Auditoria Jurídica Preventiva para Incorporadoras: como salvaguardar um lançamento imobiliário de futuros processos e danos à reputação?
para IARGS
Resumo
No ápice da incorporação, a euforia dos lançamentos imobiliários convive com os desafios impostos pelas oscilações econômicas, restrição de crédito e a crescente judicialização. Deste contexto emerge uma questão: qual o verdadeiro valor da prevenção? Este artigo pretende iniciar uma reflexão sobre a auditoria jurídica preventiva, sugerindo seu papel para além de processos repetitivos e como parte da estratégia de gestão jurídica da incorporadora. Explora-se como a demonstração de uma conduta diligente na estruturação da incorporação poderia se converter em ativo intangível, construindo uma marca que gera confiança ao consumidor, e, crucialmente, influenciar potencialmente os contornos da responsabilidade civil do incorporador. Inicia-se um debate sobre a possibilidade de uma modulação da responsabilidade, considerando a transparência e a diligência demonstradas como pontos de partida para essa análise. A quaestio iuris que emerge é se o ordenamento jurídico deveria tratar com isonomia a incorporadora que agiu com diligência prévia exaustiva e aquela que sucumbiu à ausência de cuidado, sendo este um convite à reflexão: seria possível pensar numa modulação da culpa correspondente ao grau de diligência empregado?
- Introdução
O mercado imobiliário no Rio Grande do Sul desenha para 2025 um cenário de notável paradoxo: projeta-se um crescimento moderado de 8% nas vendas e 10% no Valor Geral de Vendas (VGV), atingindo R$ 2,3 bilhões, simultaneamente a uma contração de 6% nos lançamentos de novas unidades[1].
Essa aparente contradição revela a complexa conjuntura setorial: demanda aquecida confrontada com desafios macroeconômicos severos, taxa Selic projetada em 11,75% a.a., alta acumulada de 6,54% no INCC, margens de lucro comprimidas — e uma litigiosidade que aparenta crescer, o que levou à definição de temas repetitivos pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Neste contexto, em que a jurisprudência consolidou a proteção ao consumidor ao reconhecer sua hipossuficiência, a exemplo da Súmula 543 do STJ, a auditoria jurídica preventiva transcende a condição de boa prática. Ela emerge como instrumento paradigmático de gestão jurídica estratégica e resiliência corporativa. A questão central não reside mais na aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, ponto pacificado, mas em refletir sobre a profundidade da análise judicial: de que forma a conduta da incorporadora é, ou poderia ser, valorada quando, mesmo diante de um infortúnio contratual, ela demonstra ter adotado uma conduta preventiva diligente?
Considerando que o setor de construção civil representa 7% do PIB nacional e gera milhões de empregos, a incorporação imobiliária assume dimensão de inequívoco interesse público. Esta realidade socioeconômica impõe uma reflexão: a análise da responsabilidade civil não deveria considerar tanto a diligência preventiva quanto o impacto social da atividade empresarial?
- A dimensão estratégica da auditoria preventiva e a análise de riscos na incorporação
A auditoria jurídica preventiva, em sua acepção contemporânea, distingue-se fundamentalmente da auditoria interna tradicional. Enquanto esta se concentra na operacionabilidade ex post facto, aquela se alicerça em metodologias de gestão de riscos jurídicos. Por diligência prévia, entende-se aqui a análise exaustiva e antecipatória das contingências documentais do imóvel, dos riscos regulatórios e da estruturação contratual, tudo antes do efetivo lançamento do empreendimento.
Nesse escopo, é crucial diferenciar a due diligence ou análise de risco contratual dos contratos customizados ou “artesanais”. A primeira é o processo de análise: a investigação de riscos e a adequação das minutas à jurisprudência consolidada. O segundo é o resultado dessa análise. Este processo de diligência não se esgota no lançamento; ele deve permear a operação contínua, aplicando-se, por exemplo, a operações complexas que surgirão na comercialização, como a aceitação de imóveis em dação em pagamento. Nesses casos, uma due diligence prévia sobre o imóvel recebido e a correta estruturação dessa transação são cruciais para evitar a absorção de passivos ou prejuízos futuros. Em contraponto às minutas padronizadas, a elaboração “artesanal” de contratos permite costurar soluções adequadas, auxiliando em melhores contratações e na diminuição da inadimplência.
Essa mesma lógica de mitigação de risco se aplica aos instrumentos financeiros que estruturam o empreendimento. A Alienação Fiduciária de Imóvel, regida pela Lei 9.514/97, assume papel central. Sua função é dupla: serve como garantia primária para o financiamento à produção, o chamado “plano empresário”, no qual o próprio incorporador dá o terreno ou as futuras unidades em garantia ao agente financeiro, e, posteriormente, como garantia nos contratos de venda aos adquirentes. A auditoria preventiva, neste âmbito, é vital. Ela assegura a perfeita constituição formal e o registro adequado dessa garantia, blindando-a contra futuras alegações de nulidade e garantindo a eficácia da execução extrajudicial, mecanismo que reduz o custo do capital para o incorporador.
Na sequência, o Patrimônio de Afetação, previsto no artigo 31-A da Lei 4.591/1964, transcende sua função técnica de segregação. Frequentemente visto apenas como uma garantia ao consumidor — assegurando que haverá recursos para a conclusão da obra —, ele deve ser visto como uma vantagem estratégica para a própria incorporadora. Além dos benefícios tributários relevantes do Regime Especial de Tributação, conhecido como RET, sua correta implementação, com a efetiva segregação contábil e a prestação de contas periódica, converte-se em um pilar de gestão transparente e responsável. É a demonstração fática da boa-fé objetiva, um signo de transparência para com o mercado e os adquirentes. Essa demonstração de gestão é um dos elementos centrais que a auditoria jurídica visa assegurar, pois impacta diretamente a confiança no incorporador.
Finalmente, a auditoria alcança a relação com os fornecedores. A obrigação de registrar a incorporação, conforme o artigo 32 da Lei 4.591/1964, cria nexo jurídico entre incorporadora e fornecedores, a observância a riscos de responsabilidade solidária ou subsidiária. Uma gestão de risco jurídica eficaz, portanto, deve analisar criticamente os parceiros. Isso inclui a verificação da saúde financeira e da regularidade fiscal e trabalhista de fornecedores críticos, como a construtora principal, bem como a análise de seus contratos de empreitada, assegurando que cláusulas de responsabilidade e penalidades por atraso estejam devidamente alocadas. Esta diligência mitiga o risco de paralisação da obra por falha de terceiros.
- Pontos para uma reflexão sobre a modulação da responsabilidade pela diligência
A discussão sobre a responsabilidade civil na incorporação frequentemente recai sobre um paradigma binário: o cumprimento ou o inadimplemento. Contudo, o Direito impõe uma análise mais sofisticada, fundamentada na boa-fé objetiva, prevista no artigo 422 do Código Civil, e em seus deveres anexos de cuidado, informação e proteção.
A demonstração fática da auditoria preventiva surge, neste contexto, como a materialização do cumprimento desses deveres anexos. Ela é a prova de que a incorporadora não apenas cumpriu exigências formais, mas empregou seus melhores esforços para mapear riscos, estruturar garantias como o Patrimônio de Afetação e a alienação fiduciária, e gerir a relação com seus fornecedores.
A quaestio iuris central deste ensaio é, portanto, iniciar uma reflexão sobre se esta diligência demonstrada deve ou não impactar a análise judicial da responsabilidade. Sem a pretensão de apresentar uma fórmula fechada, mas apenas de lançar ideias iniciais que demandam maior estudo e amadurecimento, é que se questiona: a aplicação automática da tese de dano moral in re ipsa por atraso na entrega, bem como a presunção de lucros cessantes, conforme jurisprudência pacífica a exemplo do REsp 1.614.721/SP, não poderiam ser vistas sob uma ótica que observasse se a incorporadora agiu com cautela?
Propõe-se, para fins de debate acadêmico, que o Judiciário poderia, talvez, distinguir o Inadimplemento com Diligência Prévia Demonstrada — onde houve efetivo mapeamento de risco, comprovado pela análise documental, contratual e de fornecedores, ativação de contingências e comunicação transparente — daquele ocorrido por Negligência Estratégica ou por descuido.
Nesse primeiro cenário, onde o inadimplemento se aproxima de um infortúnio inevitável, seria o caso de se exigir a demonstração de sofrimento efetivo, superando a presunção? No segundo, ela quem sabe justificaria.
A própria jurisprudência, a exemplo do REsp 2.025.166/SP, já demonstra capacidade de análises casuísticas complexas. O que se sugere aqui, de forma incipiente, é se tal capacidade analítica não poderia ser aplicada também à valoração da diligência prévia. Seria possível pensar que esta comprovação de diligência influenciasse a decisão em sua totalidade: desde a análise qualificada da culpa, passando pela verificação do nexo causal na extensão do dano, conforme o artigo 944 do Código Civil, até a quantificação da indenização?
A incorporação imobiliária viabiliza o direito constitucional à moradia. Incorporadoras que demonstrem compromisso com a geração de emprego e práticas de gestão responsáveis materializam a função social da empresa. São elementos que, quem sabe, mereceriam valoração diferenciada, não como privilégio, mas como reconhecimento da complexidade e relevância social da atividade, o que não afastaria a sua responsabilidade de reparar o dano ao consumidor, apenas poder-se-ia pensar em parâmetros mais definidos de valoração baseados no esforço empreendido para a correta execução do projeto.
- Conclusão
A auditoria jurídica preventiva, compreendida como instrumento estratégico de gestão jurídica, não representa custo adicional, mas investimento na sustentabilidade empresarial. Sua implementação pavimenta o caminho para uma jurisprudência potencialmente mais sofisticada, capaz de distinguir nuances da realidade empresarial e criar incentivos corretos para melhores práticas.
A reflexão sobre a possibilidade de uma modulação da responsabilidade civil, baseado em critérios verificáveis de diligência demonstrada e função social, oferece ao Poder Judiciário um caminho hermenêutico mais refinado, promovendo segurança jurídica. Sendo este um esboço inicial de uma reflexão que precisa de amadurecimento, o objetivo não é esgotar o tema, mas convidar a comunidade jurídica ao debate.
A questão fundamental é se continuaremos presos a um paradigma binário de responsabilidade — cumprimento perfeito ou inadimplemento culposo — ou se evoluiremos para um modelo que reconheça gradações de diligência. A resposta determinará a capacidade do mercado imobiliário de cumprir sua função social.
Em última análise, a auditoria jurídica preventiva é trazida para o exame como uma possibilidade de materialização de um novo ethos empresarial, onde a prevenção poderia ser vista como uma expressão da responsabilidade corporativa e do respeito ao consumidor. É este ethos que o Direito, em sua função promocional, deve incentivar. Afinal, em um mercado imobiliário que sobrevive às oscilações econômicas e ao litígio, a verdadeira justiça e o equilíbrio poderiam ser vistos não apenas na reparação do dano, mas em sua prevenção sistemática e bem estruturada, o qual ainda precisamos amadurecer.
- Referências
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Daiana Staudt
Diretora do Departamento de Direito Imobiliário e Condominial do IARGS. Presidente da Comissão Nacional de Direito Imobiliário da ABA. Professora e autora em obras coletivas