23/03/2021 08h51 - Atualizado 23/03/2021 08h51
Artigo- Legítima defesa da honra e a visão do Supremo Tribunal Federal
Por Terezinha
para IARGS
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Artigo do Dr David Medina da Silva, Promotor de Justiça e Professor Universitário
Tema: Legítima defesa da honra e a visão do Supremo Tribunal Federal
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O Supremo Tribunal Federal, no recente julgamento da ADPF 779, considerou inconstitucional o argumento da legítima defesa da honra nos julgamentos de homicídios perante o Tribunal do Júri, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF). Na mesma decisão, a Corte deu interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa. Com essa decisão, fica proibido o uso da tese de legítima defesa da honra em favor de réus acusados de homicídios e, mais especificamente, feminicídios. Ainda que digna de comemoração, é bem verdade que tal decisão chega com mais de um século de atraso, pois há muito passou o trem da história, esquecendo-se de levar consigo a velharia do homicídio em defesa da honra, que tantos assassinatos impunes deixou em nosso País. Além disso, embora totalmente acertada a decisão do STF em relação aos crimes contra a vida, deve ser vista com reserva a intenção, ao menos aparente, de banir a legítima defesa da honra do ordenamento jurídico.
A legítima defesa consiste na repulsa ou reação diante de uma agressão humana injusta, a qual se fundamenta por diversas teorias, com uma divisão fundamental :
a) de um lado, aqueles que veem na legítima defesa uma ação meramente impune (exclusão da culpabilidade): teoria da coação psíquica (a pessoa se defende em estado de medo e irracionalidade, ficando isento de pena); teoria da inutilidade da ameaça penal (diante da ameaça concreta do agressor, a pessoa reage de imediato, sem ter medo de um mal apenas possível imposto pelo Estado, ou seja, a pena), teoria da colisão e direitos (entre dois direitos em colisão, o Estado sacrifica o direito do agressor, o que não significa dar um direito ao agredido, limitando-se a isentar-lhe de pena).
b) de outro lado, os que pensam que a legítima defesa é uma causa excludente da ilicitude: teoria do direito de necessidade (uma deve reagir diante de uma necessidade, não permitindo sacrificar seu direito), teoria da cessação do direito de punir (fundada no direito natural, diz que tanto o direito natural quanto o direito positivo tem o mesmo fim da conservação humana, logo, onde “fala o primeiro deve calar o segundo”), teoria da legitimidade absoluta (segundo Ihering, a legítima defesa é um direito e um dever, pois existe para o sujeito e para o mundo).
Assinala ROXIN que o direito à legítima defesa atualmente vigente se baseia em dois princípios: a proteção individual e a prevalência do Direito. A proteção individual significa que uma ação em legítima defesa se justifica sempre que for necessária à proteção de um bem individual, enquanto que a prevalência do Direito quer dizer que a legítima defesa tem função preventiva geral, evidenciando que não se vulnera sem risco a ordem jurídica .
Em nosso Código Penal, a legítima defesa é uma excludente da ilicitude, apresentando, segundo o art. 25 do Código Penal, os seguintes requisitos: a) agressão injusta; b) defesa de um direito próprio ou alheio;c) atualidade ou iminência da agressão; d) uso dos meios necessários; e) moderação da repulsa. A falta de qualquer desses requisitos desconfigura a descriminante, merecendo destaque o requisito da moderação na repulsa, cuja ausência leva ao excesso. As formas tradicionais de excesso são o excesso intensivo e o extensivo. No excesso intensivo, o agente utiliza uma violência desnecessária para repelir a agressão, enquanto que no excesso extensivo o agente age imoderadamente e estende a repulsa para além da agressão, desnecessariamente. Há quem sustente que essa forma de excesso não é, tipiciamente, excesso, e sim, uma verdadeira agressão injusta. Conforme BARROS , o verdadeiro excesso é o intensivo, pois excesso extensivo, a rigor, não é excesso, mas crime autônomo.
Mas existe, ainda, uma forma de excesso pouco mencionada, chamada excesso causal (não confundir com “casual”, isto é, sem dolo ou culpa, que é impunível), que consiste na extrema desproporção entre o direito defendido e o direito sacrificado pela reação. Ao vedar o argumento da legítima defesa da honra nos julgamentos pelo Tribunal do Júri, não há dúvida de que o STF identificou, acertadamente, a extrema desproporção que existe entre a honra e a vida, alinhando-se à ideia do excesso causal como impeditivo do reconhecimento da legítima defesa em tais casos.
Mas o que dizer se não houver desproporcionalidade entre a agressão e a repulsa? Imagine-se que alguém está prestes a enviar uma mensagem ofensiva à honra pelo celular, momento em que a vítima percebe e dá um golpe no aparelho, quebrando-o. Obviamente que sua ação configura legítima defesa da honra, a qual foi defendida dentro dos limites legais do instituto, isto é, sem qualquer excesso. Em não podendo alegar legítima defesa, a pessoa – que estava prestes a ter sua honra violada – deverá ser condenada por crime de dano qualificado, a depender do prejuízo causado (CP, art. 163, IV).
Sustenta a doutrina alemã que qualquer bem jurídico pode ser defendido mesmo com a morte do agressor, se não há outro meio para salvá-lo . De fato, convergem os doutrinadores no sentido de que não se pode excluir da legítima defesa nenhum bem jurídico que esteja sofrendo agressão atual ou iminente, mas é verdade que a defesa apenas pode ser considerada legítima se a reação for proporcional ao ataque. No caso da honra, esta jamais poderá ser defendida com sacrifício da vida, em razão de excesso causal e, doravante, a decisão do Supremo Tribunal Federal. Todavia, sendo a honra um direito assegurado constitucionalmente (CF, art. 5º, X), a legítima defesa da honra não pode simplesmente ser banida do ordenamento jurídico, uma vez que isto implicaria negar o próprio instituto da legítima defesa, eliminando-se tanto a proteção individual quanto a prevenção geral exercida pela prevalência do Direito.