Artigo- As Irregularidades da Recente Norma do BNDES para a Concessão de Crédito Rural
para IARGS
Artigo do associado dos IARGS, Dr. José Amélio Ucha Ribeiro Filho, advogado, pós-graduando em Direito e Processo Tributário
O sistema agropecuário e o agronegócio vem sofrendo ataques desmedidos e injustos de alguns setores, o que é um contrassenso, haja vista que a pecuária e a agricultura são responsáveis não apenas pelo fomento do PIB (que representa quase 25%) mas sobretudo da alimentação dos brasileiros.
Um desses atentados ocorre nos pedidos de operações de financiamento na forma de crédito rural. O mais recente caso provém do BNDES.
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) foi criado pela lei federal n.º 1.628/52 e enquadrado como empresa pública pela lei federal n.º 5.662/71 . Segundo o art. 3°, caput, da lei federal n.º 13.303/2016 , empresa pública é a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com criação autorizada por lei e com patrimônio próprio, cujo capital social é integralmente detido pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios.
Em 11.12.2023 foi instituída pelo BNDES a norma jurídica, do tipo circular, n.º 76/2023 , para “vedação à concessão de crédito rural destinado a Cliente Final que tenha embargo vigente”, na continuação da prática do atual governo federal, via BNDES, de apresentar vedações e obrigações de natureza socioambiental às concessões de crédito rural , que servem para aquisição de máquinas, animais, equipamentos, projetos de investimentos e outros .
Na circular n.º 76/2023 foram incluídos os itens 4.1.20 e 12.7.4 no Anexo I à circular nº 13/2022, que aduzem:
“4.1.20. Não poderão ser contratadas operações de crédito rural que tenham, por Clientes Finais, pessoas que possuam embargos vigentes registrados na lista de embargos do Cadastro de Autuações Ambientais e Embargos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), sem adoção de medidas efetivas quanto à sua regularização, em observância aos requisitos estabelecidos em lei ou ato normativo próprio da autoridade competente, como o protocolo de Projeto de Recuperação de Área Degradada (PRAD), Termo de Compromisso (TC), Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) ou outro documento congênere para a devida regularização.
(…)
12.7.4. Em operações de crédito rural, caso identificado que o Cliente Final possua embargo vigente constante da lista de embargos do Cadastro de Autuações Ambientais e Embargos do Ibama após a contratação da operação, sem PRAD, TC, TAC ou outro documento congênere protocolado para sua regularização, em observância aos requisitos estabelecidos em lei ou ato normativo próprio da autoridade competente, será suspensa a liberação de recursos até o protocolo de tais documentos. (…).
Esta Circular entra em vigor na presente data, sendo aplicável às operações contratadas a partir de 10.03.2024.”
A presente norma jurídica do BNDES está no campo das infrações ambientais, entre outras, ao tratar de uma das sanções administrativas que é o embargo da área, prevista no art. 3º, VII, do decreto federal n.º 6.514/2008 , cujo desiderato é de temporariamente impedir que seja explorada atividade nos locais onde efetivamente caracterizou-se a infração ambiental. No solo gaúcho é o decreto estadual n.º 55.374/20 que dispõe obre as infrações e as sanções administrativas aplicáveis às condutas e às atividades lesivas ao meio ambiente.
Ao inserir como óbice à concessão de crédito rural a existência de embargo ambiental sem que haja o devido processo legal ambiental, com a ampla defesa e o contraditório, a circular n.º 76/2023 do BNDES nasce inconstitucional, maculando sobretudo o Princípio da Presunção de Inocência, ínsito no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal , que determina e assegura que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”
O apontado – e suposto – infrator ao receber a notificação de processo administrativo ambiental tem garantido o devido processo legal, corolário aqui da segurança jurídica, e é considerado inocente até decisão final com trânsito em julgado, o que por óbvio abarcado pelo direito administrativo sancionador por ser preceito constitucional. E, se lhe é assegurada a garantia da presunção da inocência, deve ser concedido o crédito rural requerido à instituição financeira independentemente de estar demandado em processo ambiental ou não, à luz da Carta Maior.
