02/10/2025 11h25 - Atualizado 02/10/2025 11h30

A Lei de Reciprocidade Econômica: Conjuntura Histórica e Compatibilidade com o Direito Internacional

Por Terezinha
para IARGS
  1. Introdução

Desde o início de seu segundo mandato, o Presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Donald Trump, vinha anunciando que promoveria a elevação tarifária para a importação de seus produtos.        Como os EUA são o segundo principal destino das exportações brasileiras, ficando atrás apenas da China, isso causou grande preocupação não só no âmbito governamental, mas, em especial, entre os exportadores brasileiros. Ademais, não se sabia em que termos ocorreria essa elevação tarifária ou que tipo de critério seria utilizado para estabelecê-la.

Fato é que o Governo Trump passou a utilizar o instrumento de elevações tarifárias para várias finalidades contra diversos países e em relação a diversos produtos, dentre os quais o que, a seguir, se destaca:

– em 10-02-2025, pelas Proclamações nºs 10.895 e 10.896, estabeleceu uma tarifa de 25% sobre as importações, respectivamente, de artigos de alumínio e derivados de alumínio, e de aço e certos produtos derivados de aço, inclusive do Brasil, nos termos da Seção 232 da Lei de Expansão Comercial dos EUA de 1962; tais tarifas foram aplicadas a partir de 12-03-2025;

– em 26-03-2025, pela Proclamação nº 10.908, impôs uma tarifa de 25% sobre as importações de veículos de passeio, caminhonetes e certas peças de automóveis, inclusive do Brasil, uma vez mais de acordo com Seção 232 da Lei de Expansão Comercial dos EUA de 1962; tais tarifas foram aplicadas, para os veículos acabados, a partir de 03-04-2025 e, para as peças de automóveis, em 03-05-2025;

– em 02-04-2025, pela Ordem Executiva nº 14.257, determinou a imposição de tarifas sobre 185 parceiros comerciais, com fundamento na Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional de 1977; as medidas consistiram em tarifa horizontal mínima de 10% sobre todas as importações dos EUA, além de tarifa individualizada por país, com exceção de poucos setores, como o de energia; nessa ocasião, o Brasil ficou sujeito à tarifa mínima de 10%;

– em 30-07-2025, pela Ordem Executiva nº 14.323, adotada com base na Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional de 1977, na Lei de Emergência Nacional de 1976 e na Lei de Comércio de 1974, aplicou tarifa adicional de 40% (além dos 10% anunciados em 02-04-2025), elevando a 50% a alíquota horizontal incidente sobre as importações de produtos brasileiros, com exceção dos produtos listados num anexo que ficaram isentos (suco de laranja, produtos aeronáuticos, etc.); essas tarifas entraram em vigor em 05-08-2025;

– em 03-06-2025, pela Proclamação nº 10.947, foi aumentada a alíquota da tarifa para as importações de aço e derivados de aço, e alumínio e derivados de alumínio, inclusive do Brasil, para 50%, entrando em vigor em 18-08-2025.

Antes ainda dessas últimas medidas, mas já no contexto inicial da verdadeira guerra tarifária deflagrada pelos EUA, a Senadora Tereza Cristina apresentou um substitutivo ao PL nº 2.088/2023, dando origem à Lei nº 15.122, de 11 de abril de 2025, conhecida como Lei da Reciprocidade Econômica e cujo art. 2º preconiza:

Art. 2º Esta Lei aplica-se na hipótese de adoção, por país ou bloco econômico, de ações, políticas ou práticas que:

I – interfiram nas escolhas legítimas e soberanas do Brasil, procurando impedir ou obter a cessação, a modificação ou a adoção de ato específico ou de práticas no Brasil, por meio da aplicação ou da ameaça de aplicação unilateral de medidas comerciais, financeiras ou de investimentos;

II – violem ou sejam inconsistentes com as disposições de acordos comerciais ou, de outra forma, neguem, anulem ou prejudiquem benefícios ao Brasil sob qualquer acordo comercial;

III – configurem medidas unilaterais com base em requisitos ambientais que sejam mais onerosos do que os parâmetros, as normas e os padrões de proteção ambiental adotados pelo Brasil.

Note-se que, originalmente, o PL nº 2.088 só continha a previsão atinente à questão ambiental de que ora se trata no inc. III do art. 2º acima transcrito. É que, a princípio, ele visava essencialmente responder a uma prática adotada, em especial, pela União Europeia (EU), a qual, a pretexto de proteger o meio ambiente do planeta, na realidade, acaba impondo uma série de barreiras à importação dos produtos agrícolas brasileiros.

Seja como for, em 15 de julho de 2025, foi publicado o Dec.nº 12.551 para regulamentar a chamada Lei da Reciprocidade Econômica e com base no qual, em 28 de agosto subsequente, o Itamaraty encaminhou pleito à Secretaria Executiva da Câmara de Comércio Exterior (CAMEX) para que seja iniciado processo de aplicação de medidas de reciprocidade contra os EUA, em razão das tarifas unilaterais impostas por esse país às exportações brasileiras.

Considerando, todavia, que o Brasil tradicionalmente respeita as diretrizes dos acordos internacionais a que adere, tais como os constitutivos da Organização Mundial do Comércio (OMC) e do Mercado Comum do Sul (Mercosul), a questão que se pode colocar é a seguinte: as disposições da Lei nº 15.122/2025 são compatíveis com as normas de Direito Internacional?

Note-se que dizer que um país respeita as diretrizes, seja da OMC, seja do Mercosul, significa que há uma série de limitações jurídicas a pautar sua atuação na imposição de tributos aduaneiros e até mesmo na de controles relacionados ao comércio exterior. Para citar uma dessas restrições, tem-se que as alíquotas do Imposto de Importação, em geral, estão limitadas pela chamada Tarifa Externa Comum (TEC) vigente no âmbito do Mercosul (cujo teto é de 20%).[1] Por outro lado, pelo GATT 1994, que foi o tratado de fundação da OMC, os países signatários precisam respeitar, dentre outras, a Cláusula da Nação Mais Favorecida, pela qual não podem impor a outros países signatários do GATT 1994 tratamento diferenciado ou pior do que aquele concedido a qualquer deles.

