Artigo- Segurança pública Versus Práticas de Extermínio: o caso de Jacarezinho – RJ
para IARGS
Artigo do advogado, Mestre e Doutor em Direito, Dr Henrique Abel
Tema: Segurança Pública versus Práticas de Extermínio: O Caso de Jacarezinho – RJ
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Entre todas as ideias equivocadas que constituem o senso comum sobre políticas de segurança pública no Brasil, talvez nenhuma seja mais perigosa e destrutiva do que a crença de que o combate eficaz à criminalidade passa necessariamente pelo atropelo de direitos humanos e de garantias fundamentais próprias do Estado Democrático de Direito.
Conforme sustentei de maneira mais aprofundada em artigo[i] publicado no ano de 2020 na revista Crítica Jurídica, da pós-graduação em Direito da Universidade Nacional Autônoma do México (trabalho ao qual remeto o leitor para uma análise mais aprofundada do problema aqui abordado), a comparação de dados de múltiplos relatórios internacionais recentes sobre direitos humanos e paz social aponta para a existência de uma clara correlação entre ordenamentos jurídicos comprometidos com o respeito a direitos e garantias fundamentais e o sucesso destes ordenamentos em proporcionar aos seus cidadãos níveis elevados de pacificação social. Dito de outro modo: a ordem democrática civilizada, dentro dos padrões contemporâneos, não é erguida “à base de bala” – mas sim por meio do império do Direito democraticamente construído e de instituições sólidas e funcionais.
O caso específico da recente chacina ocorrida na comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, é emblemático em relação aos déficits de cidadania, legalidade e democracia que permeiam as políticas de segurança pública em nosso país. Do flagrante desrespeito à decisão[ii] do STF na ADPF 635 (que proibiu a realização de operações policiais em comunidades cariocas enquanto perdurar a situação de calamidade pública imposta pela pandemia de Covid-19 em andamento) aos chocantes números da carnificina (vinte e oito pessoas assassinadas pelas forças policiais em uma única operação, em um único dia), não faltam motivos para que qualquer indivíduo – do mais leigo em Direito dos cidadãos ao operador mais experiente das carreiras jurídicas – se veja perplexo com as circunstâncias do evento.
Ignore, por um momento, as questões jurídicas do caso e proponha-se um exercício imaginativo: vislumbre uma operação policial realizada em um bairro de classe média-alta (desbaratando esquemas de tráfico, lavagem de dinheiro, ou sonegação – digamos, por exemplo, no contexto da Operação Zelotes) que terminasse com a execução sumária de 28 suspeitos no local. Como a opinião pública e a mídia reagiriam a uma situação dessas? Se achamos difícil até mesmo imaginar tal coisa, ao mesmo tempo em que naturalizamos o que ocorreu no Jacarezinho, isso só mostra que já internalizamos em nosso senso comum a ideia de que certas práticas de exceção são aceitáveis – desde que perpetradas em comunidades periféricas e no seio de populações carentes, desassistidas e desprovidas de voz e representatividade.
É neste ritmo, de “fato isolado” em “fato isolado”, que se constrói uma prática sistemática de gestão dos “indesejáveis” por meio de práticas de exceção travestidas de “políticas públicas”. Surpreendentemente, no entanto, esta cruel realidade – apesar de seu caráter recorrente e continuado – permanece fora da pauta do debate político nacional, surgindo de forma episódica tão somente na forma de reações de curto prazo a manchetes pontuais.
Na contemporânea sociedade do espetáculo, na qual um evento “bombástico” é rapidamente esquecido em questão de dias para dar lugar a outro “grande assunto” momentâneo, a nossa memória coletiva perece junto com as vítimas da brutalidade estatal. Será possível que já nos esquecemos de casos como a morte do menino João Pedro em operação realizada no Morro do Salgueiro em maio de 2020, do músico Evaldo dos Santos Rosa (morto após seu carro ser fuzilado por mais de 80 tiros disparados por militares em abril de 2019), do assassinato do menino de 14 anos Marcos Vinícius no Complexo de Favelas da Maré em junho de 2018 e dos abusos reiterados[iii] cometidos ao longo da intervenção federal com forças militares no Rio de Janeiro em 2018?
Não se trata, por óbvio, de ignorar as severas dificuldades impostas às polícias no combate ostensivo à criminalidade em nosso país, nem de se filiar a um sentimento de abolicionismo penal ingênuo ou de demonização das polícias, norteando-se por fantasias utópicas de paz social “espontânea” que jamais existiram fora do reino da ficção. Nenhuma nação, por mais civilizada e comprometida com princípios de direitos humanos e garantias legais, conseguiu até hoje erradicar por completo o elemento repressivo que é próprio da atividade estatal no exercício do aspecto coercitivo da aplicação da lei. Todavia, “repressão” deve ser entendida, aqui, como aquela exercida única e exclusivamente dentro das hipóteses da lei e nos limites expressos da normatividade sistêmica de um Estado Democrático de Direito. Na democracia contemporânea, não há espaço para solipsismos discricionários e/ou autoritarismos no agir repressivo-coercitivo do Estado.
Se é verdade que facções criminosas se encastelam entre em comunidades periféricas, fazendo de refém populações carentes e abusando de práticas brutais de violência, por certo os agentes estatais que atuam nos perímetros urbanos pátrios não podem se imaginar em situação análoga a de uma “guerra”, tratando cidadãos de comunidades carentes como se fossem inimigos estrangeiros armados em um campo de batalha. Tampouco se encontram autorizados a mimetizar ou emular as mesmas práticas brutais utilizadas pelo crime organizado. Ao contrário dos bandidos, que naturalmente atuam à margem das leis e do Direito, o Estado não pode, em hipótese alguma, se converter ele próprio em criminoso – sob pena de o Poder Público, a cidadania e as instituições se deteriorarem e se converterem em hordas brutalizadas análogas às facções criminosas e aos facínoras que pretendiam combater.
À toda evidência, os fatos que emergem do recente caso de Jacarezinho apontam para um expediente de execuções sumárias em série. É fundamental ter em mente que não faz o menor sentido tentar justificar a chacina com base em julgamentos morais aleatórios do tipo “todo mundo ali era bandido”. Primeiro, porque tal afirmação não encontra respaldo nos fatos conhecidos até o momento[iv]. Segundo, porque a pena de morte é vedada em nosso ordenamento jurídico até mesmo para criminosos julgados e com condenação transitada em julgado (art. 5º, XLVII, “a” da Constituição Federal) – sendo inconcebível, portanto, a aplicação sumária de pena capital para meros suspeitos, que sequer chegaram a ser devidamente processados ou condenados.
É claro que alguns podem achar que só ações policiais rápidas e brutais podem dar à sociedade o sentimento de resposta adequada aos abusos da criminalidade organizada. De fato, o Direito civilizado é frequentemente anticlimático e enfadonho – e, às vezes, torna demorado e tortuoso o processo de prestação de justiça. Em uma sociedade acostumada com os imperativos da instantaneidade e do espetáculo (aquilo que Bauman denomina de “Modernidade Líquida” e Lipovestsky chama de “Hipermodernidade”), o tempo do Direito pode frustrar certas expectativas vingativas e imediatistas. Todavia, a velocidade da Justiça não é a mesma das preferências customizáveis e individuais da sociedade de consumo – e não deve ser. Não custa lembrar: a única alternativa ao Estado de Direito conhecida até hoje é a barbárie populista/tribalista, que se afirma por meio do império da satisfação imediata dos impulsos do baixo-ventre de hordas e turbas de ocasião.
[i] ABEL, Henrique. As garantias fundamentais e os direitos sociais da Constituição Brasileira de 1988 como supostos “obstáculos” para o desenvolvimento econômico e político do país: desconstruindo um mito. Revista Crítica Jurídica Nueva Época – Unam Posgrado Derecho (enero-diciembre 2020), nº 2, p.383-407, 2020. Disponível no endereço eletrônico: tinyurl.com/277vjpuw
[ii] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tutela Provisória Incidental na Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635 Rio de Janeiro (05 de junho de 2020). Decisão disponível no endereço eletrônico: www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF635DECISaO5DEJUNHODE20202.pdf
[iii] RAMOS, Silvia (coord.). Vozes sobre a intervenção. Rio de Janeiro: Observatório da Intervenção/CESeC, agosto de 2018. Disponível no endereço eletrônico: https://cesecseguranca.com.br/textodownload/vozes-sobre-a-intervencao/
[iv] DEUTSCHE WELLE. O que já se sabe sobre o massacre do Jacarezinho. Disponível para consulta no endereço: https://www.dw.com/pt-br/o-que-j%C3%A1-se-sabe-sobre-o-massacre-do-jacarezinho/a-57498522