Novo Paradigma do Processo Civil Brasileiro: Os Precedentes Normatizando as Interpretações de Textos Legais e as Restrições ao Desenvolvimento do Trabalho do Advogado
para IARGS
Resumo
O presente estudo analisa o novo paradigma instaurado no processo civil brasileiro a partir do Código de Processo Civil de 2015, especialmente no que concerne à força normativa dos precedentes judiciais e às consequências dessa técnica decisória sobre a liberdade interpretativa dos operadores do direito. Examina-se a função estabilizadora do sistema de precedentes e seus reflexos na advocacia, destacando as tensões entre segurança jurídica, uniformização e a autonomia argumentativa do advogado.
Palavras-chave: processo civil; precedentes judiciais; segurança jurídica; advocacia; CPC/2015.
1. Introdução: o paradigma pós-2015 e a centralidade dos precedentes
O advento do Código de Processo Civil de 2015 representou uma profunda reconfiguração da estrutura processual brasileira. Mais do que introduzir alterações procedimentais, o novo diploma instituiu um verdadeiro modelo de coerência e integridade decisional, centrado na vinculação aos precedentes qualificados (artigos 926 a 928 do CPC). A inspiração veio do common law, mas a transposição ao sistema romano-germânico brasileiro não se limitou à mera importação de técnicas: buscou-se transformar a jurisprudência em fonte primária de direito, com pretensão de normatividade e obrigatoriedade.
Esse novo paradigma processual deslocou o eixo interpretativo da norma legal para a interpretação estabilizada dos tribunais superiores, atribuindo-lhes papel de “intérpretes oficiais” do ordenamento. O resultado é uma crescente normatização da jurisprudência, que altera o papel tradicional do juiz e impõe novos limites à atuação do advogado.
2. A normatividade dos precedentes e a estabilização das interpretações
A estrutura do CPC/2015 erige o precedente judicial como fonte de direito. Os dispositivos dos artigos 926 a 928 determinam que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência, mantê-la estável, íntegra e coerente, e ainda observá-la em julgamentos futuros. A normatividade decorre não apenas da autoridade do órgão prolator (v.g., Supremo Tribunal Federal ou Superior Tribunal de Justiça), mas da ratio decidendi — o núcleo normativo da decisão, que vincula os juízes e tribunais inferiores.
Assim, decisões proferidas em repercussão geral, recursos repetitivos, súmulas vinculantes e incidentes de resolução de demandas repetitivas (IRDR) adquirem eficácia obrigatória, reduzindo a dispersão interpretativa e promovendo a isonomia. Entretanto, esse modelo impõe uma transformação cultural. O direito processual, historicamente baseado na independência interpretativa do julgador e na criatividade argumentativa do advogado, passa a operar sob a lógica da conformidade hierárquica: a divergência é tolerada apenas dentro dos estreitos limites de distinção (distinguishing) ou superação (overruling).
3. O impacto sobre a advocacia e a restrição à liberdade argumentativa
Se, por um lado, a normatização dos precedentes traz previsibilidade e eficiência, por outro restringe o espaço de construção hermenêutica do advogado. A advocacia, que sempre desempenhou função essencial à administração da justiça (art. 133 da Constituição Federal), vê-se agora diante de um ambiente em que o argumento de autoridade precedencial tende a prevalecer sobre a argumentação de princípio.
A liberdade técnica — elemento fundamental do exercício profissional — passa a ser condicionada pela necessidade de aderência a entendimentos previamente fixados, sob pena de a postulação ser considerada manifestamente improcedente ou protelatória. Esse cenário conduz a uma jurisprudencialização da prática forense, na qual a pesquisa e aplicação de precedentes substituem a construção dialética e principiológica do caso concreto.
Ademais, o sistema processual contemporâneo transfere ao advogado o ônus de demonstrar a distinção do caso concreto (art. 489, §1º, VI, CPC), impondo-lhe atuação mais técnica, mas menos criativa. Em certa medida, a atividade argumentativa se burocratiza, limitando a espontaneidade intelectual que caracterizava o debate jurídico.
4. Entre segurança e liberdade: o dilema da coerência jurisprudencial
O novo paradigma busca conciliar dois valores: segurança jurídica e liberdade interpretativa. A uniformização das decisões evita arbitrariedades e promove previsibilidade — valores indispensáveis à estabilidade das relações sociais e econômicas. No entanto, a rigidez excessiva dos precedentes pode conduzir à fossilização do direito, afastando-o da realidade social dinâmica que deve inspirar sua aplicação.
A Constituição Federal consagra o pluralismo interpretativo como manifestação da independência da advocacia e da magistratura. O advogado, ao exercer o contraditório substancial, não apenas representa interesses, mas contribui para a evolução do direito. Quando a jurisprudência é convertida em norma rígida, há risco de reduzir o processo a um mecanismo de confirmação de entendimentos previamente cristalizados, o que fragiliza o papel crítico da advocacia na construção do sentido das normas.
O desafio, portanto, está em equilibrar a força vinculante dos precedentes com a preservação da autonomia argumentativa, permitindo que a advocacia continue sendo instrumento de transformação social e não mera repetidora de entendimentos consolidados.
5. Considerações finais
O processo civil brasileiro vive uma era de transição paradigmática. A institucionalização dos precedentes representa avanço em termos de racionalidade e segurança jurídica, mas também exige vigilância quanto às suas repercussões sobre a liberdade profissional e a função democrática do processo.
O advogado, como sujeito essencial à justiça, deve adaptar-se ao novo modelo sem abdicar de sua função de resistência interpretativa — aquela que, ao questionar o precedente, permite sua evolução. Em última análise, o equilíbrio entre estabilidade e mutabilidade é o que garantirá que o sistema de precedentes não se converta em instrumento de estagnação, mas em fator de aprimoramento do próprio Estado de Direito.
Referências bibliográficas
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DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. Salvador: JusPodivm, 2023.
MITIDIERO, Daniel. Precedentes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: RT, 2020.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. O precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2019.
Gerson Fischmann
Associado do IARGS. Diretor-Geral da ESA OAB/RS- Escola Superior de Advocacia

 
            
             
             
          