Bem verdade que está absolutamente claro que os EUA não estão respeitando a ordem internacional, em especial, as normas do GATT 1994, do qual também são signatários. Mesmo assim, considerando o interesse brasileiro na retomada do sistema comercial multilateral consagrado pela OMC e que foi a pedra de toque de grandes avanços para o comércio exterior brasileiro, importante se perquirir se a Lei nº 15.122/2025, quando autoriza a adoção de contramedidas específicas e diferenciadas a algum país, a seu turno, não está também afrontando a ordem internacional.

Para uma análise mais profunda da questão, passa-se a seguir a discorrer sobre o comércio internacional à luz da OMC e de outros instrumentos de Direito Internacional.

 

  1. História do GATT, da OMC e a Posição Brasileira

 

Sem descer a muitas minúcias, de se recordar que a criação da OMC remonta ao final da Segunda Guerra Mundial, quando os EUA lideraram um movimento de liberalização multilateral do comércio. Foi a partir dessa iniciativa que o Conselho Econômico e Social da recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU) convocou a Conferência sobre Comércio e Emprego, na qual foi apresentado o GATT (sigla em inglês para Acordo Geral de Tarifas e Comércio). Escrito basicamente pelos EUA e pela Inglaterra, o Acordo propunha regras multilaterais para o comércio internacional, com o objetivo de evitar a repetição da onda protecionista que marcou os anos da década de 1930.[2]

Posteriormente, outras sugestões foram incorporadas e o Acordo foi assinado por 23 países, entre eles o Brasil, durante a Rodada Genebra, em 1947, a primeira das grandes rodadas de negociações multilaterais de comércio.[3]

O GATT deveria ter um caráter provisório e durar apenas até a criação da Organização Internacional de Comércio (OIT, na sigla em inglês). As negociações para tanto foram realizadas na Conferência de Havana, em 1948, mas a recusa do Congresso norte-americano em ratificar o Acordo terminou por impossibilitar a criação da OIT nessa ocasião.[4]

As negociações da Rodada Uruguai, iniciadas em 1986 em Punta del Leste, foram concluídas em 15 de dezembro de 1993, em Genebra, na Suíça, tendo-se decidido então conferir a administração do sistema multilateral de comércio à OMC, que entrou em funcionamento em 1º de janeiro de 1995, em substituição ao GATT. Entretanto, com algumas diferenças fundamentais, pois a OMC não é apenas um GATT ampliado.

O GATT 1947 era um acordo multilateral, de caráter provisório e sem base institucional, com uma pequena secretaria associada, que surgiu a partir da tentativa fracassada de formação da OIT. Embora o GATT, desde a sua criação, tenha contribuído efetivamente para a remoção das barreiras comerciais mundiais, nunca teve poder suficiente para impedir que alguns de seus signatários se desviassem por caminhos protecionistas. Isso se deveu, em parte, à fragilidade de seus mecanismos de solução de controvérsias comerciais, extremamente suscetíveis a bloqueios.

Já a OMC, ao contrário, se constituiu como uma organização permanente, com personalidade jurídica própria, possuindo um Sistema de Solução de Controvérsias (SSC) permanente, exercido por um Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) e cujas decisões passaram a ser, na prática, vinculantes.

Sendo assim, o OSC passou a ser um elemento essencial da OMC, garantindo previsibilidade e segurança a todos os seus membros,[5] sendo seu sistema constituído por 4 fases principais: a) consulta; b) painel; c) apelação; d) implementação.

Sem entrar em maiores detalhes, basta aqui consignar que, ao contrário do que ocorre com os painéis, que são constituídos por 3 membros, que deverão ser escolhidos de comum acordo pelas partes, na fase de apelação, há o Órgão de Apelação (OA), que é um órgão permanente com a função de revisão de aspectos jurídicos dos relatórios emitidos pelos painéis.

O OA é composto por 7 membros permanentes, com mandato de 4 anos, renovável uma vez, embora apenas 3 desses 7 membros participem do julgamento de cada controvérsia. O relatório do Órgão de Apelação deverá ser adotado pelo OSC e incondicionalmente obedecido pelas partes, a não ser que o OSC decida, por consenso, pela não adoção desse relatório.[6]

Atualmente, porém, o OA está paralisado, pois, conforme os antigos membros do OA foram tendo seus mandatos encerrados, a OMC não tem conseguido repor os membros. Pela regra, é preciso que nenhum dos Estados-Membros se oponha aos novos nomes para que sejam aprovados e iniciem seus mandatos. Desde outubro de 2018, porém, os Estados Unidos têm mantido reiterado bloqueio à indicação de novos membros, até que se chegou à situação, em dezembro de 2019, de não haver membros suficientes para compor o colegiado dos contenciosos, já que mandatos de 2 dos 3 últimos membros do OA chegaram ao seu fim.[7]

Seja como for, o Brasil, desde o nascedouro, aderiu ao surgimento do GATT e, posteriormente, da OMC. Afora isso, teve intensa atuação perante o SSC, com 34 casos como demandante, 17 como demandado e 173 participações como terceira parte em contenciosos sobre os mais variados temas. Sendo assim, o Brasil esteve entre os seis principais usuários do sistema, atrás apenas dos EUA, da União Europeia, do Canadá, da China e da Índia. Todo esse protagonismo conferiu ao País uma influência crescente na definição de vários dos compromissos assumidos no âmbito da OMC, tendo-se revelado instrumental para a eliminação de barreiras às exportações brasileiras e para a estratégia de desenvolvimento nacional.[8]

 

III. Contencioso do Algodão

 

De toda a histórica atuação brasileira perante o OSC da OMC, sem dúvida, constitui um marco o famoso “Contencioso do Algodão”, que inclusive ensejou a publicação da Medida Provisória nº 482/2010, posteriormente convertida na Lei nº 12.270/2010.

