Arrendamento mercantil e a cobrança antecipada do valor residual garantido
para IARGS
O contrato de arrendamento mercantil, também chamado de leasing, é um contrato especial de locação que assegura ao locatário a prerrogativa de adquirir o bem alugado ao final do contrato de avença mediante o pagamento de um valor residual. Seu surgimento está relacionado à necessidade de viabilizar o uso de equipamentos e máquinas sem exigir desembolsos imediatos de capital.
Na sua forma moderna, essa modalidade contratual teve origem nos Estados Unidos, por volta de 1950. Despontou como uma nova forma de financiamento de médio prazo, em um período de forte expansão da economia estadunidense. Ressalta-se que, naquela época, não havia no país uma previsão dessa forma de financiamento. Além disso, havia uma legislação muito rigorosa em relação à depreciação de equipamento. Por isso, surgiu a necessidade de um tipo contratual que permitisse a modernização da empresa e a utilização do bem (ou maquinário) sem a necessidade de imobilização de quantia significativa capital [1]. A esse instituto deu-se o nome de leasing.
Em pouco tempo, essa nova modalidade contratual passou a ser prevista na Europa e na América Latina. No sistema brasileiro, o arrendamento mercantil encontra previsão legal na Lei nº 6.099/74, que trata essencialmente dos aspectos tributários, na Resolução do Banco Central n° 2.309/96, que disciplina as operações de arrendamento mercantil e na Lei nº 11.649/2008, que regulamenta o leasing de veículos automotores.
Acerca da terminologia correta, leasing ou arrendamento mercantil, para Arnaldo Rizzardo[2], muito embora o ordenamento jurídico brasileiro tenha consagrado o termo arrendamento mercantil, o nome histórico e natural do contrato é leasing. Isso porque o termo leasing é composto pelo verbo to lease (alugar ou arrendar) e o sufixo ing (que exprime ação verbal).
A doutrina aponta três espécies de leasing: o leasing financeiro, o leasing operacional e com as novas práticas comerciais e devido à complexidade das necessidades das empresas, surgiu uma nova espécie, o lease back[3]. Em linhas gerais, o leasing financeiro é o modo típico de arrendamento mercantil, portanto o mais utilizado. O empresário indica o bem a ser adquirido pela arrendadora, que deverá adquiri-lo e oferecê-lo à locação. Já no leasing operacional, o bem já pertencia à arrendadora, que aluga ao arrendatário. No leasing back, por sua vez, o bem pertencia ao arrendatário, que vende à arrendadora para depois arrendá-lo, podendo adquiri-lo novamente ao final, pagando o valor residual.
Com efeito, a maior distinção do arrendamento mercantil em relação aos demais contratos é que o arrendatário ao final do contrato locatício terá três opções: renovar a locação, encerrar o contrato com a devolução do bem, ou ainda, adquirir o bem, mediante o pagamento de um valor residual. É a tríplice opção ao final do contrato que caracteriza, de fato, o arrendamento mercantil[4].
Chama-nos a atenção para uma das características essenciais do contrato de arrendamento mercantil: a possibilidade de adquirir o bem ao final do contrato de locação, perante o pagamento de um valor residual, o valor residual garantido (VRG)[5].
Ainda que a previsão do pagamento do VRG seja ao final do contrato, é prática comum que o contrato preveja o pagamento do valor residual de forma antecipada, especialmente nos casos de leasing financeiro. Neste caso, o valor antecipado é diluído nas prestações do contrato como se a compra tivesse sido realizada no início do contrato. Nesse contexto surge a indagação: a cobrança antecipada do VRG descaracterizaria o contrato de arrendamento mercantil, tornando-o um contrato de venda a prazo?
Em um primeiro momento, o STJ havia se manifestado em vários julgados, seguindo a concepção da doutrina majoritária de que a cobrança antecipada do valor residual, descaracterizaria o contrato de arrendamento mercantil, tendo, inclusive, editado a Súmula nº 263[6]: “a cobrança antecipada do valor residual (VRG) descaracteriza o contrato de arrendamento mercantil, transformando-o em compra e venda a prestação”.
Sucedeu que, a matéria estava sendo decidida de maneira diversa pela Primeira Turma do STJ, submetendo a questão à Corte Especial do STJ no ERESp 213.828/RS, EREsp nº 213828/RS, EREsp nº 286649/RS, EREsp nº245704/SP que decidiram no sentido contrário à Sumula 263. Assim sendo, a Súmula 263 foi cancelada e substituída pela Súmula 293[7].
Portanto, o atual entendimento do STJ é que a cobrança antecipada do valor residual garantido (VRG) não descaracteriza o contrato de arrendamento mercantil.
Reconhecida a possibilidade de cobrança antecipada do VRG, passou-se a questionar se, em caso de inadimplemento contratual e a consequente retomada do bem pela arrendadora, o arrendatário teria direito à restituição dos valores antecipadamente pagos a esse título. De acordo com o Enunciado 38 da Jornada de Direito Comercial a resposta é afirmativa, com ênfase que a devolução deve ser simples e não em dobro.
Sobre o mesmo tema, o STJ, editou no ano de 2016 a Súmula 564 com a seguinte redação: “No caso de reintegração de posse em arrendamento mercantil financeiro, quando a soma da importância antecipada a título de valor residual garantido (VRG) com o valor da venda do bem ultrapassar o total do VRG previsto contratualmente, o arrendatário terá direito de receber a respectiva diferença, cabendo, porém, se estipulado no contrato, o prévio desconto de outras despesas ou encargos pactuados[8]”.
Em outras palavras, caso o arrendatário esteja inadimplente, o arrendador poderá tomar o bem de volta e vendê-lo a um terceiro. O valor obtido com a venda deverá ser somado ao valor que referente do VRG no qual o arrendatário já pagou antecipadamente. Se essa soma for menor que o valor total do VRG, o arrendador não precisará devolver os valores já pagos ao arrendatário. Por outro lado, se o valor pago pelo arrendatário, somado com o valor de venda do bem, for superior ao valor previsto no contrato, o arrendatário terá direito de receber a diferença. Vale lembrar que o contrato pode permitir ao arrendador, antes de realizar a devolução, descontar do valor total as despesas e outros encargos que tenha tido, como por exemplo, honorários advocatícios por cobrança extrajudicial.
Com base na pesquisa realizada, é possível extrair que o contrato de arrendamento mercantil, apesar de apresentar características híbridas entre locação e financiamento, mantém sua natureza jurídica própria, mesmo diante da cobrança antecipada do valor residual garantido (VRG). A evolução jurisprudencial, culminando no cancelamento da Súmula 263 e na edição da Súmula 293 do STJ, refletiu a consolidação do entendimento de que tal antecipação não descaracteriza o contrato, mas sim se alinha à lógica econômica do leasing financeiro. Ademais, no caso de inadimplemento com a tomada do bem, o reconhecimento do direito do arrendatário à devolução de valores pagos do VRG, conforme previsto na Súmula 564, reforça o equilíbrio contratual e a proteção das partes envolvidas. Dessa forma, o arrendamento mercantil se certifica como instrumento relevante no fomento da atividade empresarial, adaptando-se às necessidades jurídicas e financeiras, bem como as dinâmicas comerciais.
[1] WALD. Arnordo. Inexistência de direito líquido e certo à restituição do valor residual garantido no contrato de arrendamento mercantil. Revista de Direito Bancário e Mercado de Capitais, ano 9, n. 31, jan-mar 2006. p. 113.
[2] RIZZARDO. Arnaldo. Contratos. 20 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 1176.
[3] TEPEDINO, Gustavo. KONDER, Carlos Nelson. BANDEIRA, Paula Greco. Fundamentos do Direito Civil: Contratos. 3ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 2022. p. 272.
[4] HORTA, Paulo Gustavo Rebello. MAXIMILIAN, Paulo. Contrato de leasing em veículos: verdades e mentiras sobre o valor residual garantido (VRG). Revista de Direito Bancário e Mercado de Capitais, ano 14, vol. 54, out/dez 2011, p. 146.
[5] Muito embora alguns doutrinadores (v.g. Arnordo Wald, Marco Ibrahim, Cavalieri Filho) façam a distinção entre o valor residual e o valor residual garantido, no presente artigo a distinção não será feita, uma vez que requer uma pesquisa mais detalhada, não sendo o objetivo deste breve artigo. Na prática negocial e nas decisões do STJ essa diferença não costuma ser explorada.
[6] Disponível em <https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp?livre=VRG&operador=e&b=SUMU&thesaurus=JURIDICO&p=true&tp=T> . acesso em 30. jul. 2025.
[7] Disponível em <https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp?livre=VRG&operador=e&b=SUMU&thesaurus=JURIDICO&p=true&tp=T> . acesso em 30. jul. 2025.
[8] Disponível em <https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp?livre=VRG&operador=e&b=SUMU&thesaurus=JURIDICO&p=true&tp=T> . acesso em 30. jul. 2025.
Gisele Cabral
Associada do Iargs. Advogada. Mestre em Direito. Especialista em Direito do Consumidor. Especialista em Direito Público. MBA em gestão empresarial