19/08/2025 07h00 - Atualizado 19/08/2025 08h09

A inteligência artificial e a proteção dos direitos do autor: uma perspectiva futura

Por Terezinha
para IARGS

O famoso químico Lavoisier já dizia que, na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Analogicamente, a expressão pode ser aplicada à natureza humana e ao poder do homem de dar forma as suas ideias, por meio de uma metamorfose criativa, produto de um genuíno talento. Assim, criam-se livros, materializam-se estudos através da escrita, da técnica e metodologia cientificamente empregadas.

Por força de sua exclusividade, a escrita literária, a composição musical e a invenção de novas tecnologias, entre outros, são muito caras ao seu criador, motivo pelo qual é necessário o registro dos direitos autorais, selando, assim, a obra com o lacre da inviolabilidade, medida relativamente eficaz para combater o chamado plágio. O inciso XXVII do art. 5º da Constituição Federal de 1988 assegura os direitos ao autor, estabelecendo que ao mesmo pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, direito este transmissível aos herdeiros ao tempo que a lei fixar. Isso permite que os autores detenham o controle sobre o uso e a divulgação daquilo que produzem.

O art. XXVII, item 2, da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 proclama que: “todo o ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes da produção literária, científica ou artística de que seja autor”, o que induz à exploração de obras autorais, em favor, principalmente, da pessoa física do autor (ABRÃO, 2017). Em nível de direito interno, é cediço que a Lei nº 9.610/98, signatária da Convenção de Berna de 1971, protege os direitos do autor no prazo de setenta anos contados de 1º de janeiro subsequente ao seu falecimento (art. 44), proteção esta que merece ser conjugada com o art. 186 do Código Civil, que, assim, dispõe: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Na hipótese versada, não se trata de dano in re ipisa, uma vez que o dano não é presumido, é fundamental, portanto, a comprovação pelo autor da ocorrência do nexo causal consubstanciado na figura do dolo ou da culpa, tripé necessário para a configuração da responsabilidade subjetiva.

A questão, aparentemente simples, porque já positivada na legislação pátria, assume uma complexidade diametralmente maior ante aos desafios impostos pelas inovações tecnológicas da era digital, já que é possível a criação de novas obras a partir de softwares de inteligência artificial, por meio de uso de algoritmos. Este é qualificado como sendo “um conjunto de instruções matemáticas, uma sequência de tarefas para alcançar um resultado esperado em um tempo limitado” (KAUFMAN, 2019). Ilustra-se, de forma resumida, o funcionamento de um algoritmo para fins de processamento de dados, um computador divide a tarefa maior em tarefas menores, as quais são executadas sequencialmente, uma após a outra, ao término de todas as pequenas tarefas, os resultados obtidos são agrupados a fim de obter uma resposta única para aquela tarefa inicialmente atribuída. A esse sequenciamento de tarefas visando um resultado único, dá-se o nome de algoritmo (VALENTINI, 2017, p. 41).

O ponto nodal é estabelecer a quem pertenceriam os direitos autorais de obras criadas pela inteligência artificial, visto que não se trata de uma pessoa física, tampouco jurídica, dotada de direitos e obrigações, sendo inviável a concepção de uma personalidade cibernética. Além disso, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) indica, como o acórdão do RESP 1831080/SP, que o direito de exploração econômica de obras implica na aquiescência do autor, o que é inconcebível em sede de inteligência artificial. O Enunciado nº 670 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na IX Jornada de Direito Civil, realizada em maio de 2022, estabeleceu que, independentemente do grau de autonomia de um sistema de inteligência artificial, a condição humana é restrita aos seres humanos.

Dada a carência de legislação específica sobre o tema quanto à titularidade dos direitos autorais produzidos por um sistema de inteligência artificial, a exemplo do ChatGPT, cogita-se a possibilidade que a obra não tem um autor e, como tal, pertenceria ao domínio público. Outra corrente doutrinária advoga a tese de que o programador, aquele que alimenta o sistema da inteligência artificial com banco de dados, seria, por derivação, o autor, e, por fim, outra corrente sustenta que o titular de direitos autorais é o proprietário do programa. O art. 27 do Projeto de Lei nº 2338/2023, que dispõe sobre o uso de inteligência artificial, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, estabelece que: “o fornecedor ou operador de sistema de inteligência artificial que cause dano patrimonial, moral, individual ou coletivo é obrigado a repará-lo integralmente, independente do grau de autonomia do sistema.”