Uma breve leitura da Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 482/2010 basta para compreender o contexto que levou à sua publicação:

 

  1. A referida decisão da CAMEX segue-se ao continuado descumprimento, pelos Estados Unidos da América (EUA), das decisões do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC (OSC), no contencioso “Estados Unidos – Subsídios ao Algodão (DS267)”, que considerou certos subsídios incompatíveis com as obrigações assumidas nos Acordos daquela Organização e recomendou sua eliminação ou a remoção de seus efeitos adversos.
  2. Como se recorda, o Governo brasileiro solicitou, em 2005, autorização para retaliar comercialmente os EUA, notadamente por meio de retaliação cruzada nas áreas de propriedade intelectual e de serviços, mediante suspensão de obrigações decorrentes do Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo TRIPS) e do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (GATS). Devido à não aceitação pelos Estados Unidos das modalidades e dos valores propostos pelo Brasil a título de retaliação, iniciou-se procedimento de arbitragem. Em 31 de agosto de 2009, após esgotados todos os recursos cabíveis, os árbitros divulgaram suas decisões (WT/DS267/ARB/1 e WT/DS267/ARB/2) sobre as contramedidas a que o Brasil tem direito. Em consonância com as decisões dos árbitros, em 19 de novembro de 2009, o OSC autorizou o Governo brasileiro a adotar medidas de retaliação comercial contra os Estados Unidos, as quais, desde que preenchidas certas condições, incluem medidas nas áreas de propriedade intelectual e serviços.
  3. As medidas autorizadas não ficaram, assim, circunscritas apenas ao comércio de bens entre os dois países. A solicitação original do Governo brasileiro de retaliar nas áreas de propriedade intelectual e serviços foi atendida pelo OSC, haja vista a natural dificuldade de países em desenvolvimento retaliarem exclusivamente em bens sem causarem prejuízos às suas próprias economias. O Brasil terá primariamente que retaliar em bens e, se atingido um valor gatilho – a ser calculado a cada ano – poderá também aplicar a retaliação nas demais áreas.
  4. Para que seja legalmente possível aplicar retaliação em propriedade intelectual mediante suspensão, de forma discriminatória, de nossas obrigações internacionais na área, julga-se imprescindível a criação de nova norma específica. Isto porque, no ordenamento jurídico brasileiro, a propriedade intelectual encontra-se na esfera dos direitos de caráter privado e está consagrada em leis ordinárias específicas, conforme a área. Desse modo, a despeito de estarem plasmados no ordenamento jurídico internacional, os direitos de propriedade intelectual, enquanto direitos patrimoniais, estão alicerçados em dispositivos legais internos que protegem, em termos gerais, a propriedade e o direito adquirido (…)

 

Como se vê, o Brasil havia recorrido à OMC e aguardado o trâmite de todo o procedimento previsto para a solução da controvérsia instaurada em face dos EUA e, posteriormente, inclusive, aguardado o desfecho do procedimento de arbitragem para fixar quais medidas retaliatórias seriam cabíveis no caso. Apenas diante da recalcitrância deste país em se submeter a qualquer das decisões legitimamente adotadas no âmbito internacional é que, efetivamente, se passou à alteração do ordenamento jurídico interno brasileiro para viabilizar as retaliações autorizadas.

Para evitar a retaliação, ainda em 2010, os EUA se comprometeram a pagar US$ 147,4 milhões por ano aos produtores brasileiros, como compensação pelos subsídios pagos aos cotonicultores americanos. Nesse mesmo ano, foi fundado o Instituto Brasileiro do Algodão (IBA) para gerir esses recursos e promover o fortalecimento da produção no Brasil. Em outubro de 2013, todavia, os EUA suspenderam os pagamentos.

A disputa só foi definitivamente encerrada em 1º de outubro de 2014, quando Brasil e EUA firmaram um Memorando de Entendimento pelo qual estes últimos se comprometeram a pagar US$ 300 milhões ao primeiro, para que este não recorra a um novo painel na OMC até 2018, enquanto em vigor a nova lei agrícola americana, a Farm Bill.[9]

 

  1. Apelações no Vazio

 

Não obstante a exitosa atuação brasileira perante o SSC da OMC e o respeito a seu ideário e princípios, fato é que, desde 2019, há a paralisia do OA. E, embora o recurso ao OA seja um direito previsto no normativo procedimental das controvérsias, como esse órgão está paralisado, os recursos de apelação protocolados pelos membros da OMC não conseguem ser apreciados, ensejando que países que já receberam decisão desfavorável na fase de painel mantenham suas práticas questionadas sem nenhuma consequência. É o que se tem chamado de apelação no vazio.

Para mitigar os deletérios efeitos da apelação no vazio, em abril de 2020, um grupo de 47 Estados-membro, inclusive o Brasil, notificou a OMC sobre a necessidade de criação de um Multi-Party Interim Appeal Arbitration Arrangement (Arranjo Provisório de Arbitragem-Apelação, em português, ou MPIA, na sigla em inglês), que deve decidir as apelações dos Estados-membros que a ele adiram de acordo com as diretrizes aplicadas pelo OA.[10]

Apesar desse arranjo alternativo, o entrave continua quando os contenciosos envolvem membros da OMC não aderentes ao MPIA, tal como os EUA.

Sendo assim, no início de 2022, o Brasil publicou a Medida Provisória nº 1.098/2022, depois convertida na Lei nº 14.353/2022, dispondo sobre a suspensão de concessões ou outras obrigações do país em casos de descumprimento por membro da OMC de obrigações decorrentes dos respectivos acordos, bem como atualizando a Lei nº 12.270/2010, que dispõe sobre a retaliação em direitos de propriedade intelectual (e que tinha sido publicada a partir do Contencioso do Algodão, como antes explicado).

