz barulho, nem sempre e compreende que é hora de parar e por mais que nos dissessem que está tudo bem… nós não nos sentíamos confortáveis, pois parecia que não conseguíamos controlar a situação. Sem falar que nosso nível de estresse, já estava nas alturas. Por vezes, meu filho fazia muitas birras, não queria ir dormir e nos tínhamos que respeitar o horário dos donos da casa, que geralmente não dormem tarde. Ficávamos no quarto tentando entreter nosso filho de todas as formas para que ele não fizesse barulho.

Foi aí que infelizmente fomos “obrigados” a deixar ele ficar um pouco com o celular, coisa que anteriormente não ocorria, pois não sabíamos mais como deixá-lo mais calmo, pois já estava há muitos dias sem ir à escola e às terapias. Tínhamos acompanhamento e suporte online dos terapeutas sempre que necessário por vídeo chamada, mas o fato de não irmos as terapias presenciais e a escola deixaram o meu filho mais agitado e passou a fazer muitas birras. Foram 32 dias desafiadores, realmente. Graças a Deus, tivemos o apoio de amigos, familiares e a clínica que meu filho faz as terapias, conseguimos nos reestruturar e voltar para a nossa casa.

Na maioria dos casos, é necessário intervenção terapêutica especializada para realizar suas atividades de vida, tais como, psicoterapia, terapia ocupacional e terapia comportamental, para desenvolver habilidades sociais e emocionais, bem como lidar com desafios sensoriais.  Quando há uma quebra no tratamento da criança, adolescente a adulto tem-se um prejuízo significativo na realização e continuidade do seu tratamento. Nesse relato, a mãe disse que seu filho teve o apoio e suporte online da clínica, considerando, a dificuldade de locomoção até o local de tratamento do seu filho, mas mesmo tendo todo apoio enfrentou muitas dificuldades por todos os motivos expostos, mas   principalmente a quebra da rotina do seu filho e família.

Nesse sentido, é importante o apoio da sociedade, entidades e principalmente reconhecer e parabenizar o excelente trabalho realizado pelas ONGs que é essencial para pessoas com autismo e famílias atípicas, principalmente em situações de vulnerabilidade. As enchentes no Rio Grande do Sul são um lembrete da importância de preparar planos de emergência e olhar atentamente as necessidades das pessoas e famílias com necessidades especiais, tais como, criação de políticas públicas, campanhas de conscientização, assistência especializada e continuada, políticas educacionais, de empregabilidade e de inclusão que sejam satisfatórias.

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Isis de; BENITEZ, Priscila. O brincar e a criança com Transtorno do Espectro Autista: revisão de estudos brasileiros. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação. Araraquara. v. 15, n. 4, p. 1939-1953, out/dez. 2020.
Cardoso C, Rocha JFL, Moreira CS, Pinto AL. Desempenho sócio-cognitivo e diferentes situações comunicativas em grupos de crianças com diagnósticos distintos. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(2):140-
O Desenvolvimento do Autismo Social, Cognitivo, Linguístico, Sensório-motor e Perspectivas Biológicas, Editora: M. BOOKS, Autor: WHITMAN
SOS Autismo: Guia completo para entender o Transtorno do Espectro Autista, de Gaiato, Mayra. Editorial n Versos Editora Ltda.

Estéfani Luise Fernandes Teixeira

Associada do IARGS, advogada. Mestra em Direito pela UPF; especialização em Direito Médico e da Saúde pela PUCPR. Membro da Comissão Especial da Saúde da OABRS; consócia do IAB

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