A circular do BNDES é, como o próprio embargo ambiental, um adiantamento de sanção. E sanção sem o devido processo legal, sem a ampla defesa e sem o contraditório, o que por óbvio ilegal, inconstitucional e gravíssimo.
A mera existência do apontamento de uma infração ambiental não é motivo juridicamente aceitável para impedir o acesso do solicitante a uma operação financeira disposta e regulada pelo Banco Central.
Grave e irregular ainda é o fato que a norma apontada cria o óbice da concessão do crédito rural por embargo vigente mesmo em imóveis não diretamente associados ao financiamento, já que o item 4.1.20 não condiciona limitação. Ocorre que a própria lei que regulamenta o embargo ambiental, decreto federal n.º 6.514/2008 , no seu art. 15-A aduz que: “o embargo de obra ou atividade restringe-se aos locais onde efetivamente caracterizou-se a infração ambiental, não alcançando as demais atividades realizadas em áreas não embargadas da propriedade ou posse ou não correlacionadas com a infração”. Ou seja, a circular do BNDES vai de encontro à própria norma que criou o embargo ambiental, ao transpor o limite geográfico do local onde ocorreu a suposta infração.
Sobre o local da infração importa citar mácula à Teoria da Ubiquidade, que disciplina que o local do crime é aquele em que acontece a conduta (dolosa ou culposa) ou onde o resultado do crime foi produzido. Ela é adotada pelo artigo 6º do Código Penal : “Considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado”. A sanção ambiental é abarcada pelo direito administrativo sancionador, sendo que o que determina a escolha entre crime e ilícito administrativo são critérios de ordem jurídica.
As normas no campo do direito administrativo sancionador são equiparadas às normas penais, havendo semelhança entre os sistemas de persecução de ilícitos administrativos e criminais, o que também se vislumbra nos entendimentos de ministros do STF, como Gilmar Mendes, no julgamento do ARE 843989. E havendo esse hibridismo jurídico, a norma do art. 6º do CP se aplica ao direito administrativo bem como ao direito ambiental.
Logo, teratológico é o alargamento da circular n.º 76/2023 do BNDES quanto a negativa de concessão do crédito rural por embargo mesmo em imóveis não diretamente associados ao financiamento, ou seja, que não o imóvel exato da suposta infração que gerou o embargo, denotando a ausência mínima de legalidade ante o direito positivo brasileiro.
Não é tarefa fácil aos agropecuaristas produzirem alimentos ao mesmo tempo em que participam – à força – de uma espécie de corrida com obstáculos. Mas quanto mais complexo e penoso é o exercício do cliente, mais necessário e pontual é o papel do Advogado. Na área de compliance às regras ou na forma litigiosa, a luta pela justiça e o do melhor resultado (ou pelo menor incômodo), ante à verdade, é o fundamento que nos move.
Por essas razões, a circular n.º 73/2023 do BNDES não pode ter qualquer efeito prático, devendo ser combatida peremptoriamente até a sua derrocada fatal.
[I]https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=LEI&numero=1628&ano=1952&ato=ec5UTV65EeFRVT946
[II] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5662.ht
[III] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13303.htm
[IV] https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/instituicoes-financeiras-credenciadas/norma
[V] https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/imprensa/noticias/conteudo/bndes-aprova-nova-regra-e-amplia-veto-a-clientes-com-embargo-por-desmatamento-ilegal
[VI] https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/creditorural
[VII] Art. 3º As infrações administrativas são punidas com as seguintes sanções: VII – embargo de obra ou atividade e suas respectivas áreas;
[VIII] https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=398911
[IX] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
[X] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/decreto/d6514.htm
[XI] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm