20/08/2024 07h00 - Atualizado 18/08/2024 09h23

A revisão da obrigação alimentar diante das enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul

Por Terezinha
para IARGS

O Rio Grande do Sul foi alvo de uma das maiores catástrofes climáticas que atingiu o Brasil. Milhares de pessoas foram afetadas e, de uma hora para outra, viram-se em situação de extrema dificuldade e vulnerabilidade. Os danos humanos, materiais e ambientais foram deveras significativos. Não por outra razão, em 1º de maio de 2024 foi declarado estado de calamidade pública no estado, conforme Decreto estadual – RS 57.596. Da mesma forma o Decreto Legislativo 36/2024, em 7 de maio do mesmo ano, emitido pelo Plenário do Senado.

Durante esse período atípico, não foram implementadas regras específicas no âmbito do direito civil e processual civil, tal como sucedido na pandemia de Covid-19 por meio da Lei nº 14.010/2020 – Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET). No entanto, diversas foram as repercussões jurídicas e legais decorrentes desse estado de calamidade pública, notadamente na área do direito das famílias, tomando-se como exemplo questões relacionadas a direito alimentar, direito de convivência, partilha de bens e violência doméstica e familiar.

Os desafios legais envolvendo pensão alimentícia emergiram junto ao caos, afetando tanto alimentantes quanto alimentandos e ensejando a adoção de medidas jurídicas para a salvaguarda de direitos fundamentais, como o é o direito à vida e à dignidade. Mesmo pessoas que não foram diretamente afetadas pela enchente acabaram por sofrer redução em sua capacidade financeira devido ao impacto econômico geral; afinal, mais de 80% dos municípios do Estado restaram alagados.

Não obstante a notoriedade da calamidade pública, o devedor de alimentos não pode simplesmente deixar de pagar ou reduzir a pensão por conta própria. Qualquer alteração deve ser solicitada judicialmente ou formalizada por acordo. O inadimplemento da pensão alimentícia pode resultar em sanções graves. Conquanto se cogite a possibilidade de elisão da prisão civil diante do inadimplemento por força da enchente, não há nada que assegure que isso venha a ocorrer.

Embora o ordenamento civil não possua regramento específico para a revisão dos alimentos em situações extremas, o disposto no artigo 1.699 do Código Civil se mostra mais do que suficiente para o embasamento de ações revisionais, já que a hipótese legal para a exoneração, redução ou majoração do encargo alimentar é justamente a “mudança na situação financeira de quem os supre, ou na de quem os recebe”:

Art. 1.699. Se, fixados os alimentos, sobrevier mudança na situação financeira de quem os supre, ou na de quem os recebe, poderá o interessado reclamar ao juiz, conforme as circunstâncias, exoneração, redução ou majoração do encargo.

Em face das enchentes, inúmeros lares foram destruídos e, assim, milhares de crianças credoras de alimentos ficaram desabrigadas. Nesta situação, o mais adequado é a sua transferência para a casa do outro genitor, responsável pelo pagamento de alimentos, caso esteja com sua moradia preservada.

Diante das necessidades imediatas de abrigo, alimentação e vestuário – e por vezes até cuidados médicos -, após a enchente, daquele provedor que repentinamente viu-se desalojado de sua moradia, bens e pertences pessoais, de todo inviável impor-lhe uma obrigação alimentar, ainda que provisória, a depender do caso. Sobressai, em contrapartida, a oneração do outro genitor e as iminentes despesas da prole, que perderam tudo o que tinham junto ao seu lar de referência.

Descortina-se um cenário excepcional, em que é possível se buscar alimentos de natureza complementar e subsidiária junto aos avós – e que, portanto, se restringem tão somente ao necessário à subsistência dos netos -, nos termos dos arts. 1.696 e 1.698 do Código Civil:

Art. 1.696. O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros.

Art. 1.698. Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide.

Nessa linha, impossível não repudiar julgados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul[1], em que apenas se reconhece a obrigação dos avós na impossibilidade de os pais suprirem as necessidades dos filhos. É o que dispõe a Conclusão nº 44 do CETJRS[2], segundo a qual a obrigação alimentar dos avós é complementar e subsidiária à de ambos os genitores, somente se configurando quando pai e mãe não dispõem de meios para prover as necessidades básicas dos filhos.

Condicionar a obrigação dos ascendentes somente quando demonstrada a impossibilidade de ambos os pais em suportar o encargo alimentar viola o disposto no art. 1.698 do CC, acima citado. Isso porque basta que um parente, e não ambos, não esteja em condições de suportar totalmente o seu encargo alimentar para que se chame à obrigação os parentes de grau imediato. Tanto é que a Súmula 526 do STJ faz alusão à impossibilidade total ou parcial de cumprimento da obrigação pelos pais: A obrigação alimentar dos avós tem natureza complementar e subsidiária, somente se configurando no caso de impossibilidade total ou parcial de seu cumprimento pelos pais.

Por outro lado, diversos foram os casos também em que o genitor obrigado ao pagamento de alimentos à prole perdeu o emprego ou fonte de renda devido ao fechamento de empresas e danos à estabelecimentos comerciais, fábricas e indústrias – hipótese em que é possível pleitear a revisão dos alimentos, tendo em vista a alteração de sua condição financeira.

Nesse sentido, colacionam-se os seguintes arestos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO REVISIONAL DE ALIMENTOS. FILHA MAIOR DE IDADE E ESTUDANTE. DESEQUILÍBRIO DO BINÔMIO ALIMENTAR EVIDENCIADO. REDUÇÃO. CABIMENTO. 1. A REVISÃO DA OBRIGAÇÃO ALIMENTAR SOMENTE SE JUSTIFICA QUANDO DEMONSTRADA ALTERAÇÃO DO BINÔMIO NECESSIDADE-POSSIBILIDADE EM PREJUÍZO DE UMA DAS PARTES. 2. NO CASO EM EXAME, COMPROVADA A REDUÇÃO DA CAPACIDADE FINANCEIRA DO ALIMENTANTE, VISTO QUE POSSUI DOIS FILHOS MENORES DE IDADE E SUA EMPRESA, LOCALIZADA NA REGIÃO DAS ILHAS, FOI ATINGIDA PELAS RECENTES ENCHENTES QUE ASSOLARAM O ESTADO, VIÁVEL A REDUÇÃO OPERADA NA SENTENÇA, PARA VALOR RAZOÁVEL E EM ATENÇÃO AO BINÔMIO NECESSIDADE-POSSIBILIDADE. 3. SENTENÇA MANTIDA. APELAÇÃO DESPROVIDA.[3]

AGRAVO DE INSTRUMENTO. FAMÍLIA. AÇÃO DE ALIMENTOS. DECISÃO QUE FIXOU OS ALIMENTOS PROVISÓRIOS, INAUDITA ALTERA PARS, EM 60% DO SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL. PEDIDO DE REDUÇÃO. CABIMENTO. OS ALIMENTOS DEVEM SER FIXADOS EM CONFORMIDADE COM O BINÔMIO NORTEADOR NECESSIDADE-POSSIBILIDADE. AS NECESSIDADES DA ALIMENTADA SÃO PRESUMIDAS EM RAZÃO DA MENORIDADE, SEM DEMONSTRAÇÃO DE DESPESAS EXTRAORDINÁRIAS. O AGRAVANTE, POR OUTRO LADO, PASSA POR SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE, JÁ QUE É PESSOA DE IDADE AVANÇADA E PERDEU PRATICAMENTE TODOS OS SEUS BENS NAS ENCHENTES QUE ATINGIRAM A REGIÃO DO VALE DO TAQUARI, SENDO SUA ÚNICA FONTE DE RENDA O BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA, PERCEBIDO DO INSS. COMPROVADA A IMPOSSIBILIDADE DE SUPORTAR O QUANTUM FIXADO NA ORIGEM SEM PREJUÍZO AO PRÓPRIO SUSTENTO E AO DE SUA OUTRA FILHA, PARA QUEM TAMBÉM PAGA ALIMENTOS. PERCENTUAL DE 30% DO SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL QUE SE MOSTRA EM LINHA COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE, E É MAIS ADEQUADO AO CASO, A FIM DE ATENDER MINIMAMENTE AS NECESSIDADES DA ALIMENTADA, SEM PREJUDICAR O PRÓPRIO SUSTENTO DO ALIMENTANTE. AGRAVO DE INSTRUMENTO PARCIALMENTE PROVIDO.[4]

 

Embora não se tenha dúvidas da notoriedade da calamidade pública reconhecida no Rio Grande do Sul, a ensejar a dispensa de provas acerca de sua ocorrência (CPC, 374, I), aquele que pretender revisar os alimentos deverá comprovar que foi afetado pela enchente e de que forma isso impactou em sua necessidade alimentar e possibilidade financeira. Claro que a prova dos danos sofridos dependerá do caso concreto, sendo de todo factível presumir-se o prejuízo de quem teve a sua casa alagada pela inundação decorrente das chuvas. Já aqueles que foram indiretamente afetados deverão produzir uma prova mais robusta.

No entanto, antes de ingressar com qualquer ação judicial, os genitores devem avaliar todas as possibilidades para cumprir com os alimentos, podendo até mesmo contar com a ajuda de familiares ou amigos, tendo em vista o princípio da solidariedade social e familiar (CF, art. 3º, I; ECA, art. 4º).

Nesse caso, aquele que ajudar no adimplemento da pensão poderá reaver do devedor a importância, conforme o disposto no art. 871 do Código Civil:

Art. 871. Quando alguém, na ausência do indivíduo obrigado a alimentos, por ele os prestar a quem se devem, poder-lhes-á reaver do devedor a importância, ainda que este não ratifique o ato.

Considerar soluções alternativas, bem como a realização de acordos prevendo ajustes temporários para salvaguardar a subsistência de todas as partes afetadas pelas enchentes, com especial atenção à garantia do direito alimentar de crianças e adolescentes, revela-se uma forma sensível e pacífica de lidar com o direito alimentar em um momento de extrema dificuldade para todos os envolvidos.

A revisão da pensão alimentícia diante de calamidade pública revela-se não apenas inevitável como crucial. Todavia, é fundamental que os operadores do Direito tratem dessas questões com o devido cuidado, atenção, sensibilidade e justiça, a fim de proteger tanto o direito dos alimentandos quanto assegurar a possibilidade financeira dos alimentantes, garantido a superação das adversidades pelas partes envolvidas.

[1] TJRS, AI 51834649220248217000, 7ª CC, Relatora: Vera Lucia Deboni, julgado em 06-08-2024; e TJRS, AC 50000424120208210021, 8ª CC, Relator: Ricardo Moreira Lins Pastl, julgado em 01-08-2024.

[2] Justificativa da Conclusão nº 44 do CETJRS: O artigo 1.696 do Código Civil dispõe que a obrigação alimentar recai nos parentes “mais próximos em grau, uns em falta de outros”. Portanto, para que se configure a obrigação dos ascendentes mais remotos, é necessário que reste demonstrada a impossibilidade de todos os mais próximos em suportar o encargo alimentar. Somente se passa de um grau para o outro quando esgotada a possibilidade de todos os parentes daquele grau mais próximo. Nestas condições, somente se viabiliza a postulação de alimentos contra os avós quando o pai e a mãe não possuem condições de arcar, mesmo individualmente, com o sustento dos filhos.

[3] TJRS, AC 50036496720208216001, 7ª CC, Relatora: Sandra Brisolara Medeiros, julgado em 03-07-2024.

[4] TJRS, AI 53763920720238217000, 1ª CEC, Relatora: Glaucia Dipp Dreher, julgado em 18-03-2024.

Ana Paula Rechden

Associada do IARGS, advogada, sócia fundadora do escritório Maria Berenice Dias Advogados, especialista em Direito das Família e Sucessões

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  1 Comentário   Comentar

  • Maria Helena de Moraes Gonçalves 4 semanas     Responder

    Excelente artigo por tratar da matéria com bom senso e com a indicação clara da legislação que dá respaldo às suas alegações !

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