Hibristofilia: um fascínio inobservado
para IARGS
Uma introdução entre o Crime e o Castigo
Dostoiévski foi um desses grandes autores a apresentar o crime como uma inevitável consequência multifatorial da experiência humana. No caso de Raskólnikov, seu mais proeminente ‘criminoso’, as fantasias travestidas de convicções deturparam sua visão de justiça, motivadas por questões financeiras e filosóficas, e culminaram no cometimento de um crime violento. Foi também o que percebeu Durkheim ao afirmar que, em uma sociedade de santos, também haveria crimes (1895)[1], estabelecendo não apenas um pressuposto sociológico de cunho objetivo, mas registrando uma observação sensível sobre o comportamento das massas e a sua íntima necessidade humana pela transgressão, com o consequente entendimento de que o crime, a despeito de toda objetividade oriundas dos estudos criminológicos, é dotado de profunda carga subjetiva.
A literatura russa do século XIX mostra que o crime, ao contrário do que muito se discutiu ao longo do século XX, está no âmago humano. No caso de Crime e Castigo (1886)[2], os leitores, impactados pelo fato de acompanharem tão deturpado personagem por mais de seiscentas páginas, e nutrirem por ele sentimentos conflituosos, têm sua torcida pelo sucesso do protagonista contrastada com uma confissão humilde. Assim, percebem finalmente aquilo que o autor planejou desde o começo: o fascínio, não pelo crime propriamente, mas por aquele que o perpetra, quebrado pelo senso de justiça.
Crime e Castigo é apenas uma dessas clássicas histórias em que o fascínio emerge do ato criminoso, não necessariamente extremo como um assassinato qualificado, mas também de roubadores.
É recente o fenômeno midiático da série de televisão La casa de papel (2017), veiculada pelo canal de streaming Netflix, em cuja narrativa se acompanha um grupo de ladrões que executa o plano de assalto ao banco nacional da Espanha. Semelhante temática ocorreu ainda no fim do século XIX, com o surgimento de Arsène Lupin, personagem do escritor Maurice Leblanc, um ladrão especialista em disfarces que fascina o leitor por sua criatividade nas fugas da polícia. Percebe-se que a cada ano surgem mais e mais produções cujo protagonismo está apoiado na figura de personagens transgressores. Filmes e séries americanos sobre seriais killers e suas assinaturas características são bons exemplos. Essas produções são realizadas sob a lógica de mercado, ou seja, há público consumidor demandante que gera lucro para esse tipo de temática de entretenimento.
O tema de fundo é que existe um inegável mistério ao redor daqueles que transgridem a lei. É claro que, no campo da ficção, todo encanto é compreensível, uma vez que a principal arte está justamente na manipulação das percepções por meio da técnica narrativa. No entanto, quando o fascínio extrapola páginas e telas, e se intensifica até atingir uma metamorfose em algo além de admiração – como amor, paixão e submissão – é sinal de que instâncias mais profundas passaram a operar quem sabe em um território mais inconsciente do que consciente.
A paixão dedicada a ladrões e assassinos reais não se dá no campo da criatividade exclusiva, nem nas convicções profundas sobre o mundo, mas sobretudo naquilo que o crime representa enquanto símbolo. Caso não fosse assim, talvez pouca preocupação por parte da criminologia e da psicologia forense teria sido dedicada a tema tão abrangente. Não sendo esse o caso, há uma imediata necessidade de se compreender o fenômeno pelo qual criminosos são amados, idolatrados e, muitas vezes, defendidos por aqueles que, muitas vezes, são suas vítimas em potencial.
Hibristofilia: Uma lacuna na criminologia
Ao se propor à compreensão do funcionamento do crime, a criminologia desenvolveu diversos mecanismos de vieses de análise (criminogênese e criminodinâmica, por exemplo), porém pode se dizer que acabou por ignorar um fator subsequente ao conhecimento tomado pela sociedade em relação ao seu cometimento: o fascínio. Para uma área dedicada ao entendimento global do crime, o impacto social causado pelo ato transgressor deve ser levado em conta no estudo de cada caso. Afinal, todo crime deixa um rastro de consequências, mesmo depois de sua devida punição, e é preciso avaliar os prejuízos causados por essa permanência subjetiva.
Fascínio, admiração e até mesmo amor podem estar relacionados com o conceito de hibristofilia, uma palavra de origem grega conjugada a partir de dois radicais, “ὑβρίζειν” (hubrizein), que significa “cometer um ultraje contra alguém”, e “φίλος” (philos), que significa “amor, amizade, ter uma forte afinidade/preferência por”. Diferentes autores referem diferentes conceitos, mas todos cercam a ideia de o hibristofílico ser sexualmente atraído por um parceiro que possui um comportamento criminal, em suma.
A hibristofilia está contida na listagem de parafilias, condição em que fatores não ligados ao ato sexual assumem protagonismo em seu exercício. Em outras palavras, as parafilias são comumente conceituadas como transtornos em que o foco da libido sexual recai em atos ou objetos, e não necessariamente no parceiro (Kaplan & Sadock, 2017). Exemplificativamente, casos como o da necrofilia ou da pedofilia fazem com que o foco da libido sexual esteja no fato de o parceiro estar morto ou de ser uma criança, respectivamente. No caso da hibristofilia, pouco importam as manias, as filosofias e os jeitos do parceiro sexual, desde que esse esteja envolvido em uma atmosfera de criminalidade.
Desde o fundamento da escrita, com a elaboração do que viria a se tornar a ficção, o crime parece representar uma ruptura com o mundo civilizado. Um contraste ao mundo do direito, aquele fundado em normas hipotético-dedutivas reguladoras do comportamento humano que garantem a ordem em uma determinada sociedade. Sempre que o crime é praticado, seja na realidade, seja na ficção, há o surgimento do fascínio pela quebra normativa. A questão é entender onde reside a gênese e como se desenrola a dinâmica desse paradoxal fenômeno.
Em todas as civilizações, ao longo da história, há registros de algum grau de admiração por figuras transgressoras de normas, tanto na ordem mitológica/religiosa, quanto no que tange ao caráter histórico/social.
Na mitologia grega, o deus Hermes, normalmente associado aos mensageiros, era também o deus dos ladrões, pois supostamente inspirava astúcia e agilidade aos seus fiéis e contribuía assim para maiores sucessos nas empreitadas criminosas. Do ponto de vista estritamente mitológico, Hermes era adorado pelo que inspirava, e pode-se perceber uma atribuição de qualidades àqueles representados pela sua divindade, assim como uma projeção divina sobre as qualidades típicas de ladrões. Um duplo viés: não só os ladrões têm algo de divino, como o deus tem algo de larápio.
Uma singela análise dos aspectos mitológicos é suficiente para detectar a presença de mecanismos psíquicos, tais como aqueles descritos por Anna Freud (projeção, deslocamento e defesa egóica), que apontam para o mundo interno (Freud, 1936)[3] dos sujeitos desse fenômeno. Sendo os deuses uma construção da própria mente humana[4], é de interesse da angustiada psiquê a projeção de valores, mesmo que artificiais, a uma entidade metafísica inalcançável e externa como meio de autovalidação. Nesse sentido, parece que o exemplo mitológico tem mais a ensinar sobre a hibristofilia do que originariamente se pensava.
Com efeito, o crime parece provocar sentimentos positivos quando, para além de sua concretude ilícita, representa virtuosidades desejadas, elas reais, imaginadas ou projetadas. No caso de Robin Hood, por exemplo, uma figura mítica muito conhecida da Inglaterra do século XII, o roubo de ricos para distribuição aos pobres deixa de ser compreendido como ‘roubo’ e passa a integrar um ato heroico de justiça, justamente por ser essa uma necessidade epocal, assim entendida pela população extremamente pobre e abusada pelo poder monárquico como um meio de resistência a poderes invencíveis.
Exemplos americanos
No século XX, os Estados Unidos lideraram – em número absoluto e relativo – os assassinatos seriais em relação ao restante do mundo, apresentando algumas características interessantes do ponto de vista criminológico. No caso dos assassinos seriais americanos, observam-se carreiras mais longas e menos vítimas por caso, o que é contrário ao resto do mundo (Jenkins, 1992)[5]. Também é crucial a relação entre essa concentração de assassinos e a quantidade de produções que enaltecem de alguma maneira esse tipo de crime. Os Estados Unidos são ainda os maiores produtores audiovisuais do planeta, havendo uma larga produção dedicada a contar a história e as características de criminosos e de suas vítimas.
Charles Manson é uma dessas figuras alçadas ao estrelato. Foi líder de uma seita que o tinha como centro de adoração. Ele atuou como mandante de assassinatos brutais em 1969. Dentre as vítimas, estava a atriz Sharon Tate, grávida do diretor Roman Polanski na época. Manson foi condenado à prisão perpétua e permaneceu preso até morrer, em 2017. Em reportagem sobre os 50 anos da morte da atriz, o jornal El País escreveu no subtítulo da matéria:
Retratados no novo filme de Tarantino, “Era uma vez em…Holywood”, assassinatos da atriz e de mais cinco pessoas ainda geram fascínio e repulsa.[6]
O fascínio aqui assume duas frentes. O filme “Era uma vez em Hollywood”, de Quentin Tarantino, foi vencedor de dois Oscars em 2020, além de ter sido um dos campeões de bilheteria daquele ano. Charles Manson, enquanto esteve preso, recebia centenas de cartas; mulheres tatuavam a suástica em homenagem a ele; chegou a ficar noivo de uma admiradora. Ou seja, o fascínio vem representado por aquelas mais hibristofílicas, encantadas pela figura criminal de Manson, e também pelos menos hibristofílicos, chocados pela sua representação no audiovisual. Em ambos os casos, de amor ou de repulsa, é como se a figura do criminoso fosse inevitável. Pelo amor ou pela repulsa, consome-se o que é oferecido sobre o tema, por haver certa onipresença de seus atos criminosos na mídia de entretenimento, e pela busca misteriosa do que atrai o humano a esses temas.
Outro assassino serial a se tornar parte da cultura americana foi Ted Bundy. Condenado à morte por estuprar e assassinar mais de 30 mulheres, nos anos 70. Também foi personagem protagonista em séries e filmes desde então. E igualmente recebeu centenas de cartas apaixonadas (Rodrigues, 2009)[7]. Casou-se com uma admiradora durante o julgamento e teve uma filha ainda na prisão. Um dos filmes mais proeminentes sobre ele foi Ted Bundy: a irresistível face do mal (2019), cujo protagonista criminal é interpretado por Zac Efron, considerado em 2008 um dos homens mais bonitos do mundo, contribuindo para a imagética de Bundy ter sido um “assassino serial atraente”.
Outro caso, acontecido nos mesmos termos, foi aquele de Richard Ramirez, também conhecido como Night Stalker. Foi condenado à morte por 13 homicídios nos anos 80. Dizia-se satanista, conferindo ao rito de morte um caráter religioso e metafísico. Também foi alvo de cartas de fãs. Casou-se com uma delas, inclusive: a admiradora Doreen Lioy.
A onda de filmes de assassinos seriais foi muito lucrativa para Hollywood. Schmid (2005)[8], ao discorrer sobre o tema, cunhou o termo murderabilia industry, justamente para definir a categoria de cinema dedicada ao uso e abuso da imagem de criminosos violentos[9]. Uma dúvida suspensa é justamente se o país com mais histórico de assassinos seriais seria também o país com mais produções audiovisuais de entretenimento de massas sobre o assunto por mera coincidência, ou se há uma correlação entre os dois fatores.
Exemplos brasileiros
Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido como Lampião, foi um conhecido criminoso que percorreu diversos estados brasileiros cometendo saques, estupros e assassinatos, nas décadas de 20 e 30. Terminou se tornando parte de um folclore que deturpa sua imagem, associando-o a um ideário de libertação e luta. Essa distorção não se deu de maneira aleatória. Foi uma bem construída artificialidade que permanece como verdade para muitos que ainda hoje se debruçam sobre a sua história.
Lampião era líder de um bando de mais ou menos 30 criminosos, e os coordenava de modo a nunca se manter em um mesmo lugar por muito tempo, dificultando a atuação policial da época. Roubava bancos, assaltava grandes figuras, promovia estupros coletivos e públicos, decapitava as suas vítimas, e fazia questão de que seus feitos fossem registrados e alardeados pelos jornais. Gostava que sentissem medo e submissão.
No entanto, Lampião é parte de um folclore nordestino intenso e permeia o imaginário da população brasileira de modo a constituí-lo como uma figura social de relevância na história brasileira. Seu vestuário típico, suas armas características e a música de cangaço, pela qual acabou se tornando conhecido também pela alcunha de ‘O rei do cangaço’, constituem uma impressão positiva de sua persona, a despeito de todos os crimes que cometeu em vida. Parte do entendimento sobre Lampião está nas suas supostas bem intencionadas lutas contra um sistema opressor e no entendimento de associá-lo a uma classe baixa que se revolta contra as dificuldades intrínsecas do sistema capitalista.
Em 2012, o canal de televisão SBT promoveu um programa chamado ‘O maior brasileiro de todos os tempos’, que contou com votação popular para o estabelecimento de uma lista de cem nomes. Lampião ocupou a 74° posição, demonstrando sua força e sua presença no imaginário brasileiro, mesmo quase 80 anos após seu falecimento.
Sua morte e sua história legam uma dúvida: como um criminoso tão notório e assumido poderia ter sua imagem associada a ideias tão virtuosas como a luta contra a opressão estatal e a libertação de povos subjugados?
A propósito desse assunto, Grunspan-Jasmine[10] diz:
Uma das hipóteses da legitimação da violência seria a ausência de representação do poder do Estado do sertão e a predominância do poder privado ligado à posse de terra. No período que nos interessa, essa delegação existe, mas os representantes do poder (justiça, principalmente polícia) ou estão submetidos aos potentados locais – os coronéis -, ou são obrigados a se retirarem, impotentes de exercer suas funções.
Conforme antes mencionado, o fascínio pelo crime pode ser associado ao mecanismo de projeção de um desejo a ser realizado na fantasia que se apossa da psiquê para assim se permitir realizado. No caso de Lampião, os crimes preenchiam uma lacuna onde o Estado não conseguia atuar.
Consequentemente, surgiu uma divisão no imaginário popular, uma alternativa àquilo que é representado pelo Estado. Jaggar (1989)[11] aponta que é justamente o compartilhamento de valores e normas próprias que cria o chamado “sentimento de banditismo”, uma quebra normativa irretornável e separacionista no campo do pertencimento. Em outras palavras, a formação de noções de direito paralelas ao Estado contribui para a criação dessas imagéticas aversas aos valores vigentes que compõem a maior parte da sociedade.
Assim sendo não demorou muito para que a atuação de Lampião criasse um entendimento de instauração de um espaço-território de não-Estado que supera em alguma instância o Estado, que é aparentado de modo livre de amarras opressoras e dotado de qualidades virtuosas na superfície, como coragem, disposição e força, em contraste ao sentimento negativo prévio em relação às forças estatais.
Hobsbawm vai além. Propõe que a confusão provocada por esse sentimento de banditismo acabe desvirtuando as intenções primeiras e conferindo ao crime um caráter admirável. No caso de Lampião, o banditismo foi fortemente associado a um caráter revolucionário e libertador (Hobsbawm, 1969)[12]. Dessa maneira, quem compartilhasse o sentimento libertário e revolucionário, em alguma instância, teria também o que admirar no grupo de Lampião. Esse tipo de associação pode gerar distorção na percepção das populações, sobretudo quando dotadas de baixa qualidade educacional.
Outra importante característica criminológica no caso de Lampião foi sua propaganda. Lampião manteve por perto equipes de filmagem para a produção de seus filmes por bons anos de atuação de seu bando e garantiu a disseminação de uma imagética artificial e calculada. Embora mostrasse os membros da gangue exibindo armas e pilhagem, o que com o tempo acabou representando sinais de força e bravura, os documentários também mostravam momentos íntimos e amigáveis, como Maria Bonita arrumando seu cabelo e preparando sua comida, o bando rindo e jogando cartas, lustrando seus rifles em uma intencional humanização de seus membros (Caldas e Ferreira, 1997).
Talvez aqui resida um ponto relevante acerca da admiração social sobre essas figuras violentas. Justamente ao tipo de exposição a que esses criminosos têm acesso ao cometerem seus crimes.
No Brasil, um dos mais proeminentes assassinos seriais da história ficou conhecido como Pedrinho Matador. Preso pela primeira vez em 1973, passou 42 anos na cadeia. Concedeu diversas entrevistas enquanto esteve preso e mais ainda quando foi solto. Nelas sempre relatava sobre a primeira vez que tirou uma vida, ainda aos 14 anos, tendo como vítima o então prefeito de uma cidade por ter, supostamente, demitido seu pai do trabalho de vigia em uma escola municipal. Ao todo, assassinou mais de 100 pessoas, muitas dentro da prisão. Sobre esses crimes falava com tranquilidade sempre que questionado. Durante bom tempo de cumprimento de sua pena, ficou conhecido como “assassino de bandido”, uma vez que grande parte de suas vítimas eram justamente prisioneiros condenados. Muitas vezes foi assim noticiado, causando a já mencionada confusão de sentimentos na população que aprendeu a apreciá-lo pelo carisma das entrevistas e pelo fato de ter assassinado outros criminosos ao longo do cumprimento de sua pena. Ele teve várias companheiras e admiradoras, tendo casado na prisão.
Outro proeminente nome da lista de criminosos famosos por seus crimes é o do “Maníaco do Parque”, talvez o mais proeminente serial killer brasileiro que, pela natureza de seus crimes, foi alçado pela mídia da década de 90 ao status de celebridade, usado à exaustão na produção de programas sensacionalistas e de cobertura criminal. Moliani (2001)[13] afirma que a primeira notícia sobre o caso ‘Maníaco do Parque’ foi vinculada em 08 de agosto e 1998, e que a vinculação ao caso seguiu após isso por 49 dias ininterruptos. A intensa exposição fez o caso ser alçado ao conhecimento nacional e internacional rapidamente.
