A valorização do trabalho doméstico, alimentos compensatórios e a Reforma do Código Civil
para IARGS
A realidade social brasileira demonstra a nitidez de uma desvalorização do trabalho doméstico. As atividades domésticas, essenciais para o bem-estar da família e fundamentais para a educação dos filhos, costumam ser invisibilizadas, e não recebem o devido reconhecimento social, jurídico e econômico que representam. Na maioria das vezes desempenhadas pelas mulheres, apontam para uma desigualdade histórica que considera o trabalho produtivo remunerado patriarcal como prioritário. A desigualdade de gênero impacta a vida profissional e pessoal das mulheres, uma vez que, mesmo tendo atividade remunerada, a grande maioria delas percebe um rendimento menor, na comparação.[1]
Em recente decisão judicial por parte do Superior Tribunal de Justiça, constante no Resp nº 2.138.877 de Minas Gerais, sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi,[2] é trazida uma nova tendência e demonstra que o trabalho doméstico não tem menos importância do que o trabalho remunerado para a vida da família e para atender aos interesses do casal. O Poder Judiciário, em análise, reconheceu a atual realidade, posicionando-se a favor daquela que abdicou de oportunidades de estudo e inserção no mercado de trabalho, dedicando-se também em benefício do marido. A decisão trouxe uma compensação, fixando o valor da pensão alimentícia a ser paga pelo ex-marido, no patamar de 30% do salário-mínimo desde a data da separação.
Outra decisão recente em favor do cônjuge mais vulnerável, vale destacar, é a do REsp 2.129.308, 4ª Turma do STJ,[3] onde mantém a obrigação do ex-companheiro de pagar em parcela única à ex-companheira, a título de alimentos compensatórios, o valor de quatro milhões de reais após a separação. O argumento utilizado pela autora foi justamente sua dedicação exclusiva à família e, ainda, aos investimentos do marido.
Segundo Rolf Madaleno, a pensão compensatória não depende da prova da necessidade, estando dirigida a restabelecer o desequilíbrio econômico e, por isso, agrega um caráter claramente indenizatório, fundado em pauta objetiva para eliminar até onde for possível o desnível econômico que se estabelece em razão do divórcio do casal. Acrescenta que essa compensação não se propõe a igualar patrimônios e rendas, pois seu papel é o de tentar ressarcir o prejuízo causado pelo desequilíbrio econômico, compensando as perdas de oportunidades de produção só acenadas para um dos esposos.[4]
A tendência à valorização do trabalho doméstico de um dos cônjuges, na maior parte desempenhado pelas mulheres, é válida, muito bem-vinda e fundamental. É através desse trabalho que a família é cuidada e a casa atendida. O alimento compensatório vem indenizar este cônjuge por sua dedicação parcial ou integral a este importante trabalho não remunerado e pela impossibilidade de investimento em seu crescimento profissional.[5]
O divórcio é causa de recomposição de muitas famílias. Com o reconhecimento de novos arranjos familiares,[6] além daqueles tradicionais advindos do casamento, a interpretação do Direito das Famílias foi evoluindo a fim de se adaptar às novas configurações. As famílias modernas prezam pelo vínculo afetivo onde cada composição exige reconhecimento no ordenamento jurídico, trazendo consequências para o Direito das Sucessões.
A família, como base da sociedade, é protegida sem qualquer distinção em sua forma de constituição. Na direção da inexistência de hierarquia entre os laços familiares, o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional o artigo 1.790 do Código Civil, que estabelecia direitos sucessórios desiguais entre cônjuges e companheiros, fixando a tese com repercussão geral igualando direitos idênticos para os casados formalmente e para os que mantêm união estável.[7]
A união estável comprovada passou a adquirir os mesmos direitos sucessórios dos cônjuges, garantindo igualdade de tratamento. Objetivando a proteção patrimonial familiar, surge a proposta do Projeto de Lei nº 4 de 2025 que modifica o rol de herdeiros necessários, ainda em discussão para a reforma do Código Civil.[8] A proposta exclui o cônjuge ou companheiro como herdeiro necessário, mas os inclui como herdeiros legítimos na terceira classe da ordem de vocação hereditária, após descendentes e ascendentes. A proteção do patrimônio segue, segundo a proposta, preferencialmente em linha reta. Ao autor da herança, é dada a possibilidade de incluir ou não seu cônjuge ou companheiro como herdeiro no seu testamento.
Dessa forma, a previsão é a de que haverá mais incentivo à realização de planejamento sucessório desde o contrato de casamento, contrato de união estável ou pacto antinupcial e à formalização de testamento. Se de um lado a proposta retira a proteção do cônjuge ou companheiro como herdeiro necessário na sucessão, por outro assegura alguns direitos e oferece mais autonomia ao autor da herança.
Segundo publicação do canal Direito Civil Brasileiro, a reforma do Código Civil não deixa a viúva desamparada. O estudo esclarece que “a proposta aumenta a lista de bens que farão parte do patrimônio comum dos casais, nas uniões no regime de comunhão parcial, incluindo salários, investimentos em previdência privada e quotas ou ações de empresas”. Acrescenta que o projeto inova ao prever uma compensação a ser fixada pelo juiz pelo trabalho na residência da família e os cuidados com os filhos. O advogado Flávio Tartuce afirma que essas mudanças ajudam a compensar a retirada dos cônjuges da lista daqueles que terão direito aos bens adquiridos pelo falecido antes do casamento.[9]
Ampliando a visão sobre a exclusão dos cônjuges ou companheiros da lista de herdeiros necessários, a advogada Ana Luiza Nevares expõe um argumento diferenciado. Denomina “super cônjuge” àquele instituído no atual Código Civil e “mini cônjuge” ao previsto no projeto de reforma. Explica o Tema 809 da Repercussão Geral do STF, onde idênticos estatutos sucessórios foram reconhecidos para cônjuges e companheiros, como sendo esse o ponto de partida da reforma. Com o surgimento de famílias recompostas, múltiplos arranjos conjugais reconhecidos, vínculos perenes, além da situação da mulher que abdica da sua carreira em prol do cuidado com a família, a figura do “super cônjuge” tornou-se evidência. Em contrapartida, a alteração proposta cria a figura de um “mini cônjuge” sem direitos sucessórios salvo se inexistirem descendentes e ascendentes. Propõe que o cônjuge ou companheiro concorram na sucessão.[10]
O trabalho doméstico e os cuidados com a família, notoriamente, são essenciais. A organização e harmonia dentro do lar trazem disposição e incentivo para todas as outras tarefas da vida cotidiana. A valorização e recompensa a esse trabalho se fazem necessárias. A proteção ao cônjuge ou companheiro, que dedica seu precioso tempo aos deveres da casa, deixando o seu crescimento profissional em segundo plano, precisa ser considerada. O falecimento de um familiar pode trazer uma perda no padrão de vida da família, especialmente àquele que detinha dependência financeira.
A evolução das leis relativas à sucessão dos cônjuges e companheiros trouxe mudanças ao longo do tempo, diante do novo e mais abrangente conceito de família. No Código Civil de 1916, o cônjuge ocupava o terceiro lugar na ordem de vocação hereditária e podia, inclusive, ser afastado da sucessão. Com o Código Civil de 2002, passou a ser considerado herdeiro necessário.[11]
O tema relativo à sucessão dos cônjuges e companheiros continua sendo desafiador. Resoluções justas às diversas composições familiares é uma complexa equação.
[1] https://www.tst.jus.br/web/guest/-/desigualdade-salarial-entre-homens-e-mulheres-evidencia-discrimina%C3%A7%C3%A3o-de-g%C3%AAnero-no-mercado-de-trabalho
[2] https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=5&documento_sequencial=313169622®istro_numero=202401445217&peticao_numero=&publicacao_data=20250519&formato=PDF
[3] https://processo.stj.jus.br/processo/dj/documento/mediado/?tipo_documento=documento&componente=MON&sequencial=280619306&tipo_documento=documento&num_registro=202400825451&data=20241204&formato=PDF
[4] Madaleno, Rolf, Curso de Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 2011. 4ª Edição. Pgs. 953 e 958.
[5] PL nº 4/2025, Art. 1.709-A. “O cônjuge ou convivente cuja dissolução do casamento ou da união estável produza um desequilíbrio econômico que importe em uma queda brusca do seu padrão de vida, terá direito aos alimentos compensatórios que poderão ser por prazo determinado ou não, pagos em uma prestação única, ou mediante a entrega de bens particulares do devedor.”
[6] https://www.jusbrasil.com.br/artigos/os-novos-arranjos-familiares/696725210
[7] https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4744004&numeroProcesso=878694&classeProcesso=RE&numeroTema=809
[8] https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9889356&ts=1738439486311&disposition=inline
[9] @direitocivilbrasileiro, 12/03/25.
[10] https://www.migalhas.com.br/arquivos/2024/4/5D98B3CAC88FD0_Dosuperconjugeaominiconjuge.pdf e @analuizanevares, 13/04/25.
[11] https://www.migalhas.com.br/arquivos/2024/4/5D98B3CAC88FD0_Dosuperconjugeaominiconjuge.pdf
Isolda Berwanger Bohrer
Associada do IARGS, formada em Administração de Empresas e Direito, com pós-graduação na área de Relações Internacionais e Comércio do Exterior
Solange Maria Gaspar de Oliveira 4 semanas
Excelente explanação! O presente artigo é um tema muito importante e foi muito bem abordado. Parabéns!