As Medidas Trabalhistas para enfrentamento das consequências das inundações no Rio Grande do Sul
para IARGS
No final do mês de abril e durante o mês de maio de 2024, o Rio Grande do Sul sofreu as maiores inundações de sua história, o que acarretou a decretação de estado de calamidade pública ou de emergência na maioria dos municípios do estado. O desastre climático sem precedentes que nos atingiu, causando destruição e mortes, impactou imediata e profundamente a vida em sociedade e a economia. As relações laborais também foram fortemente impactadas, principalmente por milhares de empregados e empregadores terem sido diretamente atingidos. Muitos trabalhadores tiveram de abandonar suas residências temporariamente ou as perderam em definitivo, ao passo que inúmeras empresas tiveram de paralisar suas atividades ou de reconstruir seus estabelecimentos.
Em um primeiro momento, foram anunciadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego – MTE as seguintes iniciativas para auxiliar trabalhadores residentes em municípios em estado de calamidade pública: antecipação do pagamento das parcelas do abono salarial referentes aos lotes dos meses de junho, julho e agosto de 2024; pagamento de duas parcelas adicionais do seguro-desemprego; e Saque Calamidade do FGTS, no valor de até R$ 6.220,00 (seis mil duzentos e vinte reais) do saldo de cada conta.
Em 08 de maio de 2024, o MTE anunciou ter definido um prazo de noventa dias, prorrogável por mais noventa dias, para as empresas adotarem medidas de teletrabalho, antecipação de férias individuais, concessão de férias coletivas, aproveitamento e antecipação de feriados e banco de horas (https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/noticias-e-conteudo/2024/Maio/
mte-libera-recursos-de-fgts-abono-salarial-e-seguro-desemprego-para-atingidos-pe-las-chuvas-no-rs). Entretanto, o artigo 2º da Lei 14.437/2022, que trata de teletrabalho, banco de horas, suspensão da exigibilidade dos recolhimentos do FGTS, antecipação de férias individuais e concessão de férias coletivas, pode ser aplicado somente se houver edição de ato autorizador por parte do MTE, o que, contudo, acabou não ocorrendo.
Em entrevista concedida em 17 de maio de 2024 ao Jornal Zero Hora, o Ministro do Trabalho e Emprego sugeriu que tais medidas fossem adotadas mediante acordo coletivo ou convenção coletiva de trabalho. Realmente, a maioria das medidas em questão podem ser contratadas coletivamente; muitas podem ser ajustadas individualmente; e algumas até mesmo adotadas por decisão unilateral do empregador. No entanto, ante as limitações impostas momentaneamente pelas inundações, na prática, em muitos casos, é inviável cumprir as formalidades e/ou os prazos legais para tanto. Daí porque a necessidade de edição do ato autorizador por parte do MTE.
A Portaria MTE nº 729, de 15 de maio de 2024, autorizou a suspensão da exigibilidade dos recolhimentos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, referentes às competências de abril a julho de 2024, devidos por empregadores situados nos municípios do Rio Grande do Sul alcançados pelo estado de calamidade reconhecido pela Portaria nº 1.377, de 05 de maio de 2024, da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, alterada pela Portaria nº 1.587, de 13 de maio de 2024.
A Portaria MTE nº 838, de 27 de maio de 2024, suspendeu, pelo prazo de noventa dias, as seguintes exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho: revisão da avaliação de riscos integrantes do Programa de Gerenciamento de Riscos – PGR, que tenha vencimento durante o estado de calamidade pública; obrigatoriedade de realização dos exames médicos periódicos, clínicos e complementares, exceto se o médico coordenador de programa de controle médico e saúde ocupacional – PCMSO considerar que a prorrogação representa risco para a saúde do empregado; obrigatoriedade de realização do exame médico demissional, caso o exame médico mais recente tenha sido realizado há menos de noventa dias; elaboração do Relatório Analítico do PCMSO; obrigatoriedade de realização de treinamentos periódicos dos empregados, previstos em normas regulamentadoras de segurança e saúde no trabalho, podendo a parte teórica ser realizada imediatamente pela modalidade de ensino à distância; e realização da eleição dos integrantes das comissões internas de prevenção de acidentes e assédio – CIPA, sendo permitido que os mandatos dos atuais integrantes sejam prorrogados por noventa dias.
Havia grande expectativa a respeito da aplicação da Lei nº 14.437, de 16 de agosto de 2022. Referida lei, baseada nas experiências bem-sucedidas da aplicação do disposto nas Medidas Provisórias 927, de 22 de março de 2020, e 936, de 1º de abril de 2020, editadas durante a pandemia de COVID-19, autoriza o Poder Executivo federal a dispor sobre a adoção, por empregados e empregadores, de medidas trabalhistas alternativas e sobre o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, para enfrentamento das consequências sociais e econômicas de estado de calamidade pública em âmbito nacional ou em âmbito estadual, distrital ou municipal reconhecido pelo Poder Executivo federal.
Mencionada expectativa restou frustrada, mesmo tendo o legislador definido que as providências previstas na Lei nº 14.437 seriam as adequadas para o enfrentamento das consequências sociais e econômicas de estado de calamidade pública. O Governo Federal preferiu inovar e editou a Medida Provisória 1.230, alterada em 18 de junho de 2024 pela Medida Provisória 1.234 e regulamentada em 19 de junho de 2024 pela Portaria MTE nº 991. Dita Medida Provisória institui Apoio Financeiro aos trabalhadores com vínculo formal de emprego, incluindo os domésticos, e aos estagiários e aos pescadores profissionais artesanais, com o objetivo de enfrentar a calamidade pública e as suas consequências sociais e econômicas decorrentes de eventos climáticos no estado do Rio Grande do Sul.
Tal Apoio Financeiro consistirá no pagamento de duas parcelas no valor de R$ 1.412,00 (mil quatrocentos e doze reais) cada, nos meses de julho e agosto de 2024, diretamente aos trabalhadores beneficiados, “condicionada à localização dos estabelecimentos das empresas em áreas efetivamente atingidas”. Além disso, o recebimento do Apoio Financeiro pelos trabalhadores com vínculo formal de emprego ficará condicionado à adesão das empresas, mediante: manutenção do vínculo formal de todos os trabalhadores do estabelecimento por, no mínimo, dois meses subsequentes aos meses de pagamento do Apoio Financeiro; manutenção do valor equivalente à última remuneração mensal recebida até a data de publicação da Medida Provisória nos dois meses de recebimento do Apoio Financeiro e nos dois meses subsequentes; manutenção das obrigações trabalhistas e previdenciárias devidas aos empregados; e apresentação de declaração de redução do faturamento e da capacidade de operação do estabelecimento em decorrência dos eventos climáticos, que impossibilite o cumprimento de suas obrigações de pagamento da folha salarial. Por derradeiro, não receberão o auxílio as empresas em débito com o sistema da seguridade social. A combinação de previsão de pagamento de valores reduzidos e por pouco tempo com exigências abundantes e duradouras fez, logicamente, com que pouquíssimos empregadores aderissem ao programa.
Surpreendeu ainda o Poder Executivo ao prever, no art. 12 da Medida Provisória 1.230, a prorrogação, por cento e vinte dias, contados da data de sua publicação, das convenções e dos acordos coletivos de trabalho firmados nos municípios do Rio Grande do Sul com estado de calamidade pública ou situação de emergência, reconhecidos pelo Poder Executivo federal, em áreas efetivamente atingidas, conforme delimitação georreferenciada, nos termos de ato do Ministro do Trabalho e Emprego. Esta inédita e descabida interferência na autonomia da vontade coletiva e violação ao princípio da intervenção mínima contradiz a recente declaração do Ministro do Trabalho e Emprego segundo a qual a negociação coletiva, mesmo nesta situação anormal que vivenciamos, “é o melhor caminho”. Ora, qual a justificativa então para a prorrogação da vigência das convenções e dos acordos coletivos de trabalho, se não há, no entender da autoridade citada, óbice para a realização de negociação visando sua renovação?
A resposta do Governo Federal ao clamor das lideranças empresariais, políticas e sindicais gaúchas por medidas trabalhistas adequadas para o enfrentamento das consequências das inundações foi tardia (pois refere-se às folhas de pagamento de salários dos meses de junho e julho de 2024, não se aplicando à folha do mês de maio de 2024) e insuficiente. Ante a gravidade das implicações das enchentes, inclusive relativamente às relações laborais, espera-se que o Congresso Nacional aprecie com urgência a Medida Provisória 1.230 e a aprove com aprimoramentos, de modo a realmente auxiliar a conservação de empregos e empresas atingidos pela catástrofe.
Gustavo Juchem
Advogado, Diretor do Departamento de Direito do Trabalho do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul