Artigo da advogada familista, Dra Melissa Telles Barufi, associada do IARGS e presidente do Instituto Proteger
Tema: Reflexões sobre a guarda dos filhos: uma visão a partir das ponderações do professor Jamil Bannura
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A tradicional expressão “Pátrio Poder” foi cedendo lugar as novas formas de denominação, como: poder parental e poder de proteção.
“Hoje é unânime o entendimento de que o pátrio poder é muito mais pátrio dever, mas não só ‘pátrio’, na ótica do constituinte de 1988, mas sim ‘parental’, isto é, dos pais, do marido e da mulher, igualados em direitos e deveres, pelo art. 226, par. 5º, da nova Constituição”.[1] Mas este poder deve ser exercido, única e exclusivamente, no superior interesse do menor e, por isso, deixa de ser um poder para se tornar um dever, uma responsabilidade.
Assim, o poder familiar, ou poder parental, é um conjunto incindível de poderes-deveres, que deve ser altruisticamente exercido à vista do integral desenvolvimento dos filhos, até que esses se bastem em si mesmos. Importando primordialmente a proteção do incapaz, seu benefício essencial.
Vale dizer que pai e mãe são, conjunta, igualitária e simultaneamente, os sujeitos ativos do exercício do poder parental, como efeito da paternidade e da maternidade e não do matrimônio ou da união estável. Assim, ambos os pais devem permanecer exercendo, igualitariamente, os direitos e deveres inerentes ao poder familiar, assegurando a continuidade do benefício ao menor, mesmo depois de desconstituída a sociedade conjugal.
A partir da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989), a questão do interesse da criança em conservar relações pessoais com ambos os pais passa a ser reconhecida como um direito, conforme disposto no artigo 9º. Torna-se importante manter a continuidade da função exercida pelos pais, garantindo-se o vínculo da criança com as linhagens paterna e materna. Como define a Convenção, cabe ao Estado a garantia de manutenção da co-parentalidade, independente da preservação ou não do vínculo conjugal.[2]
Todavia, não foi desta forma que o assunto foi tratado durante tantos anos. Somente com o advento da lei da guarda compartilhada que sobreveio, de forma clara, ao pai e à mãe a oportunidade do exercício conjunto do poder familiar, que antes só encontrava respaldo no Estatuto da Criança e do Adolescente, assegurando aos pais, na separação judicial, no divórcio e na dissolução da união estável, terem seus filhos em sua companhia.
Assim, o entendimento é de que a obrigação de educação e cuidado com os filhos é decorrente do vínculo de filiação e não do casamento. Fazendo-se necessário a distinção entre conjugalidade e parentalidade, observando que a separação ocorre entre marido e mulher, e não entre pais e filhos.
Um filho é responsabilidade, cuidado, zelo e afeto para a vida inteira. As relações entre as pessoas, como o ciclo normal da vida, são feitas de início, meio e fim, mesmo que este fim seja com a morte.
Assim, dito de outra forma, o ciclo do relacionamento entre os pares parentais é finito, enquanto a relação advinda da filiação é eterna, na qual a preocupação e o cuidado não se encerram com a maioridade civil.
Todavia, enquanto na menoridade, ambos os pais, em igualdade de condições, detém o dever e o direito de administrar a vida do filho, buscando o melhor para seu futuro, a partir das tomadas de decisões do presente.
Esta, sem sombra de dúvida, é a regra base que garante o pleno exercício do poder familiar, consubstanciada no melhor interesse da criança e adolescente, que se consagrou a partir da introdução da modalidade da guarda compartilhada no ordenamento jurídico brasileiro.
Os conflitos conjugais afetam diretamente a vida dos menores, porque modificam a estrutura da família e atinge a organização de um de seus subsistemas, o parental.
Diante de tal situação, no intuito de manter todos os personagens da família envolvidos, na a criação e a educação dos filhos e o destes de manterem adequada convivência com os pais motivou o surgimento da forma compartilhada da guarda– que se mostra como uma postura ativa e positiva na vida dos filhos.
Com a guarda compartilhada busca-se atenuar o impacto negativo da ruptura conjugal, enquanto mantêm os dois pais envolvidos na criação dos filhos, validando-lhes o papel parental permanente, ininterrupto e conjunto. Dessa forma, os personagens que compõem a estrutura familiar permanecem os mesmos: os filhos seguem sendo filhos e os pais seguem sendo pais, com todos os ônus e bônus que disto decorre. Portanto, a família segue existindo, embora modificada em seu organograma físico.
Advoga Eduardo de Oliveira Leite, que “a guarda compartilhada mantém, apesar da ruptura, o exercício em comum da autoridade parental e reserva, a cada um dos pais, o direito de participar das decisões importantes que se referem à criança”.[3]
Por sua vez, o psicanalista Sérgio Eduardo Nick formula a noção de guarda compartilhada como “O termo guarda compartilhada ou guarda conjunta de menores (‘joint custody’, em inglês) refere-se à possibilidade dos filhos serem assistidos por ambos os pais. Nela, os pais têm efetiva e equivalente autoridade legal para tomar decisões importantes quanto ao bem-estar de seus filhos e freqüentemente têm uma paridade maior no cuidado a eles do que os pais com guarda única (‘sole custody’, em inglês)”.[4]
Guarda conjunta, ou compartilhada, não se refere apenas à tutela física ou custódia material, mas todos outros atributos da autoridade parental são exercidos em comum, assim, nenhum par parental será um mero visitante, mas ambos os pais terão efetiva e equivalente autoridade parental para tomarem decisões importantes ao bem estar de seus filhos.
Todavia, essa modalidade de guarda deve ser compreendida como aquela forma de custódia em que o menor tem uma residência[5] fixa (na casa do pai, na casa mãe ou de terceiros) – única e não alternada, muitas vezes próxima ao seu colégio, aos vizinhos, ao clube, à pracinha, onde desenvolve suas atividades habituais e onde, é lógico, têm seus amigos.
Assim, o menor precisa contar com a estabilidade de um domicílio, um ponto de referência e um centro de apoio para suas atividades no mundo exterior, enfim, de uma continuidade espacial (além da afetiva) e social, onde finque suas raízes físicas e sociais, com o qual ele sinta uma relação de interesse e onde desenvolva uma aprendizagem doméstica, diária, da vida.
São dessas condições de continuidade, de conservação e de estabilidade que o menor mais precisa no momento da separação de seus pais, não de mudanças e rupturas desnecessárias. Os pais devem tentar manter constante o maior número possível de fatores da vida dos filhos após a ruptura. “A mudança é estressante”, sentencia Edward Teyber.[6]
A residência única – o que hoje denominamos de fixação de moradia, onde o menor se encontra juridicamente domiciliado, define o espaço dos genitores ao exercício de suas obrigações. Assim, permite que os ex-parceiros deliberem conjuntamente sobre o programa geral de educação dos filhos, compreendendo não só a instrução, como meio de desenvolvimento da inteligência ou aquisição de conhecimentos básicos para a vida de relação, como também a que tem um sentido mais amplo, ao desenvolvimento de todas as faculdades físicas e psíquicas do menor.
“Dar educação” exige o concurso de ambos os genitores, “já que ela não depende da competência exclusiva de um só”,[7] pois “enquanto no sistema anteriormente tradicional o guardião tomava sozinho as decisões (sob duplo controle, do juiz e do genitor não-guardião), o exercício conjunto da autoridade parental invoca um acordo permanente entre pais”.[8]
Na guarda compartilhada, não só as grandes opções sobre o programa geral de educação e orientação (escolha do estabelecimento de ensino, prosseguimento ou interrupção dos estudos, escolha de carreiras profissionais, decisão pelo estudo de uma língua estrangeira, educação religiosa, artística, esportiva, lazer, organização de férias e viagens), mas também os atos ordinários, cotidianos e usuais (compra de uniformes e material escolar) – como se praticam no seio de uma família unida – pertencem a ambos os genitores.
Podemos, inclusive, alargarmos nosso rol de exemplificações das interlocuções necessárias entre os pais, as quais devem atender à rotina da criança, seja no horário de dormir, nas regras de estudos, nas regras de inserção social (como questões da idade apta a frequentar festas noturnas), nas orientações médicas, com unicidade de tratamento e médico responsável pelo menor, seguindo a lógica da convergência das diretrizes direcionada aos filhos.
Assim, é necessário dizer que deve haver unicidade nas diretrizes endereçadas aos menores, assim como é feito no curso na sociedade conjugal, onde ambos os pais definem em um só sentido quanto às orientações aos filhos.
Dito de outra forma, o que se faz imprescindível para o sucesso da guarda compartilhada não é a relação amistosa entre os pais, mas sim o respeito nas decisões e um norte único em benefício da prole, quando ambos os pais caminham no mesmo sentido, sem haver discrepâncias significativas entre o tratamento dispensado na casa paterna à casa materna.
A guarda compartilhada, como meio de manter (ou criar) os estreitos laços afetivos entre os pais e filhos, estimula, ainda, o genitor que não detém a moradia ao cumprimento do dever de alimentos. A recíproca, nesse caso, é verdadeira: “Quanto mais o pai se afasta do filho, menos lhe parece evidente o pagamento da pensão”.[9]
Na guarda compartilhada ambos os genitores serão responsáveis pelo sustento dos filhos como ocorre em qualquer modalidade de guarda. Para se chegar ao quantum é analisado a necessidade, possibilidade e proporcionalidade. O dever de sustento não decorre do tipo de guarda e sim do poder familiar.
Assim, também, importante esclarecer que a guarda compartilhada em nada se confunde com moradia ou convivência.
O plano de organização pode contar uma moradia única, como ponto central, e regulamentação de convivência, como também pode estabelecer a moradia alternada – caso a situação indique tal formatação.
O professor Jamil Bannura, neste sentido, nos leva a refletir sobre a possibilidade de se alternar a residência como solução ao problema instalado por conta da pandemia provocada pelo novo COVID-19, onde as pessoas deveriam evitar a circulação.
Assim, a permanência por período prolongado na residência materna e paterna, auxilia na prevenção de contágio, evitando-se translado em curtos espaços de tempo, facilitam no acompanhamento escolar dos filhos, com efetiva participação de ambos dos pais nas atividades e rendimento escolar da prole, favorecem o estreitamento de laços, com maior engajamento nas necessidades diárias e fortalecem o sentimento de confiança no par parental.
A quebra de paradigma e a introdução da guarda compartilhada no ordenamento jurídico brasileiro foi ponto chave para fortalecer o princípio do melhor interesse da criança dentro dos processos de disputa de guarda, fazendo com que os pais se reestruturem para darem suporte aos filhos.
Evidente, não é a solução acabada e perfeita. Em regra, todo o plano de cuidado parental é acompanhado de problemas adicionais, “o que funciona bem para uma família pode causar problemas em outra”, assegura Edward Teyber.[10]
Se tal sistema for adotado por casais amargos e em confrontos, com certeza irá fracassar. Pais não cooperativos, sabotadores, insatisfeitos, que agem em paralelo e boicotam um ao outro, contaminam o tipo de educação que proporcionam a seus filhos e, nesses casos, os arranjos de guarda compartilhada podem ser muito lesivo, causando dupla orientação e prejudicando o desenvolvimento dos menores.
Entretanto, as boas relações entre pais e filhos nos anos que se seguem ao divórcio podem ter uma importância decisiva no bem-estar psicológico e na auto-estima dos filhos, pois a segurança, a confiança e a estabilidade da criança estão diretamente relacionada à manutenção das relações afetivas pais-filhos.
Assim, quando os pais privilegiam a continuidade de suas relações após a ruptura da vida conjugal, há toda uma vantagem em atribuir efeitos jurídicos à atitude de cooperação dos pais, entusiasmando ambos a compartilhar direitos e responsabilidades na proteção e na educação dos filhos, quanto há vantagens emocionais a ambos os envolvidos, proporcionando um melhor relacionamento e uma formação de caráter psicológico do menor sem conflitos.
No Direito de Família, não há padrão. Cada caso é um caso e cada indivíduo detém a sua sigularidade tão particularizada que, a massificação, destrói o que há de mais belo na área, que é a particularidade.
E assim, seguimos na tentativa de colaborar para a construção de relações parentais mais evoluídas, para um dia se alcançar a verdadeira proteção integral.
[1] LEITE, Eduardo de Oliveira. Famílias monoparentais. São Paulo: RT, 1997.
[2] BRITO, Leila Maria Torraca de. Parecer sobre a aplicabilidade da guarda compartilhada. Disponível em: http://www.apase.org.br, Acesso em 15/11/2020.
[3] LEITE, Eduardo de Oliveira. Famílias… cit., p. 261.
[4] NICK, Sérgio Eduardo. Guarda compartilhada: um novo enfoque no cuidado aos filhos de pais separados ou divorciados. A nova família: problemas e perspectivas. p. 135.
[5] Do latim residens. Exprime o lugar em que a pessoa pára para descanso, tendo-o como morada ou habitação. Se definitiva ou permanente, adquiri o caráter de domicílio, para estabelecer a situação de direito, que por ele se determina. DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. p. 1.365.
[6] TEYBER, Edward. Ajudando as crianças a conviver com o divórcio. São Paulo: Nobel, 1995, p. 130.
[7] LEITE, E. O. Famílias… cit., p.286.
[8] FULCHIRON, Hughes. Autorité parental et parents désunie. Apud LEITE, E. O. Ibidem.
[9] LEITE, E. O. Famílias… cit., p. 283.
[10] TEYBER, E. Op. cit., p. 119.