É inegável o grau extremado de sofisticação da inteligência artificial que se utiliza além de algoritmos, de redes neurais (sistemas computacionais inspirados no funcionamento do cérebro humano, que aprendem a realizar tarefas por meio da análise de exemplos e de identificação de padrões) capazes de produzir obras artísticas, literárias e audiovisuais com um grau menor de intervenção humana.

De outro lado, a inteligência artificial, por meio de seu programador, poderia se utilizar de materiais protegidos por direitos autorais de maneira explícita, tal como aconteceu nos Estados Unidos em que escritores acusaram empresas de utilizarem suas obras para treinar a plataforma ChatGPT a escrever ficção por meio de mineração de dados.

A par da possibilidade do plágio de seus direitos autorais, o escritor brasileiro, dotado de dom e capacidade de escrita diferenciada, poderia concorrer em concursos literários com pessoas inidôneas, sedizentes titulares de obras produzidas pela inteligência artificial, o que deveria ser rechaçado, do contrário, o certame legitimaria a prática da concorrência desleal.

Outro ponto relevante é a inviabilidade de se atestar com precisão cirúrgica se a obra ou trabalho apresentados- quer total ou parcialmente- seriam ou não frutos da inteligência artificial, situação polêmica enfrentada nos bancos escolares e acadêmicos. É indefensável a utilização da tecnologia para a prática de ilícitos sob pena de responsabilização do autor na esfera criminal.

Urge a necessidade do legislador pátrio regulamentar o uso da inteligência artificial por seus usuários, protegendo os direitos do autor contra eventual violação garantindo os meios de prova necessários a fim de garantir a reparação do dano. A doutrina, ainda que embrionária, e o estudo do direito comparado deveriam servir como fontes de pesquisa para a elaboração legislativa. Vale referir que o Parlamento Europeu, em 13 de março de 2024, aprovou a Lei da Inteligência Artificial da União Europeia, considerada a primeira legislação abrangente sobre IA no mundo.

A utilização da inteligência artificial, cada vez mais corriqueira, deveria ser vista como uma ferramenta para facilitar o trabalho do homem, sem jamais substituí-lo, pois a sensibilidade e o talento são qualidades intrínsecas à natureza humana.

BIBLIOGRAFIA:

ABIDO, Leonardo e BOFF, Oro Salete. O direito de autor no Brasil de obras produzidas pela inteligência artificial, publicado pela Revista da Faculdade Mineira de Direito, v. 23, nº 45, p. 301- 317, disponível em https://share.google/fXicSzcqtQko52h5u.

ABRÃO, Eliane Y. Comentários à Lei dos Direitos Autorais e Conexos, Rio de Janeiro, Editora Lumen Juris, 2017, 337 p.

ARAÚJO, Felipe. Direitos autorais, remuneração e inteligência artificial,— Ministério da Cultura, disponível em: https://share.google/lPYvkTXuP3X7zSM8s. Acesso em 12 dez. 2024.

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CARVALHO, Leonardo Arquimiro de. O plágio nosso de cada dia. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v.25, n.2, p. 76-82, jul./dez. 2023. Disponível em: http://intra.mp.rs.gov.br/areas/biblioteca/arquivos/acervos/2023/115658.pdf. Acesso em: 18 set. 2023.

COELHO, Ulhoa Fábio. Direito Autoral, Presente, Passado e Futuro inclui abordagem sobre inteligência artificial, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2025, 155 p.

GARCIA, Rocha Garcia. Como a Inteligência Artificial Impacta a prática do Direito entre sujeitos, objetos e robôs, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2024, 327 p.

JÚNIOR, Marcos Ehrhardt e CATALAN, Marcos. Dados Pessoais e a Proteção dos Direitos da Personalidade da Era da Inteligência Artificial, Belo Horizonte, Editora Forum, 2025, 249 p.

KAUFMAN, Dora. A inteligência artificial irá suplantar a inteligência humana? Barueri: Estação das Letras e Cores, 2019

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MEDINA, José Miguel Garcia; ARAÚJO, Fábio Caldas de. Código Civil comentado: com jurisprudência selecionada e enunciados das jornadas do STJ sobre o Código Civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. 1535 p. ISBN 9786550652425.

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VALENTINI, Rômulo Soares. Julgamento por computadores? As novas possibilidades da juscibernetica no século XXI e suas implicações para o futuro do direito e do trabalho dos juristas/Rômulo Soares Valentini- 2017. Orientador: Antônio Álvares da Silva. Tese (doutorado)- Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito.

Cassiano Santos Cabral

Associado do IARGS, Bacharel em Direito, Especialista em Direito Público, Servidor Público. Escritor com seis livros publicados nas modalidades de poesia, crônicas, contos e romances policiais. Premiado em certames literários nacionais e internacionais

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