Em todo o caso, as retaliações unilaterais previstas na citada legislação ficaram adstritas à observância de alguns requisitos bastante objetivos: a) existência de apelação pelo membro da OMC, na condição de parte demandada; b) impossibilidade da apelação ser apreciada pelo OA ou impossibilidade do relatório deste último ser aprovado pelo OSC da OMC; e (c) decurso do prazo de 60 dias após notificação do Brasil ao membro da OMC demandado sobre a intenção de suspensão de concessões ou de outras obrigações.

 

  1. Instrumento Anticoerção da União Europeia e seu Fundamento

O Instrumento Anticoerção (ACI, na sigla em inglês) é uma ferramenta da União Europeia (UE) para combater a coerção econômica exercida por países terceiros. O ACI, veiculado pelo Regulamento 2023/2675, foi adotado pelo Conselho da UE em 23 de outubro de 2023 e entrou em vigor em 27 de dezembro seguinte, estabelecendo um quadro para a ação em casos de coerção econômica dirigida contra a União Europeia ou um Estado-Membro:

“Coerção econômica” refere-se a uma situação em que um país terceiro busca pressionar a União Europeia ou um Estado-Membro a fazer uma escolha específica aplicando, ou ameaçando aplicar, medidas que afetam o comércio ou o investimento. Tais práticas interferem indevidamente nas escolhas soberanas legítimas da União Europeia e seus Estados-Membros. O preenchimento dessas condições pela adoção de medida de um país terceiro deve ser determinado caso a caso.[11]

Um exame do preâmbulo do mencionado regulamento europeu evidencia que foram invocados alguns fundamentos de direito internacional para a adoção do mencionado ACI, além dos fundamentos do próprio Tratado da União Europeia e da Carta da ONU, dentre os quais se destacam os que ressaem da seguinte passagem:

(13) O direito internacional consuetudinário, conforme refletido no Artigo 22 e Artigos 49 a 53 da ARSIWA,[12] permite, sob certas condições, como proporcionalidade e aviso prévio, a imposição de contramedidas, ou seja, medidas que de outra forma seriam contrárias às obrigações internacionais de uma parte lesada em relação ao país responsável por uma violação do direito internacional, e que visam obter a cessação da violação ou reparação por ela. Consequentemente, as medidas de resposta da União podem consistir, conforme necessário, não apenas em medidas consistentes com as obrigações internacionais da União, mas também no não cumprimento de obrigações internacionais para com o país terceiro em questão, na medida em que a coerção econômica pelo país terceiro constitua um ato internacionalmente ilícito. De acordo como direito internacional, de acordo com o princípio da proporcionalidade, as contramedidas devem ser proporcionais ao dano sofrido, levando em consideração a gravidade do ato internacionalmente ilícito e os direitos em questão. A esse respeito, o dano à União ou a um Estado-Membro é entendido, de acordo com o direito internacional, como incluindo o dano aos operadores econômicos da União.

(14) Quando a coerção econômica constitui um ato internacionalmente ilícito, a União deve, quando apropriado, além da cessação da coerção econômica, solicitar ao país terceiro em questão que faça reparação por qualquer dano à União, de acordo com o Artigo 31 e os Artigos 34 a 39 da ARSIWA. (…)

(15) A coerção é proibida e, portanto, um ato ilícito sob o direito internacional quando um país implementa medidas como restrições comerciais ou de investimento para obter de outro país uma ação ou omissão que esse país não é obrigado a executar sob o direito internacional e que se enquadra em sua soberania, e quando a coerção atinge um certo limite qualitativo ou quantitativo, dependendo tanto dos objetivos perseguidos quanto dos meios utilizados. (…)

(16) Atos de terceiros países são entendidos sob o direito internacional consuetudinário para incluir todas as formas de ação ou omissão, incluindo ameaças, que são atribuíveis a um Estado sob o direito internacional consuetudinário. O Artigo 2(a) e os Artigos 4 a 11 da ARSIWA confirmam que o direito internacional consuetudinário se qualifica como um ato de um Estado, em particular: a conduta de qualquer órgão do Estado, de uma pessoa ou entidade que não é um órgão do Estado, mas que é autorizada pela lei daquele Estado a exercer elementos de autoridade governamental; a conduta de um órgão colocado à disposição de um Estado por outro Estado; a conduta de uma pessoa ou grupo de pessoas que estão agindo sob as instruções de, ou sob a direção ou controle, daquele Estado na execução da conduta; a conduta de uma pessoa ou grupo de pessoas que estão exercendo elementos da autoridade governamental na ausência ou inadimplência das autoridades oficiais e em circunstâncias que exijam o exercício desses elementos de autoridade; e a conduta que o Estado reconhece e adota como sua.

 

Quanto à relação desse normativo da UE com o sistema da OMC, o próprio ACI refere que:

(12) Qualquer ação empreendida pela União com base neste Regulamento deve ser consistente com o direito internacional, incluindo o direito internacional consuetudinário. Entre os acordos internacionais concluídos pela União e pelos Estados-Membros, o Acordo que institui a Organização Mundial do Comércio (OMC) é a pedra angular do sistema de comércio multilateral baseado em regras. Portanto, é importante que a União continue a apoiar esse sistema, com a OMC em seu cerne, e a usar seu sistema de solução de controvérsias quando apropriado.

​A doutrina tem apontado para a possibilidade de convivência de ambos os sistemas, como se pode conferir do seguinte excerto:[13]

Separating countermeasures under international law from WTO-related remedies

Without much debate the traditional assumption has long been that any trade restriction taken by a WTO member is covered by WTO law. To the extent such a restriction violates a WTO obligation, a justification derived from public international law would allegedly not be recognized in WTO law (Marceau & Wyatt (2010) 74). There is no WTO ruling to this effect, however. Moreover, the counterargument has been made (Kuijper (2008) 706), that if a trade restriction was imposed as a countermeasure against an illegal act under public international law, it would extinguish the illegality of this restriction under WTO law (Bronckers & Gruni (2021) 43). With its Anti-Coercion Instrument-proposal the Commission now subscribes to this view.

