Enchente de 2024 e a obrigação de pagar aluguéis entre ex-cônjuges
para IARGS
A enchente que assolou o Rio Grande do Sul trouxe consequências dramáticas para os gaúchos. Fortes chuvas causaram o transbordamento de rios e arroios, inundando cidades e bairros inteiros e deixando um rastro de destruição. Em diversas áreas, casas foram engolidas pelas águas e tiveram danos irreparáveis.
Milhares de pessoas, bruscamente, encontraram-se sem ter onde morar, precisando ser acolhidas em abrigos provisórios, casas de parentes ou amigos. Um cenário desolador para o povo rio-grandense, cuja bravura e união foram colocadas à prova.
Sem acesso temporário ou permanente a suas residências, as pessoas atingidas não só precisaram buscar alternativas de moradia – em meio a uma verdadeira escassez imobiliária –, mas também tiveram de continuar satisfazendo as suas obrigações financeiras, como a de continuar pagando os aluguéis de imóveis inundados a ex-cônjuges ou ex-companheiros.
É que ao final de um relacionamento estável ou casamento em que o par adquire conjuntamente um bem imóvel, habitualmente ocorre o arbitramento de alugueis a ser pago por aquele que dele permanece usufruindo sozinho. Isso porque a solidariedade familiar confere concretude aos princípios da eticidade e da sociabilidade, originando o dever de indenizar o uso individual do imóvel comum.
Havendo o término de uma vida em comum, tem de ser assegurada a divisão do patrimônio construído conjuntamente durante o período de união e que permanece em mancomunhão, ou seja, propriedade em mão comum, para depois ser estabelecido o dever de pagar alugueis.
Com efeito, a jurisprudência é significativa no sentido de que, enquanto não formalizada a partilha dos bens amealhados conjuntamente, descabe a fixação de aluguel pelo uso exclusivo de imóveis comuns por uma das partes. Ou seja, a fixação de indenização exige certeza inequívoca quanto à parte que toca a cada um, até para que os alugueis possam ser estabelecidos proporcionalmente.
Uma vez decidida a partilha ou, pelo menos, indiscutível a participação de cada um no imóvel, segundo o Superior Tribunal de Justiça, o uso exclusivo sem indenização geraria uma hipótese de enriquecimento sem causa.
Não por outra razão, há inúmeras pessoas que vivenciam este cenário: a mantença de bens comuns mesmo após o término do casamento ou da união estável, mediante o pagamento de alugueis, condizentes com a participação de cada um sobre o bem. Se, por exemplo, a divisão é equânime, cabe àquele que usa o bem o pagamento de 50% de um aluguel a ser arbitrado por consenso ou, na hipótese de discórdia, por um juiz.
Para essas pessoas que vivenciam na prática este tipo de situação, a imprevisível enchente veio a causar um enorme desafio, recomendando a suspensão da obrigação de pagar ou a necessidade de reajustes no valor dos locativos.
Cuida-se da aplicação da teoria da imprevisão, amplamente reconhecida pelo Tribunal da Cidadania, aos contratos de aluguel de bem comum, como ocorre entre ex-cônjuges e ex-companheiros.
A teoria da imprevisão, também conhecida como teoria da imprevisibilidade ou força maior, estabelece que contratos podem ser revisados ou ajustados quando eventos extraordinários e imprevisíveis alteram substancialmente as condições de cumprimento.
No caso da enchente que abalou o sul do Brasil, essa teoria acabou sendo invocada por advogados familiaristas para solicitar a suspensão ou reajuste dos alugueis, frente à dificuldade de cumprimento dos termos estabelecidos antes do desastre.
Tendo a enchente comprometido a habitabilidade de um imóvel comum, além de a impossibilidade de usá-lo justificar a revisão ou suspensão temporária do pagamento do aluguel, uma vez que a situação altera a capacidade de usufruir do bem, imperiosa a divisão dos custos com reparos entre os coproprietários, na proporção de titularidade de cada um. A teoria da imprevisão consiste na base legal para essas adaptações, ajudando a equilibrar os interesses dos envolvidos.
Por outro lado, a teoria da imprevisão não serve para desfazer as partilhas já sedimentadas. Se, por exemplo, um ex-casal decidiu que tocaria um apartamento para um e uma casa para o outro, o perdimento de qualquer deles decorrente da enchente não tem o condão de desfazer o ajuste, quer tenha ele sido estabelecido por acordo ou judicialmente. Tampouco justifica a divisão de custos com reparos, na hipótese de estragos.
Sabe-se que a mantença de bens comuns entre pessoas que terminaram relacionamentos tende a ser difícil, dada a carga afetiva envolvida. Na maioria das hipóteses, não se trata de opção, mas necessidade.
Assim, buscar a via consensual para resolver conflitos decorrentes da obrigação de pagar alugueis pelo uso de imóvel comum mostra-se de extrema importância, mormente em um contexto tão excepcional, que afetou uma população inteira.
Ao negociarem diretamente e de forma colaborativa, ex-cônjuges e ex-companheiros têm a oportunidade de agir com solidariedade, evitando, inclusive, a escalada de conflitos, especialmente quando há filhos.
Seja como for, é inegável que a enchente trouxe desafios pessoais e para um povo inteiro, sendo um momento único para se exercitar a ética, de todas as suas formas.
Marta Cauduro Oppermann
Associada do IARGS, advogada, sócia fundadora do escritório Maria Berenice Dias Advogados, especialista em Direito das Família e Sucessões