A Ciência do Imaginário
para IARGS
Em meio à singular e recente crise sanitária mundial, exatamente em 2021, nos pegamos a pensar em ciência, espiritualidade e saúde quando escrevemos esse ensaio bioético. Tema espinhoso é a morte, cronicidade e terminalidade da vida e seus limites morais e metafísicos e, a mágica entre o homem e a natureza. A tendência do homem à concretude e materialidade modernas se contrapõe àquela natureza do ser-aí lançado no mundo do ser como modo de ser.
Em que pese as várias dimensões da natureza e dos fragmentos, reminiscências e recortes românticos acerca da morte e luto, nesse diálogo, a espiritualidade denota a crise do idealismo, não como sintoma do fracasso intelectual, mas sobre os limites e desvios da investigação apreciativa científica. Decisão arriscada e sensível, um pouco artificial, talvez, aceitamos o desafio de violar os próprios sentidos e sintomas e nos estendermos ao plano sutil da (re)flexão filosófica.
Há um propósito simbólico do evolutivo olhar regenerativo do passar das estações do ano, do arco e dos ciclos da vida das espécies, das horas, dos ruídos e do silêncio e som que compõem os espaços como uma ampulheta alquímica, apta a revelar o lado oculto da natureza e das coisas. Novas formas e contornos orgânicos e inorgânicos de interpretações da doença e do(ente), como uma sucessão ao sobrenatural, é o convite.
O portão de entrada do cemitério é enigmático, bem como o grande número de leitos nos hospitais, a quantidade de farmácias, abuso de álcool, drogas e eletrônicos na sociedade moderna revelam a dor que a sociedade busca amortecer com subterfúgios que provam o quanto o ser humano está distante da essência clareira e abertura no alto da colina e dos inúmeros caminhos trilhados de vidas que jazerão juntas na eternidade. A dicotomia entre as várias dimensões de visão de mundo nos afastam uns dos outros.
Com alma poética, nos despedimos do texto breve como a brisa em uma esquina qualquer com o pensar acerca da preservação mútua entre o nosso tempo atual, os tempos anteriores e os novos tempos. Que os traços dos nossos elevados antepassados transcendam àqueles instantes finados e comemorem, os habitantes do mundo que permaneceu, apesar do(ente) não estar mais na dimensão física.
No luto, o falecido pode estar morto para o mundo dos sentidos, mas se o nosso espírito pudesse realmente elevar-se à pura espiritualidade sem estar ligado à matéria, poder-se-ia “morrer” em vida e “viver” em morte. É quimera natural que os laços que nos unem em vida não se findam nas tragédias. Por isso, a ciência não está imune à espiritualidade, ela está apenas isenta de certos cuidados paliativos que a indaguem além daquilo que é corpóreo, se pode ver e provar. O corpo etérico.
Nesse sentido semiótico, não há morte alguma porque em si, nada perece. Há um mistério singular oculto em tornar menos real o espiritual. Essa natureza subordinada não é culpa da ciência, mas da aparência. O que nos encanta, afinal, no que há de mais físico?
A teoria do imaginário é um campo de estudo que investiga a importância do conteúdo imagético e dos símbolos na compreensão da natureza humana e da sociedade, com foco em como a mente constrói o mundo e as relações humanas. Gilbert Durand desenvolveu esta disciplina que valoriza a dimensão simbólica e onírica que molda a personalidade individual e coletiva. A ciência do imaginário desafia a ciência que não deve desconsiderar as realidades psíquicas em favor, apenas, de dados empíricos e tecnológicos.
Podemos estar influenciados por perdas de pessoas importantes ou por estarmos nos perdendo de nós mesmos quando falamos sobre algo incorpóreo e sobre a desintegração da morte em sentido alegórico e invisível ao olho nu, mas que tem estrutura extremamente tênue e espiritual,
Provar a espiritualidade no sentido científico não é uma questão de evidência física. A fé e a conexão com a natureza são caminhos de valorização da vida nesse setembro amarelo que inaugura aprofundarmos a compreensão sobre o que nos move e o nosso lugar no mundo.
Afinal, pode haver encantamento mais espiritual do que a música que nos desloca? Eis uma prova cabal emprestada, quase uma certidão de vida!
Mariana Diefenthaler
Associada e Diretora do Departamento de Saúde do IARGS, advogada, mestrado em Criminologia, Pós-graduada em Psicologia Jurídica