For example, when Australia called for an independent inquiry into the origin of the COVID-crisis, China made its displeasure known through various trade restrictions on Australian products, such as antidumping duties on barley imports. Australia chose to challenge China’s trade measures through the initiation of WTO dispute settlement proceedings. Yet in its Impact Assessment (p. 15), the European Commission took pains to point out that WTO disputes can only deal with the WTO-inconsistency of the measures in question, not the separate infringement of general international law that lies in the coercive act and intention. The French government just took a similar position regarding China’s comprehensive trade embargo on Lithuania in response to Lithuania’s naming ‘Taiwan’ in a trade mission: a WTO dispute would only address the breach of WTO law, not the coercive nature of China’s measures.

Policy-wise, the fundamental weaknesses in WTO dispute settlement (lengthy proceedings without any possibility for interim relief; impractical and costly remedies without regard for past injuries (Bronckers & Baetens (2017)) undercut a ‘maximalist vison’ of WTO law when countering foreign economic coercion. Excluding countermeasures against foreign coercion from WTO disciplines would also be in keeping with the WTO’s diminishing role overall. The world is turning towards a more unilateral economic order (Chaisse & Dimitropoulos (2021)) and the EU needs to be adequately equipped to handle its challenges. When narrowly interpreted, the Anti-Coercion Instrument fits that bill.

 

Em suma, o Instrumento Anticoerção adotado pela UE foi pensado para fazer face a atos internacionalmente ilícitos, revestidos de natureza supostamente comercial, mas adotados por outros países com o objetivo de influenciar a política interna da própria UE ou de seus membros – a coerção econômica.

Essa coerção econômica envolve uma mistura de pressão política e medidas econômicas que não se encaixa nas categorias de disputas comerciais tradicionais. Isto é: ela tangencia aspectos de soberania e segurança nacional da UE e seus membros, não veiculando uma simples violação, estritamente comercial, aos preceitos da OMC.

Por exemplo, a coerção econômica pode envolver uma combinação de pressão política e medidas econômicas. Um ato coercitivo pode envolver acesso condicional a mercados ou investimentos estratégicos visando a influenciar políticas em vez de restrições comerciais diretas.

Por esse motivo, tais medidas coercitivas, como definidas, contrariam noções mais amplas de direito internacional, tal como o princípio da não-interferência, previsto no Artigo 2(7) da Carta da ONU, que proíbe a interferência em assuntos internos ou externos de uma outra nação soberana.

Além disso, são baseadas no direito consuetudinário internacional, que estabelece a possibilidade de adoção de contramedidas em face de agressões internacionalmente ilícitas praticadas por outros países, tal como os Articles on Responsibility of a State for its internationally wrongful acts (ARSIWA).

 

  1. A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados

Também a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (CVDT), promulgada no Brasil pelo Dec. nº 7.030/2009, no seu art. 60, possui previsão que ampara o direito internacional de retaliação nos seguintes termos:

Artigo 60

Extinção ou Suspensão da Execução de um

Tratado em Consequência de sua Violação

  1. Uma violação substancial de um tratado bilateral por uma das partes autoriza a outra parte a invocar a violação como causa de extinção ou suspensão da execução de tratado, no todo ou em parte.
  2. Uma violação substancial de um tratado multilateral por uma das partes autoriza:

a)as outras partes, por consentimento unânime, a suspenderem a execução do tratado, no todo ou em parte, ou a extinguirem o tratado, quer:

i)nas relações entre elas e o Estado faltoso;

ii)entre todas as partes;

b)uma parte especialmente prejudicada pela violação a invocá-la como causa para suspender a execução do tratado, no todo ou em parte, nas relações entre ela e o Estado faltoso;

c)qualquer parte que não seja o Estado faltoso a invocar a violação como causa para suspender a execução do tratado, no todo ou em parte, no que lhe diga respeito, se o tratado for de tal natureza que uma violação substancial de suas disposições por parte modifique radicalmente a situação de cada uma das partes quanto ao cumprimento posterior de suas obrigações decorrentes do tratado.

  1. Uma violação substancial de um tratado, para os fins deste artigo, consiste:

a)numa rejeição do tratado não sancionada pela presente Convenção; ou

b)na violação de uma disposição essencial para a consecução do objeto ou da finalidade do tratado.

  1. Os parágrafos anteriores não prejudicam qualquer disposição do tratado aplicável em caso de violação.
  2. Os parágrafos 1 a 3 não se aplicam às disposições sobre a proteção da pessoa humana contidas em tratados de caráter humanitário, especialmente às disposições que proíbem qualquer forma de represália contra pessoas protegidas por tais tratados.

Por outro lado, o art. 44 da mesma Convenção assevera:

Artigo 44

Divisibilidade das Disposições de um Tratado

  1. O direito de uma parte, previsto num tratado ou decorrente do artigo 56, de denunciar, retirar-se ou suspender a execução do tratado, só pode ser exercido em relação à totalidade do tratado, a menos que este disponha ou as partes acordem diversamente.
  2. Uma causa de nulidade, de extinção, de retirada de uma das partes ou de suspensão de execução de um tratado, reconhecida na presente Convenção, só pode ser alegada em relação à totalidade do tratado, salvo nas condições previstas nos parágrafos seguintes ou no artigo 60.

 

A possível aplicação do art. 60 da CVDT, todavia, para fundamentar eventual suspensão da aplicação do GATT 1994 em relação a qualquer país mesmo que o viole substancialmente, é questionável frente à redação de seu § 4º, visto que, em princípio, o GATT 1994 possui, justamente, disposições próprias para resolver as situações de violação por meio, ou do Artigo XXI, acima comentado, ou pelo SSC.

Antes de avançar nessa linha de análise, importante registrar que a CVDT é considerada pela doutrina especializada como a expressão de normas consuetudinárias sobre o direito dos tratados. Nesse sentido, confira-se, por todos:

A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, aliás, reveste-se de autoridade jurídica, mesmo para aqueles Estados que dela não são signatários, em virtude de ser ela geralmente aceita como “declaratória de direito internacional geral”, expressando direito consuetudinário, consubstanciado na prática reiterada dos Estados no que diz respeito à matéria nela contida.[14]

Sendo integrante do Direito Internacional, a CVDT passou a representar elemento importante de consideração no âmbito da própria OMC, em função do art. 3.2 do Entendimento Sobre Regras e Procedimentos que regem a Solução de Controvérsias (ESC):[15]

 

Artigo 3

Disposições Gerais

(…)

  1. O sistema de solução de controvérsia da OMC é elemento essencial para trazer segurança e previsibilidade ao sistema multilateral de comércio. Os Membros reconhecem que esse sistema é útil para preservar direitos e obrigações dos Membros dentro dos parâmetros dos acordos abrangidos e para esclarecer as disposições vigentes dos referidos acordos em conformidade com as normas correntes de interpretação do direito internacional público. As recomendações e decisões do OSC não poderão promover o aumento ou a diminuição dos direitos e obrigações definidos nos acordos abrangidos.

 

Assim, em outras palavras, tem-se que, em decorrência desse dispositivo, as normas do GATT 1994 devem ser interpretadas levando em conta o direito internacional público, que é integrado pela CVDT.

Mas, ainda mais, isso também significa que o sistema da OMC, embora especial, não é completamente auto-suficiente e independente, sendo necessário integrá-lo sistematicamente a outras normas correntes do direito internacional público. Nessa linha, a opinião de Raphael Andion de Oliveira:

Destarte, o direito internacional assume, perante o regime da OMC, duas funções: de preenchimento de lacunas e instituições não disciplinadas pelo regime e também de fornecimento de normas para a interpretação das disposições do Acordo. Por “normas correntes de interpretação do direito internacional público” entende-se as normas de interpretação consagradas pelo direito internacional consuetudinário, que estão positivadas na Convenção de Viena do Direito dos Tratados. Este entendimento é largamente aceito pelo OSC (…)[16]

Ora, o que se tem, no caso em exame, é precisamente uma lacuna, uma situação não disciplinada pelo GATT 1994. Este previu, para qualquer caso de violação a suas normas, a necessidade de acionamento do OSC.

O GATT 1994, contudo, não contém previsão acerca de que atitude deve ser adotada pelos Estados-membros no caso da prática de violações se o OSC estiver sem efetividade, como está atualmente, ante a paralisia do OA, o que acarreta o completo desamparo do agredido frente ao agressor.​

Dito isso e retornando à análise dos arts. 44 e 60 da CVDT, que autorizam a suspensão parcial de um tratado em caso de sua violação substancial por uma de suas partes: como visto linhas atrás, o próprio § 4º do art. 60 parece rechaçar essa ideia de suspensão parcial quando se leva em conta que a OMC possui um bem elaborado SSC para todas as violações de seus dispositivos.

A propósito, como diz a primeira parte do art. 3.2 do ESC, já reproduzido acima: “O sistema de solução de controvérsia da OMC é elemento essencial para trazer segurança e previsibilidade ao sistema multilateral de comércio (…)”

De outro lado, o art. 23.1 do ESC reafirma a obrigatoriedade de recurso ao SSC da OMC em qualquer caso de violação de obrigações ou impedimentos à obtenção dos objetivos dos “acordos abrangidos”.

A seu turno, a CVDT também reafirma, noutros dispositivos, o descabimento da suspensão de um tratado quando há nele próprio previsão de um sistema de solução de controvérsias (vide, nesse sentido, seus arts. 65.4 e 72.1).

A questão, porém, que se buscou explicitar por meio de todo o histórico traçado nas primeiras seções deste estudo, não se resume a cogitar da adoção de contramedidas a qualquer violação das normas do GATT 1994, mas, sim, da violação substancial especificamente num contexto em que o sistema para a solução de controvérsias se tornou ineficiente pela paralisia, desde 2019, do OA.

Desse modo, embora o SSC esteja previsto e continue existente, podendo inclusive ser acionado em suas 2 primeiras fases (de consultas e painéis), não alcança efetividade porque, em geral, os derrotados nos painéis apelam no vazio e a discussão, na prática, fica sem solução, sem permitir a adoção de qualquer medida ao amparo do SSC. E, conforme já se disse, para essa situação concreta, que se estende já por mais de 5 anos, não há nenhuma previsão no âmbito do GATT 1994.

Sendo assim, parece que todas essas circunstâncias apontam para a invocação de um outro dispositivo da CVDT, a saber, o seu art. 62:

Artigo 62

Mudança Fundamental de Circunstâncias

  1. Uma mudança fundamental de circunstâncias, ocorrida em relação às existentes no momento da conclusão de um tratado, e não prevista pelas partes, não pode ser invocada como causa para extinguir um tratado ou dele retirar-se, salvo se:
  2. a) a existência dessas circunstâncias tiver constituído uma condição essencialdo consentimento das partes em obrigarem-se pelo tratado; e
  3. b) essa mudança tiver por efeito a modificação radical do alcance das obrigaçõesainda pendentes de cumprimento em virtude do tratado.
  4. Uma mudança fundamental de circunstâncias não pode ser invocada pela parte como causa para extinguir um tratado ou dele retirar-se:
  5. a) se o tratado estabelecer limites; ou
  6. b) se a mudança fundamental resultar de violação, pela parte que a invoca, seja de uma obrigação decorrente do tratado, seja de qualquer outra obrigação internacional em relação a qualquer outra parte no tratado.
  7. Se, nos termos dos parágrafos anteriores, uma parte pode invocar uma mudança fundamental de circunstâncias como causa para extinguir um tratado ou dele retirar-se, pode também invocá-la como causa para suspender a execução do tratado.