Natural de São José do Rio Preto/SP, teria sofrido abuso sexual pela tia quando tinha apenas 10 anos. Outros eventos traumáticos, incluindo uma quase castração na adolescência, foram associados a uma potencial cascata de desencadeamento de sua conduta criminal. Confessou 11 assassinatos e 23 ataques, mas foi condenado por 9 mortes. Atuava de maneira objetiva e calculada. Sempre às sextas-feiras e aos sábados. Aproximava-se de mulheres emocionalmente vulneráveis. Apresentava-se como olheiro de moda e dirigia a essas mulheres elogios e promessas de boa vida. Pela vaidade, conduzia suas vítimas com atuação confiante. Elas subiam em sua moto e ele as levava para o parque público, parque do Estado, grande e arborizado, onde as violentava sexualmente e as assassinava deixando os corpos escondidos na mata. O modus operandi envolvia enforcamento, espancamento, abuso sexual e, talvez a firma/assinatura mais emblemática, mordidas (Moliani, 2001)[14]. As vítimas eram todas mulheres jovens, entre 18 e 27 anos, bonitas, vaidosas, desempregadas ou em subempregos (Alcalde, 1999)[15]. Foi condenado a 121 anos de prisão. Entre as acusações, um homicídio triplamente qualificado. As avaliações psicológicas aplicadas durante sua prisão não causaram nenhuma surpresa ao constatarem o diagnóstico de Transtorno de Personalidade Antissocial, conjunto de sintomatologias visíveis nas diversas entrevistas e programas dos quais participou durante seu cumprimento de pena. Nelas, é possível ver um indivíduo calmo, articulado e educado, com bom vocabulário, voz mansa e preocupado em demonstrar consternação frente a seus impulsos sexuais e homicidas descontrolados.
Mesmo com um histórico criminal confesso, o “Maníaco do Parque” foi alvo de cartas e presentes por afeto e admiração de diversas mulheres de todo o Brasil. As intensões variavam entre curiosas, admiradoras e até pessoas que diziam querer “salvá-lo” ou “dele cuidar”. Muitas dessas cartas eram de mulheres oferecendo casamento, apoio emocional e até apoio financeiro. Algumas se declaravam apaixonadas sem nunca tê-lo visto pessoalmente, enquanto outras diziam acreditar em sua inocência, sem saberem nada sobre os processo judiciais de seus crimes. Havia também mulheres que relatavam sentir pena ou a vontade de “cuidar” dele. O jornalista Gilmar Rodrigues (2021)[16] afirma que cerca de mil cartas de amor foram enviadas apenas no primeiro mês após sua prisão, em 1998.
“Por enquanto, nossos beijos são assim. Mas quero te beijar de verdade. Acho que tens saudades. Eu te amo, te amo, te amo etc. Te desejo, te quero de corpo e alma. E me perdoe por tudo que estou sofrendo…”[17]
Tais sentimentos se estenderam por todo o cumprimento de sua pena. Em entrevista concedida ao jornal O Globo (2024) por um familiar do Maníaco do Parque, ficou assente que as visitas e os presentes foram uma constante ao longo de todo o tempo em que ele ficou preso. As admiradoras, mesmo com a diminuição da exposição na mídia, continuaram a procurá-lo. Inclusive, ele se casou com uma delas. Na separação, a mulher disse que ele tinha uma personalidade difícil, com comportamentos esquisitos.
Mas o fascínio não é exclusivo das mulheres que lhe encaminharam cartas, como também do público amplo que se dedicava a compreender seus crimes e suas motivações. A série que conta a história do Maníaco do Parque bateu recorde de audiência durante sua estreia no canal de streaming Prime Video (2024)[18], movimento muito semelhante àquele adotado pelas produções audiovisuais americanas e pelo público consumidor dessas histórias.
Entendimento sobre os fascinados
Entender a causa do fascínio pelas figuras violentas e transgressoras é um desafio para a psicologia, pois não se pode incorrer no erro de massificar os comportamentos e lhes atribuir motivações categorizantes e generalizantes, uma vez que há um espectro de nuances para a projeção da subjetividade. No entanto, é possível detectar pontos comuns, e entendê-los a partir de contribuições sociológicas, antropológicas e, claro, psicológicas.
O estudo de Harrison & Frederick (2020)[19], por exemplo, categorizou o interesse por figuras de assassinos seriais em três grandes temas: i) curiosidade mórbida; ii) curiosidade sexual; e iii) busca por sensações. Nesse estudo, chama a atenção o uso de figuras criminosas como um subterfúgio externo para questões internas, como a curiosidade.
No que diz respeito à curiosidade mórbida, há uma tendência à compreensão dos limites sociais e à busca por respostas fisiológicas fortes. Sabe-se que a mente humana responde mais fisiologicamente a fatores negativos do que a positivos (Larsen, 2008)[20], e que a procura por sensações se aproximam das buscas dopaminérgicas de adictos a substâncias. Ou seja, alguns comportamentos de busca por esse tipo de conteúdo são moldados unicamente pela responsividade fisiológica do cérebro e não necessariamente por grandes simbolizações do aparelho psíquico. Por essa via, assim se explicaria o fenômeno: pela satisfação da curiosidade mórbida.
Importante reparar que os três temas categorizados por Harrison & Frederick (2020) envolvem de alguma maneira a curiosidade, o que remete ao clássico William James (1890)[21] que argumentava ser a curiosidade um meio de aprimorar o conhecimento, e que tal busca se dava de maneira natural e instintiva. A curiosidade sobre a morte, os assassinos e os criminosos, de certa forma aproximam os curiosos de temas que talvez não componham necessariamente seu mundo (Kidd & Hayden, 2015)[22]. Assim sendo, cabe à busca ativa por mais informações aliviar a ansiedade do desconhecido, conferindo ao curioso a sensação de controle sobre o ambiente onde se vê inserido. Em outras palavras, seria correto dizer que boa parte dos consumidores de entretenimento construído sobre a imagética dos criminosos violentos está, na verdade, buscando evitar se tornar uma vítima (Vicary & Fraley, 2010)[23].
