15/10/2025 20h44 - Atualizado 15/10/2025 20h44

A ação popular como instrumento de controle de renúncia de receita tributária

Por Terezinha
para IARGS

A crescente pressão sobre as finanças públicas tem intensificado o debate em torno dos benefícios fiscais e de seu impacto nos orçamentos governamentais. O cenário é expressivo: dados recentes revelam que, entre 2015 e 2024, as renúncias fiscais concedidas no Brasil atingiram a impressionante marca de R$ 1,25 trilhão. Apenas em 2023, esses valores chegaram a R$ 456 bilhões (4,29% do PIB), um montante que, somado a benefícios financeiros e creditícios, alcançou R$ 586 bilhões – volume superior a diversos programas sociais do país.

Diante de um quadro tão relevante, emerge uma indagação central: como o cidadão comum, titular do poder democrático, pode exercer controle sobre decisões político-administrativas que implicam a não arrecadação de tributos, especialmente quando há suspeita de lesividade ao erário ou desvio de finalidade?

Este artigo sustenta a tese de que a Ação Popular, prevista no art. 5º, LXXIII, da Constituição Federal, constitui o instrumento jurídico adequado para esse controle. Argumenta-se que a concessão ilegal ou imoral de benefícios tributários representa um ato lesivo ao patrimônio público e à moralidade administrativa, passível de invalidação por iniciativa do cidadão. Para desenvolver esse raciocínio, exploraremos os pilares conceituais da Ação Popular e da renúncia de receita, conectando-os para demonstrar como a concessão irregular de benefícios fiscais se enquadra como ato lesivo e, por fim, analisaremos o entendimento da doutrina e da jurisprudência sobre o tema.

I – Os pilares conceituais: ação popular e renúncia de receita

Para construir nossa tese, é fundamental revisitar os dois conceitos que a sustentam. De um lado, o remédio constitucional que empodera o cidadão; de outro, o ato de gestão fiscal a ser controlado.

A Ação Popular é um dos mais importantes instrumentos de participação e fiscalização da vida pública, colocado à disposição de qualquer cidadão no gozo de seus direitos políticos. Seu objetivo é claro: invalidar atos lesivos ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. Trata-se de uma ação de caráter desconstitutivo, que busca anular atos e contratos administrativos ilegais e prejudiciais ao interesse coletivo. Como define o mestre Hely Lopes Meirelles, é “o meio constitucional posto à disposição de qualquer cidadão para obter a invalidação de atos ou contratos administrativos […] ilegais e lesivos do patrimônio federal, estadual e municipal”.

A propositura da ação exige a presença de três pressupostos essenciais: a qualidade de cidadão do autor, a ilegalidade do ato a ser invalidado e a lesividade desse ato, seja por desfalcar o erário, seja por ofender valores caros à coletividade. Em sua essência, a Ação Popular é um instituto de democracia direta, por meio do qual o cidadão, em nome próprio, defende o direito de participar ativamente da vida política do Estado, zelando por um governo probo e honesto.

O objeto de nosso controle, por sua vez, é a renúncia de receita tributária. No campo das finanças públicas, essa expressão engloba a concessão de benefícios que diminuem ou impedem a arrecadação, como isenções, anistias, remissões, subsídios e créditos presumidos. Embora o Código Tributário Nacional já previsse tais figuras, foi a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000) que estabeleceu condicionantes rigorosas para sua validade, reconhecendo o profundo impacto que geram nas contas públicas.

O artigo 14 da LRF impõe que toda concessão de incentivo fiscal seja acompanhada de uma estimativa de seu impacto orçamentário para os três anos seguintes e atenda à Lei de Diretrizes Orçamentárias. Além disso, é preciso demonstrar que a renúncia não afetará as metas de resultados fiscais ou, alternativamente, que serão adotadas medidas de compensação, como o aumento de outros tributos. Soma-se a isso a exigência do art. 150, §6º, da Constituição, que determina que qualquer benefício fiscal só pode ser concedido mediante lei específica. Em suma, a legislação não proíbe a renúncia de receita, mas a condiciona a um planejamento fiscal responsável, sob pena de ilegalidade.

II – A renúncia ilegal como ato lesivo: o vínculo com o patrimônio público e a moralidade

O ponto central de nossa tese reside em compreender que a renúncia fiscal irregular não é um mero ato de “não arrecadar”; é uma lesão direta ao patrimônio público. A doutrina majoritária, e a própria Lei da Ação Popular, concebem o patrimônio público de forma ampla, incluindo não apenas bens físicos, mas também os direitos e créditos titularizados pelo Estado. Ora, a receita tributária prevista em lei constitui um direito creditício do erário, uma expectativa juridicamente protegida. Portanto, ao se abrir mão dessa receita de forma ilegal, frustra-se um direito, causando um dano patrimonial efetivo.

A própria Lei de Responsabilidade Fiscal, em seu artigo 15, reforça essa visão ao considerar “lesivas ao patrimônio público” as despesas geradas sem o devido cumprimento dos requisitos legais. Por analogia, se a criação de uma despesa irregular é lesiva, com maior razão o é a renúncia de uma receita devida, que compromete o equilíbrio fiscal e a capacidade do Estado de prestar serviços públicos.

Além do prejuízo financeiro, a concessão de benefícios fiscais sem observância do interesse público e das normas vigentes configura uma clara afronta ao princípio da moralidade administrativa. Este princípio exige que os gestores pautem sua atuação pela ética, honestidade e boa-fé. A imoralidade se manifesta quando um benefício é concedido de forma clientelista, sem critérios objetivos, ou simplesmente ignorando as balizas da LRF. A Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92) é categórica ao tipificar como ato ímprobo que causa lesão ao erário a concessão de benefício fiscal “sem a observância das formalidades legais”.

Nesse ponto, a tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 836 (RE 576.155/DF) é crucial. A Corte decidiu que o cabimento da Ação Popular não exige a demonstração de prejuízo material, podendo ser ajuizada para combater ato lesivo exclusivamente à moralidade administrativa. Isso significa que, mesmo que o dano financeiro seja de difícil comprovação, a simples violação das regras da LRF, por si só, já configura uma ofensa à moralidade e legitima o uso da Ação Popular.

III – O entendimento dos tribunais e da doutrina

A jurisprudência, embora com nuances, tem se mostrado receptiva a essa tese. Um precedente fundamental é o REsp 884.742/PR, no qual o Superior Tribunal de Justiça confirmou a adequação da Ação Popular para invalidar um acordo entre municípios que resultava em perda de receitas de ICMS, reconhecendo que a frustração de uma “não entrada” de recursos fere o patrimônio público. Mais diretamente, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em 2019, decidiu que a Ação Popular é “remédio constitucional hábil a anular ato tributário ilegal […] em afronta à Constituição Federal”.

Contudo, é crucial observar os limites impostos. O STF já firmou entendimento que a Ação Popular não pode ser utilizada como um substituto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) para declarar, em abstrato, a inconstitucionalidade de uma lei. É preciso que exista um ato concreto, dela decorrente, que seja lesivo. Da mesma forma, o STJ também consolidou o entendimento que a ação deve visar à tutela de um interesse coletivo, e não a um inconformismo individual com uma decisão tributária específica.

Essa linha de raciocínio encontra forte amparo na doutrina especializada. Juristas como Hugo de Brito Machado, Roque Antonio Carrazza e Kiyoshi Harada defendem que a disciplina imposta pela LRF deve ser rigorosamente controlada. Rodolfo de Camargo Mancuso, por sua vez, sustenta que a proteção ao erário inclui a fiscalização da gestão dos recursos, e a expectativa de receita tributária integra o patrimônio público em sentido amplo, sendo, portanto, passível de proteção por Ação Popular.

IV – Conclusão

Ao longo deste artigo, demonstramos que a renúncia de receita tributária concedida em desacordo com os ditames constitucionais e legais configura um ato lesivo tanto ao patrimônio público quanto à moralidade administrativa, sujeito ao controle judicial por meio da Ação Popular. A ilegalidade de tais atos não é meramente formal: ela se traduz em recursos que faltam aos cofres públicos e na quebra de confiança na gestão da coisa pública.

Reconhecemos os desafios práticos no manejo dessa ação, pois benefícios fiscais frequentemente envolvem complexas escolhas de política econômica. Contudo, o equilíbrio fiscal e a responsabilidade na gestão não podem prescindir do controle social. A Ação Popular se afirma, nesse contexto, como um indispensável mecanismo de freio e contrapeso na República, uma ferramenta pela qual o cidadão-contribuinte pode exigir retidão de seus governantes.

Encorajamos, portanto, a utilização consciente da Ação Popular quando presentes indícios de renúncia fiscal ilegal ou imoral. O cidadão engajado cumpre, assim, um papel essencial na fiscalização da gestão pública, atuando como guardião ativo da saúde fiscal do Estado. Afinal, zelar pela observância da legalidade e da moralidade na administração do dinheiro público não é apenas um dever dos órgãos de controle, mas um exercício de cidadania que fortalece a democracia.

V – Referências bibliográficas

Fontes de dados

  1. PORTAL DA TRANSPARÊNCIA. Controladoria-Geral da União. Gastos Tributários. Disponível em: https://portaldatransparencia.gov.br/. Acesso em: 13 out. 2025.
  2. Renúncias fiscais em 2023. Câmara dos Deputados. Disponível em https://www.camara.leg.br/noticias/910855-RENUNCIAS-FISCAIS-CHEGARAO-A-R$-456-BILHOES-NO-ANO-QUE-VEM. Acesso em: 13 out. 2025.

Doutrina
3) BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 35. ed. São Paulo: Malheiros, 2021.
4) CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2019.
5) DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
6) HARADA, Kiyoshi. Lei de Responsabilidade Fiscal: requisitos para concessão de incentivos tributários. APET. Disponível em: https://apet.org.br/artigos/lei-de-responsabilidade-fiscal-requisitos-para-concessao-de-incentivos-tributarios/. Acesso em: 14 out. 2025.
7) MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2021.
8) MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação popular: proteção do erário, do patrimônio público, da moralidade administrativa e do meio ambiente. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1998.
9) MARTINS, Fernando Rodrigues. Controle do Patrimônio Público. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
10) MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção, Habeas Data. São Paulo: Malheiros Editores, 1992.
11) SILVA, José Afonso da. Ação Popular Constitucional: doutrina e processo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

 

Eduardo Gerhardt Martins

Associado do IARGS, advogado. Especializado em Direito do Estado pela UFRGS, com especializações em Compliance pelo IBRA e extensão em Compliance pelo IBCCrim/Universidade de Coimbra. Presidente da Comissão de Direito Tributário da OAB/RS, subseção Canoas

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