Ora, SMJ, o pressuposto do normal funcionamento do OSC, com o pleno funcionamento do OA, era, sem dúvida, uma circunstância que constituía condição essencial do consentimento das partes a se obrigarem no âmbito da OMC. Ninguém, em sã consciência, haveria de sustentar que um país aceitaria observar todos os ditames estabelecidos no âmbito da OMC admitindo que outros membros pudessem violar livremente suas regras sem a possibilidade de qualquer solução da controvérsia na prática (vide, nesse sentido, uma vez mais, a primeira parte do art. 3.2 do ESC, já reproduzido acima).

Em decorrência, a mudança, isto é, a circunstância da paralisia do OA, que acarreta o não funcionamento do SSC, pode ser considerada uma modificação radical do alcance das obrigações ainda pendentes no âmbito da OMC.

Assim, preenchidos os requisitos do § 1º do art. 62.

De outra sorte, veja-se que o GATT 1994 não estabeleceu limites para a atuação nesse caso exatamente porque sequer previu essa circunstância (da paralisia do OA). Por outro lado, o Brasil não pode ser considerado responsável por essa paralisia, tendo, ao revés, como acima explanado, sempre se empenhado em buscar alternativas jurídicas defensáveis dentro do esquadro da própria OMC.

Preenchidos, pois, igualmente os requisitos do § 2º do art. 62 da CVDT para sua aplicação no caso de que se cogita.

Destarte, é possível pensar-se na aplicação do § 3º do art. 62 supra, no momento atual, em relação a países ou blocos econômicos que “violem ou sejam inconsistentes com as disposições de acordos comerciais, ou, de outra forma, neguem, anulem ou prejudiquem benefícios ao Brasil sob qualquer acordo comercial”, como previsto no inciso II do projeto de lei que se analisa.

Há, entretanto, ainda mais um aspecto que precisa ser enfrentado: pelo art. 44.1 da CVDT, “o direito de uma parte (…) de (…) suspender a execução do tratado, só pode ser exercido em relação à totalidade do tratado, a menos que este disponha ou as partes acordem diversamente”.

E, de acordo com o art. 44.2 da CVDT, “uma causa de (…) suspensão de execução de um tratado, reconhecida na presente Convenção, só pode ser alegada em relação à totalidade do tratado, salvo nas condições previstas nos parágrafos seguintes ou no artigo 60”.

Então, a princípio, por uma interpretação literal, considerando que os parágrafos seguintes do supratranscrito art. 44 não preveem a situação que aqui se analisa e que a única outra exceção textualmente prevista é a do art. 60, acima já comentado, não seria possível ao Brasil, mediante a invocação do art. 62 da CVDT, suspender apenas em parte o GATT 1994 para aplicar contramedidas a países que “violem ou sejam inconsistentes com as disposições de acordos comerciais, ou, de outra forma, neguem, anulem ou prejudiquem benefícios ao Brasil sob qualquer acordo comercial”.

Essa aparente limitação, todavia, merece ser superada.

Primeiro, recorde-se aqui, ainda, o quanto previsto no art. 45 da CVDT:

 

Artigo 45

Perda do Direito de Invocar Causa de Nulidade, Extinção, Retirada ou Suspensão da Execução de um Tratado

 

Um Estado não pode mais invocar uma causa de nulidade, de extinção, de retirada ou de suspensão da execução de um tratado, com base nos artigos 46 a 50 ou nos artigos 60 e 62, se, depois de haver tomado conhecimento dos fatos, esse Estado:

a)tiver aceito, expressamente, que o tratado é válido, permanece em vigor ou continua em execução conforme o caso, ou

b)em virtude de sua conduta, deva ser considerado como tendo concordado em que o tratado é válido, permanece em vigor ou continua em execução, conforme o caso.

Ou seja, se um país aceita violações substanciais ao GATT 1994 (art. 60 da CVDT), mesmo ciente de uma mudança fundamental nas circunstâncias (art. 62 da CVDT), sem adotar nenhuma contramedida (sendo a consideração de suspensão parcial do tratado a mais branda delas), nos termos do art. 45 também da CVDT, perde o direito de invocar as causas que permitiriam a adoção da suspensão!

E isso parece claramente inadmissível, quanto mais não seja por força de princípios que informam o Direito Internacional, como os da não-intervenção e da reciprocidade.

Por todo o exposto, entende-se que, nessa situação muito particular de constatação de (a) violações substanciais ao GATT 1994, somadas ao contexto de inefetividade do SSC da OMC, ante a paralisia do OA, o que configura uma (b) mudança fundamental nas circunstâncias que justificaram a adesão à própria OMC pelo Brasil, não só se pode, como se deve, por uma interpretação sistemática dos arts. 44, 45, 60 e 62 da CVDT, considerar suspenso em parte o GATT 1994. E isso tão-somente para se autorizar a adoção de contramedidas unilaterais de resguardo aos interesses do país, que, de outra forma, se veriam completamente desguarnecidos de qualquer proteção.

Com essa postura, mantém o Brasil sua histórica posição de submissão aos acordos internacionais de que é parte, inclusive o da OMC, mas garante, à luz do Direito Internacional, a possibilidade de se defender de violações substanciais.

Noutras palavras, respeitando-se o princípio fundamental do Direito dos Tratados, que é o do pacta sunt servanda (de resto, previsto no art. 26 da CVDT), invocando-se, ainda, os princípios de Direito Internacional da não intervenção e da reciprocidade, há que se admitir a possibilidade de o país responder justamente à violação substancial dos tratados por outra(s) parte(s).

 

VII. Conclusão

Por todo o exposto, considera-se que há fundamentos de Direito Internacional para a adoção das medidas previstas no art. 2º da Lei nº 15.122/2025, sem que se possa falar em violação ou afronta ao SSC da OMC, de que o Brasil é membro.