Outro ponto importante é que justamente a glamourização e a exposição exacerbada de criminosos violentos sejam os fatores responsáveis por uma dessensibilização da natureza dos crimes (Mallett, 2019)[24]. Ironicamente, a intensa exposição a criminosos e seus crimes, ao invés de contribuir para o entendimento de sua periculosidade, inclinam a percepção da população para uma costumeira presença, aumentando as chances de desenvolvimento de sentimentos outros, muitas vezes positivos.
Outras características psicológicas associada ao fascínio pelo crime são:
- a) baixa autoestima;
- b) elevado grau de impulsividade comportamental;
- c) confiança extrema (Tharshini et al., 2021)[25].
Tais características são observadas em mulheres vítimas de golpes românticos, pois também elas apresentam altos níveis de impulsividade e buscam experiências novas e intensas, o que pode aumentar a vulnerabilidade a relacionamentos com pessoas de perfil criminoso. Essas mulheres tendem a confiar mais facilmente nos outros, mesmo em situações de risco, e apresentam níveis mais baixos de amabilidade, o que pode indicar redes sociais menos protetivas e maior isolamento.
No entanto, são entendimentos diferentes. Mulheres vítimas de golpes românticos ou de parceiros violentos são, muitas vezes, e em verdade, vítimas das próprias prisões psíquicas que as inclinam para tais resoluções. Situação muito diferente daquela em que uma mulher se atrai convictamente por um parceiro ou parceira permeado pela aura da criminalidade.
Mulheres atraídas por homens criminosos, violentos e agressivos geralmente associam esses traços comportamentais a fatores positivos, como masculinidade, força e coragem (Puigvert et al., 2019)[26], e tal entendimento talvez se dê unicamente no campo da simbolização social. Essa mistura de conceitos pode ser projetada para figuras extremamente violentas de maneira descalibrada gerando os sentimentos positivos já discutidos.
Há também o fato de que a situação de um parceiro em cárcere gera maior sensação de controle. É inegável que, para uma mulher com baixa autoestima e capacidade emocional reduzida, é uma solução aparentemente fácil se relacionar com alguém que não poderá trocá-la ou traí-la com tanta facilidade.
No entanto, é preciso desde já deixar claro que a hibristofilia não é um fenômeno exclusivo de mulheres. Bruns refere o caso em que uma criminosa “afamada” teria aparentemente “encantado” um promotor de justiça e um médico (Bruns, 2022)[27], e refere que tais comportamentos sedutores são característicos e que as vítimas podem ser de variegadas condições sociais, econômicas e educacionais. Mesmo que o encantamento não tenha se dado para além de alguns benefícios alimentícios e de privilégio de atendimentos no interior do presídio, é de significativo destaque o fator psicológico que um agente criminoso exerce sobre o fascínio humano, a despeito do gênero em que ocorre.
A personagem criminal a que se refere o supracitado autor foi responsável por um dos crimes mais marcantes do Brasil. Assassinou os pais com ajuda do namorado, em 2002, e ficou presa até 2023. Também recebia cartas de admiradores, promessas e garantias, assim como convites para experiencias amorosas. Consta que teve relacionamentos sérios ainda na prisão, sendo um deles de natureza homoafetiva, condições que se explicam por várias teorias psicossociais, uma delas que destaca a especial situação própria do isolamento social.
As cartas não mentem[28]
Um importante fator de compreensão da psicologia dos fascinados está justamente no conteúdo das cartas endereçadas aos criminosos violentos durante suas penas. Trindade e Trindade (2025) realizaram análise de conteúdo no material das cartas selecionadas e organizadas no livro de Gilmar Rodrigues (2021) utilizando a metodologia de Bardin (2004)[29] e encontraram cinco temas comuns:
- admiração;
- solidão;
- ciúme;
- desvalia;
Em todos eles, importante apontar, há forte inclinação externa, ressaltando o caráter de falta de autonomia emocional das autoras das cartas, em que é preciso um agente externo para a consagração do sentimento. Como dispôs Freud (1905)[30]: todo encontro com o objeto é um reencontro. A criança, ao ser amamentada, tem sua primeira relação de satisfação em relação ao mundo por meio de um agente externo, o seio, que a alimenta e a conforta. Dessa forma, quando não bem individuado, o sujeito passa a vida buscando o agente externo que consagre sua satisfação outra vez.
De maneira semelhante, Costa, Ferraz & Ribeiro (2013)[31] remetem ao ideário romântico medieval ao utilizarem a visão lacaniana sobre o endereçamento ao Outro, ou seja, ao fator externo, direcionando a energia psíquica para a resolução da impossibilidade de relação. Nesse sentido, a escrita de cartas a criminosos violentos serve como endereçamento de um amor impossível, idealizador e inacessível, convertendo o sentimento romântico em uma idolatria cega, que, ao invés de compensar as faltas internas, distrai o aparelho psíquico das ansiedades de lidar com suas consequências.
Ainda de uma perspectiva freudiana, tais sentimentos nada mais são que uma projeção de desejos e receios sobre uma figura externa, constatável por meio das cartas e seus conteúdos sentimentais. Como remetem Trindade e Trindade (2025) sobre o poema de Fernando Pessoa[32], a busca pelo outro mascara o contato consigo mesmo.
Causas e motivações na psicologia e no direito – uma síntese
É possível delinear um padrão comportamental nas pessoas fascinadas por essas figuras transgressoras por meio do entendimento dos mecanismos que tornam o fascínio possível. Esses mecanismos, em sua vasta parte, são de origem psicológica/simbólica, e lidam diretamente com a relação com que o transgressor simboliza internamente.
Projeção: como discutido anteriormente, a projeção inconsciente é um poderoso fator para a manifestação da hibristofilia. É possível encontrar no crime material o simbólico suficiente para criar o ligamento inconsciente de um desejo que se realiza simbolicamente na realidade concreta. A projeção também pode estar ligada à fama consequente aos atos violentos, como nos casos já discutidos. Afinal, quanto mais midiático é o caso, mais correspondência os criminosos recebem. Além disso, muitas mulheres projetam no criminoso figuras paternas/maternas ou elaboram fantasias de submissão/dominação, onde o perigo é erotizado.
Fantasias: a ideia de que o criminoso pode ser salvo e que tal salvação depende de um ‘amor certo’, é a caracterização de uma fantasia tipicamente humana. Muitas obras literárias e cinematográficas exploram esse conceito que flerta diretamente com o desejo de mulheres, muitas vezes, serem fatores de correção a seus homens. Há ainda o entendimento lacaniano do gozo na alteridade radical em que o criminoso funciona como o “Outro absoluto”, radicalmente diferente do homem comum, e uma estrutura para além da simbolização. A relação se torna uma forma de gozo naquilo que escapa à ordem social simbólica, em uma conceituação mais precisa da parafilia.
Pulsões de morte: o ato criminoso é uma negação superegoica, ou seja, uma contradição a tudo quanto possa ser regido pelo direito normativo. Uma inclinação psíquica inconsciente à destruição, ao perigo e à morte. A atração pelo poder de se negar uma força normativa ao mesmo tempo em que se põe em perigo nessa relação, em uma caracterização das chamadas pulsões de morte, que Freud descrevia como sendo tendências humanas à destruição e à violência, pode assumir vieses eróticos. A atração por criminosos violentos também pode estar ligada ao limite entre Eros (vida) e Tânatos (morte), e a partir do perigo surge a tensão que a ser interpretada de maneira erótica/sexual.
Emoções instáveis: a instabilidade emocional pode ser atraente para muitas pessoas, sobretudo quando ainda se encontram em estado de imaturidade emocional. Não saber se serão traídas, trocadas ou agredidas pode ser um fator de emoção em um relacionamento. As sensações fisiológicas provocadas pelas incertezas podem ser viciantes, como o estresse e a ansiedade, e ocuparem um lugar de único estado conhecido e, portanto, passível de ser “controlado”.
Busca por notoriedade: como visto, a baixa autoestima é um fator proeminente nas pessoas que se relacionam com criminosos, talvez justamente a disseminação midiática desses atos contribua para o engrandecimento da aura criminal e do fascínio popular. Além disso, o engrandecimento midiático pode gerar sentimento de “ser especial” por se relacionar com alguém tão em foco, mesmo que por cometimento de crimes violentos.
Sentimento de salvador: muitas pessoas podem internalizar a convicção de que o criminoso, na verdade, é “mal interpretado”, inocente ou ainda “não tão ruim assim”, como foi o caso com diversos exemplos citados anteriormente. Os fatores psicológicos de baixa autoestima e alta confiança podem criar a convicção de que, sob os fatores corretos, os criminosos podem “ser consertados”, conferindo um lugar especial e privilegiado a quem estiver ao lado deles.
Direcionamento da energia psíquica a um agente externo: o lide de faltas internas, sentimentos de vazio e perda de sentido/propósito é convertido em admiração, idolatria e sentimentos passionais em relação a figuras de grande potencial simbólico, normalmente figuras violentas, que impactam conceitos arquetípicos e subconscientes.
Mídia: todos os casos aqui considerados tiveram grande repercussão midiática, e garantiram aos criminosos violentos extensa e intensa exposição a grandes públicos. Além disso, o mercado de entretenimento faz uso recorrente dessa figuras violentas, de modo a sempre mantê-los em vista, contribuindo para seu alicerçamento no imaginário coletivo.
Considerações finais
A protocolização da Lei Anti-Oruam em nível federal (2025) e o crescimento exponencial das polêmicas envolvendo os discursos contra o crime organizado no Brasil têm sido propícios para o reascender de uma discussão em níveis sociais: a romantização do crime enquanto parte de uma suposta cultura brasileira.
A relativização da violência, a banalização do crime e a exaltação de uma suposta “cultura” marginalizada enquanto expressão do que é intrinsecamente brasileiro parecem ser movimentos sociais sustentados por um sentimento hibristofílico inconsciente e de larga escala. Uma vez entendidos os fatores individuais que causam a hibristofilia, é possível expandi-los para um nível social?
Muitos são os autores a abordar, de maneira intencional ou não, a relativização do crime enquanto uma expressão de cultura (De Oliveira, 2017; Oliveira, 2021; Martins & Ribeiro, 2018)[33] [34] [35]. A confusão entre brasilidade e crime vem sendo defendida de modo a se inverter valores morais que mantém o Estado coeso. A própria mídia jornalística age nesse sentido, naturalizando músicas apologistas ao crime organizado enquanto expressão tipicamente brasileira, utilizando-se inclusive de subterfúgios retóricos para tal defesa, alegando se tratar de ‘arte’, portanto, isenta de críticas[36]. A confusão entre expressão cultural e endossamento de prática criminosa contribui para o desenvolvimento da noção de que o crime organizado possa ocupar as lacunas estatais enquanto um “poder paralelo”, como discutido anteriormente. Essa questão é de difícil entendimento e pode, sem dúvida, mascarar outros fatores mais universais, uma vez que o fenômeno da Hibristofilia não se restringe somente ao Brasil.
É o caso de Oruam, associado ao projeto de lei que visa o não direcionamento de recursos públicos para financiamento de ‘artistas’ que glamourizem, referenciem ou apoiem facções criminosas, citado anteriormente. Tal entendimento é óbvio, a partir do ponto de que o Estado não pode corroborar com narrativas nem ações que desarticulem o próprio Estado, como é o caso de artistas vinculados a facções criminosas que, por sua natureza, constituem a formação de um Estado paralelo no stricto sensu de constituição de Estado, como apresentado por diversos autores[37]: com leis, território e influência política próprios.
Em um exemplo, Oruam canta que “tráfico (um crime tipificado) está virando esporte (ação normalizada sem pretensão moral)”, e aqueles simpatizantes de seu entendimento continuem o “terror do Estado (de direito, institucionalizado e democrático)”. Oruam, importante apontar, é filho do conhecido criminoso Marcinho VP, líder e organizador do Comando Vermelho, e frequentemente a esse fato alude dizendo ser “filho do chefe”.
Oi, boladão, pesadão, não conto com a sorte
Minha Glock travou no Robocop
O tráfico tá virando esporte
Formou foi mó complexão
Mas o que falta é educação
Um dia que o fuzil e a pistola
Valer mais que um livro
Aí tem algo errado
Eles dão arma pra nós, depois pergunta por que somo bandido
(Trem do ódio, vai tomar só na cara) terror do Estado[38]
A confusão entre análise social e naturalização do crime é feita da mesma maneira observada nas propagandas de Lampião, por exemplo. Ao dizer que é um problema o fuzil e a pistola valerem mais que um livro, e ao misturar esse entendimento à aura de grandiosidade frente ao poder estatal, a letra se apoia na confusão entre crime e luta social, e oferece a organização criminosa como preenchimento lacunar dessa inacessibilidade ao Estado. Tais intenções de confusão são observadas em outros exemplos, não dispostos aqui por desnecessidade.
Oruam se entregou à polícia depois de mandado emitido pela Justiça do Rio de Janeiro, e foi indiciado por sete crimes, dentre os quais constam tráfico de drogas, associação ao tráfico, resistência, desacato, dano, ameaça e lesão corporal. Alguns desses crimes se deram na noite em que agrediu policiais lançando pedras contra eles por procurarem um famoso ladrão de carros do Rio de Janeiro, que se escondia na casa de Oruam[39]. Preso, Oruam se identificou como filiado ao Comando Vermelho, facção criminosa organizada e liderada por seu pai.
Nas redes sociais, diversos setores saírem em defesa de Oruam alegando haver perseguição por parte do Estado a uma “cultura marginalizada”. Ao lançar a música que afronta o projeto de lei federal, Oruam voltou a ficar na lista de mais ouvidos nas plataformas digitais.
Vê-se em relação a Oruam e toda sua imagética de “cultura marginalizada” o mesmo que se via em Lampião e seu “banditismo social”, e as demais distorções da realidade em que o crime parece justificável, compreensível e até mesmo admirável. Por meio dos mecanismos individuais e sociais, a transgressão do crime se metamorfoseia e assume formas adaptáveis em meio àqueles que contribuem para a devida manutenção do Estado.
Não obstante, é de se observar que, seguindo os mesmos passos americanos, o Brasil vem há bastante tempo glamourizando a transgressão legal, consequentemente relativizando o comportamento violento. Citou-se Lampião e os casos recentes do Maníaco do Parque e de Pedrinho Matador, mas pode-se ir além. A própria cegueira autoimposta pela paixão da polarização política no país reflete em algum nível o fascínio e a admiração típicos da hibristofilia. A defesa inquestionável e descriteriosa de figuras corruptas soa como uma deturpação do aparelho psíquico, em que as projeções sobressaltam às noções racionais e moldam o comportamento de modo compensatório e validativo.
Não se pode ignorar os impactos dos fenômenos psicológicos sobre as massas. Não seria a hibristofilia social um subtipo de falsa memória coletiva (Trindade & Boettcher, 2024)[40] [41], em que uma convicção assume o centro de um repertório de comportamentos? Em que as percepções sociais são deturpadas a partir de entendimentos enraizados nas crenças, nas narrativas e nos discursos? A atual conjuntura de ações e escolhas da população brasileira dão a entender que esse será ainda um assunto a ser retomado pelos dedicados aos estudos da psicologia forense e social.
Referências
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EXEMPLO de matéria: [https://www.brasildefato.com.br/2025/07/29/oruam-foi-preso-por-questionar-o-fratricidio-nas-favelas-do-rio/](https://www.brasildefato.com.br/2025/07/29/oruam-foi-preso-por-questionar-o-fratricidio-nas-favelas-do-rio/).
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[1] DURKHEIM, E. Las reglas del método sociológico. Trad. A. Ferrer y Robert. Madrid: Akal, 1991. (Obra original publicada em 1895).
[2] DOSTOYEVSKY, F. Crime e castigo. 1 ed. São Paulo: 34, 2007. 568 p.
[3] FREUD, A. O ego e os mecanismos de defesa. 1. ed. Porto Alegre: ArtMed, 2005.
[4] Como nos mostra Michelângelo em sua magistral obra A Criação de Adão.
[5] JENKINS, P. A. Murder “Wave”? Trends in American Serial Homicide 1940-1990. Criminal Justice Review, v. 17, p. 1-19, 1992. DOI: [https://doi.org/10.1177/073401689201700102](https://doi.org/10.1177/073401689201700102).
[6] Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/01/cultura/1564673873_374429.html, acessado em 10/09/2025.
[7] RODRIGUES, G. Loucas de Amor: mulheres que amam serial killers e criminosos sexuais. Porto Alegre: Ideias a Granel, 2009.
[8] SCHMID, D. Natural born celebrities: Serial killers in American culture. Chicago, IL: University of Chicago Press, 2005.
[9] Sugestão de complemento ao assunto: ARAGONE, G. de A. O consumo também é em série: a figura do Serial Killer como produto midiático. Anagrama, v. 16, n. 2, 2022. DOI: [https://doi.org/10.11606/issn.1982-1689.anagrama.2022.200276](https://doi.org/10.11606/issn.1982-1689.anagrama.2022.200276).
[10] GRUNSPAN-JASMINE, E. Lampião, senhor do sertão: vidas e mortes de um cangaceiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
[11] JAGGAR, A. Love and Knowledge: Emotion in Feminist Epistemology. Inquiry, v. 32, n. 2, p. 151-176, 1989.
[12] HOBSBAWM, E. Bandits. New York, NY: The New Press, 2000. (Obra original publicada em 1969).
[13] MOLIANI, J. Autoria e estilo na imprensa escrita: o caso do maníaco do parque. 2001. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2001.
[15] ALCALDE, L.; SANTOS, L. Caçada ao Maníaco do Parque. São Paulo: Escrituras Editora, 1999.
[16] RODRIGUES, G. Loucas de Amor: mulheres que amam serial killers e criminosos sexuais. Porto Alegre: Ideias a Granel, 2009.
[17] Carta de admiradora descrita em ‘Loucas de Amor’, de Gilmar Rodrigues.
[18] NUNES, T. Maníaco do parque: a história não contada. Prime Video, 2024.
[19] HARRISON, M. A.; FREDERICK, E. J. Interested in serial killers? Morbid curiosity in college students. Current Psychology, 2020. DOI: [https://doi.org/10.1007/s12144-020-00896-w](https://doi.org/10.1007/s12144-020-00896-w).
[20] LARSEN, J. T. et al. The psychophysiology of emotion. In: Handbook of emotions. 3. ed. p. 180-195, 2008.
[21] JAMES, W. The principles of psychology. New York, NY: Henry Holt and Company, 1890.
[22] KIDD, C.; HAYDEN, B. Y. The psychology and neuroscience of curiosity. Neuron, v. 88, n. 3, p. 449-460, 2015.
[23] VICARY, A. M.; FRALEY, R. C. Captured by true crime: Why are women drawn to tales of rape, murder, and serial killers? Social Psychological and Personality Science, v. 1, n. 1, p. 81-86, 2010.
[24] MALLETT, X. Glamorising violent offenders with ‘true crime’ shows and podcasts needs to stop. The Conversation, 2019. Disponível em: [https://theconversation.com/glamorising-violentoffenders-with-true-crime-shows-and-podcasts-needs-to-stop-121806](https://theconversation.com/glamorising-violentoffenders-with-true-crime-shows-and-podcasts-needs-to-stop-121806).
[25] THARSHINI, N. et al. The link between individual personality traits and criminality: a systematic review. International Journal of Environmental Research and Public Health, v. 18, 2021. DOI: [https://doi.org/10.3390/ijerph18168663](https://doi.org/10.3390/ijerph18168663).
[26] PUIGVERT, L. et al. Girls’ perceptions of boys with violent attitudes and behaviours, and of sexual attraction. Palgrave Communications, v. 5, p. 1-12, 2019. DOI: [https://doi.org/10.1057/s41599-019-0262-5](https://doi.org/10.1057/s41599-019-0262-5).
[27] BRUNS, É. A síndrome do amor bandido: o amor e a prisão de estar em liberdade. 1. ed. São Paulo: Dialética, 2022.
[28] TRINDADE, J.; TRINDADE, L. M. Revista Psiquiatria, Psicologia & Justiça. Porto: Sociedade Portuguesa de Psiquiatria, Psicologia & Justiça. Vol. 9, p. 123 e seguintes, 2015.
[29] BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2004.
[30] FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Obra original publicada em 1905).
[31] COSTA, A.; FERRAZ, M.; RIBEIRO, V. O amor, o feminino e a escrita. Tempo psicanalítico, v. 45, n. 1, p. 29-38, 2013.
Disponível em: hhttp://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci\_arttext\&pid=S0101](http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101). Acesso em: 16 out. 2015.
[32] “Enquanto não atravessarmos a dor de nossa própria solidão, continuaremos a nos buscar em outras metades. Para viver a dois, antes, é necessário ser um.”
[33] DE OLIVEIRA, L. Funk, a voz do morro que arrebata o asfalto: culto à violência ou denúncia das condições de subsistência? 2017.
[34] OLIVEIRA, M. O funk: um ritmo musical controverso e multicultural para o nosso patrimônio. História em Revista, 2021. DOI: [https://doi.org/10.15210/hr.v27i1.22017](https://doi.org/10.15210/hr.v27i1.22017).
[35] Martins, C., & Ribeiro, C. (2018). CULTURA JUVENIL E ESCOLA: O FUNK COMO FERRAMENTA PEDAGÓGICA E DE IDENTIDADE DA JUVENTUDE NEGRA CARIOCA. , 10, 91-108. https://doi.org/10.31418/2177-2770.2018.V10.N00.P91-108.
[36] Exemplo de matéria: https://www.brasildefato.com.br/2025/07/29/oruam-foi-preso-por-questionar-o-fratricidio-nas-favelas-do-rio/
[37] Darcy Azambuja; Miguel Reale; Cezar Saldanha Júnior são alguns exemplos.
[38] Trecho da música “Lei anti O.R.U.A.M”, publicada após a polêmica do projeto de lei.
[39] G1. Justiça nega Habeas corpus e mantém prisão de Oruam; rapper está preso há quase 2 meses: A decisão foi de manter a prisão preventiva. Oruam está preso por tentativa homicídio qualificado contra o delegado Moyses Santana Gomes e o policial civil Alexandre Alvez Ferraz. 11/09/2025, 15h49. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/09/11/justica-nega-habeas-corpus-oruam.ghtml
[40] TRINDADE, J.; BOETTCHER , T. P. Falsas memórias coletivas: da literatura para o direito e outros exemplos – Parte I. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 32, n. 377, p. 13–17, 2024. DOI: 10.5281/zenodo.10685102. Disponível em: https://publicacoes.ibccrim.org.br/index.php/boletim_1993/article/view/1018. Acesso em: 12 set. 2025.
[41] TRINDADE, J.; BOETTCHER, T. P. Falsas memórias coletivas: da literatura para o direito e outros exemplos – Parte II. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 32, n. 378, p. 20–22, 2024. DOI: 10.5281/zenodo.10685166. Disponível em: https://publicacoes.ibccrim.org.br/index.php/boletim_1993/article/view/1021. Acesso em: 12 set. 2025.
Jorge Trindade, PhD
Diretor do Departamento de Psicologia Judiciária do IARGS. Pós-Doutorado em Psicologia Forense. Doutor em Psicologia. Doutor em Ciências Sociais e professor
Coautor: Thomas P. Boettcher – Psicólogo e escritor