Reproduza-se, uma vez mais, a redação das hipóteses elencadas no caput desse art. 2º:

 

Art. 2º Esta Lei aplica-se na hipótese de adoção, por país ou bloco econômico, de ações, políticas ou práticas que:

I – interfiram nas escolhas legítimas e soberanas do Brasil, procurando impedir ou obter a cessação, modificação ou adoção de um ato específico ou de práticas no Brasil, por meio da aplicação ou da ameaça de aplicação unilateral de medidas comerciais, financeiras ou de investimentos;

II – violem ou sejam inconsistentes com as disposições de acordos comerciais, ou, de outra forma, neguem, anulem ou prejudiquem benefícios ao Brasil sob qualquer acordo comercial;

III – configurem medidas unilaterais com base em requisitos ambientais que sejam mais onerosos do que os parâmetros, normas e padrões de proteção ambiental adotados pelo Brasil.

 

Note-se que as situações dos incisos I e III são muito similares àquelas previstas no Instrumento Anticoerção europeu, que se funda, especialmente, no art. 52 do ARSIWA.​

São, na verdade, questões relacionadas à chamada “coerção econômica”, que, portanto, ultrapassam a fronteira de controvérsias meramente comerciais para dizerem respeito, inclusive, à própria soberania nacional, ou seja, à capacidade de autodeterminação de cada povo segundo sua história e seu sistema jurídico.

Nesse caso, perfeitamente legítima sua previsão, exatamente como se fez na UE, instituindo-se regras aplicáveis num sistema a latere da OMC, justamente para hipóteses em que o arcabouço normativo desta não seria suficiente para fazer-lhes frente.

Já para as situações do inciso II, que podem ser consideradas mais propriamente inseridas no escopo comercial, é inegável que sua prática por qualquer país ou bloco econômico não só viola os ditames do arcabouço jurídico da OMC, como atualmente há um contexto em que o SSC da OMC encontra-se prejudicado pela paralisia do OA. Sendo assim, invocável à espécie não apenas o pré-citado art. 52 do ARSIWA, como também os arts. 44, 45, 60 e 62 da CVDT.

Ademais disso, a amparar a previsão do multicitado art. 2º, devem ser lembrados, outrossim, os princípios gerais de direito da boa-fé e da moralidade, bem como os princípios gerais de Direito Internacional da não-intervenção e da reciprocidade.

Em síntese, a aplicação de contramedidas com fundamento na Lei nº 15.122/2025 ora em apreciação no âmbito da CAMEX está amparada pelo Direito I

[1] As exceções à aplicação da TEC são discutidas noutro texto de minha autoria (“Imposto de Importação e os Limites para suas Alíquotas: uma Revisão Necessária”, disponível em: https://iargs.com.br/imposto-de-importacao-e-os-limites-para-suas-aliquotas-uma-revisao-necessaria/).

[2] Cfr.: História – por um livre comércio. Revista Desafios do Desenvolvimento. IPEA. 2011, Ano 8, Ed. 64, 10-02-2011. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/ .

[3] Nesse sentido: BARROS, Maria Carolina Mendonça de. Antidumping e protecionismo. São Paulo, Aduaneiras, 2003. p. 25 e segs.

[4] RÊGO, Elba Cristina Lima. Textos para discussão 51 – Do GATT à OMC: o que mudou, como funciona e para onde caminha o sistema multilateral de comércio. Rio de Janeiro, BNDES, 1996. p. 6. Disponível em: file:///C:/Users/ASUS/Downloads/Do%20Gatt%20%C3%A0%20OMC%20-%20O%20que%20mudou%20….pdf .

[5] ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias. 1994, art. 3.2. Disponível em: https://www.gov.br/siscomex/pt-br/arquivos-e-imagens/2021/05/omc_solucao_controversias.pdf. Documento original disponível em: https://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/04-wto.pdf .

[6] LOPES, Larissa A. A paralisia do órgão de apelação da OMC e alternativas de governança. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/251717/001153641.pdf6c8858c222ce7b2d48a50f12f711ce64MD5110183/2517172022-11-25;jsessionid=B27A0BCBBD8CEEDE3366742B1E059923?sequence=1 .

[7] SALVIO, Gabriella de. A Lei nº. 14353/2022 e os impactos para os contenciosos envolvendo o Brasil na OMC. Disponível em: https://www.soutocorrea.com.br/artigos/a-lei-no-14353-2022-e-os-impactos-para-os-contenciosos-envolvendo-o-brasil-na-omc/ .

[8] Cfr. O Sistema de Solução de Controvérsias da OMC. Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/assuntos/politica-externa-comercial-e-economica/comercio-internacional/o-sistema-de-solucao-de-controversias-da-omc .

[9] US$ 300 milhões encerram disputa de uma década entre Brasil e EUA. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/10/141001_brasil_eua_algodao_omc_rb .

[10] Cfr. SALVIO, Gabriella de. Op. cit.

[11] Anti-Coercion Instrument. Disponível em: https://trade.ec.europa.eu/access-to-markets/en/content/anti-coercion-instrument .

[12] A referência aqui é aos Articles on Responsibility of a State for its internationally wrongful acts (ou Artigos sobre a Responsabilidade dos Estados), documento aprovado pela Comissão de Direito Internacional (CDI) da ONU em 2001 e que é admitido como parâmetro de Direito Consuetudinário Internacional.

[13] BAETENS, Freya et BRONCKERS, Marco. The EU’s Anti-Coercion Instrument: A Big Stick for Big targets. Disponível em: https://www.ejiltalk.org/the-eus-anti-coercion-instrument-a-big-stick-for-big-targets/ .

[14] BUERGENTHAL et al., citado por MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Tratados internacionais. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001. p. 20.

[15] Em inglês, conhecido como Dispute Settlement Understanding (DSU).

[16] O regime jurídico da OMC e a fragmentação do Direito Internacional: estudos sobre a relação entre o direito da OMC e os demais regimes do Direito Internacional. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/

Simone Anacleto
Associada do IARGS, Pós-Graduada em Direito da Economia e da Empresa pela FGV e em Direito e Economia pela UFRGS. Mestre em Direito do Estado pela UFRGS. Procuradora da Fazenda Nacional

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