15/07/2025 07h00 - Atualizado 14/07/2025 15h12

Inteligência Artificial nas relações de trabalho: desafios no monitoramento automatizado

Por Terezinha
para IARGS

A presença crescente da inteligência artificial (IA) nas relações de trabalho tem impulsionado profundas transformações na forma como as empresas organizam, controlam e avaliam a prestação de serviços. Ferramentas baseadas em IA vêm sendo utilizadas para monitorar produtividade, controlar jornada, identificar padrões de conduta e até mesmo auxiliar na tomada de decisões sobre desligamentos, revelando uma nova faceta do poder diretivo empresarial, que se distancia das formas tradicionais de gestão e aproxima-se de uma lógica nunca antes vista.

Dados atuais demonstram o crescimento do uso de IA pelas empresas de forma concreta no cenário global: em 2017, apenas uma em cada cinco organizações utilizava algum tipo de IA nas suas rotinas empresariais. Esse número aumentou progressivamente nos anos seguintes, atingindo 58% em 2019 e culminando em 72% em 2024 (Ramos, 2024). Destaca-se, ainda, a rápida adoção de novos modelos de IA generativas, que saltou de 33% em 2023 para 65% em 2024, evidenciando sua rápida penetração e relevância estratégica para as empresas (Ramos, 2024).

Se, por um lado, o desenvolvimento tecnológico oferece incontestáveis ganhos em eficiência, produtividade e gestão, por outro, traz consigo riscos significativos à tutela de direitos fundamentais dos trabalhadores. Nesse novo cenário, é natural que surjam dilemas: até que ponto o uso da IA no ambiente laboral é legítimo? Quais os limites legais ao exercício desse controle? E, principalmente, como equilibrar os interesses legítimos da empresa com os direitos fundamentais dos trabalhadores?

Para tentar responder essas questões, inicialmente, é necessário estabelecer uma breve análise acerca do poder diretivo do empregador, conceito clássico trabalhista que encontra respaldo no artigo 2º da CLT. Por meio desse poder, o empregador detém a prerrogativa de organizar, dirigir e fiscalizar a prestação de serviços, podendo, para tanto, adotar mecanismos tecnológicos que visem ao controle da atividade laboral (Delgado, 2019).

Contudo, o poder diretivo não é absoluto. Além dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da privacidade, da proporcionalidade e da função social da empresa, é possível identificar limites em diferentes fontes, tais como os direitos fundamentais constitucionais, a legislação trabalhista (especialmente a CLT), a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), a negociação coletiva, a jurisprudência e o direito comparado.

Entre os principais direitos fundamentais, indispensável destacar a proteção à intimidade, imagem, privacidade e vida privada, todos esses previstos no artigo 5º da Constituição Federal e ampliados em normas infraconstitucionais (Facchini Neto; Damilano, 2023, p. 53). A própria CLT contempla mecanismos de proteção de honra e imagem dos trabalhadores, bem como impõem outros freios ao exercício excessivo de controle,

Além disso, a negociação coletiva emerge como fonte dinâmica e adaptável, apta a regulamentar, com base na autonomia coletiva, aspectos específicos do uso de tecnologias no trabalho. Já se tem notícia de normas coletivas que limitam o uso de inteligência artificial nas relações de trabalho, o que tende a crescer nos próximos anos.

A LGPD também ocupa um papel central nesse debate, impondo ao empregador, na qualidade de controlador de dados, o dever de observar princípios como finalidade, adequação, necessidade, livre acesso, qualidade dos dados, transparência, segurança, prevenção, não discriminação e responsabilização.

Um problema, entretanto, que se extrai é que a LGPD não possui um capítulo específico destinado ao regime de responsabilidade civil e, muito menos, de relações de trabalho, o que levou à construção de diferentes linhas interpretativas sobre o regime de responsabilidade civil decorrente da LGPD: há correntes que defendem a responsabilidade subjetiva, outras a objetiva, e algumas propõem modelos híbridos, que consideram o grau de risco envolvido no tratamento de dados sensíveis (Facchini Neto; Damilano, 2023, p. 50).

Fato é que, ainda que haja divergências teóricas sobre o modelo ideal de reponsabilidade civil da LGPD, há um ponto de convergência inequívoco: o tratamento de dados nas relações de trabalho está condicionado não apenas aos deveres contratuais e trabalhistas clássicos, mas também aos deveres decorrentes da proteção examinados.

Oportuno analisar, também, o papel da jurisprudência trabalhista e do direito comparado como fontes auxiliares para a solução de controvérsias, na forma do artigo 8º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o qual confere especialmente à jurisprudência papel normativo suplementar, especialmente em temas inéditos ou em constante transformação.

Nesse contexto, ainda que a jurisprudência brasileira esteja em fase inicial quanto à aplicação direta da IA no trabalho, decisões sobre videomonitoramento, uso indevido de dados e ausência de consentimento já indicam que os tribunais tendem a proteger os direitos fundamentais dos trabalhadores frente a abusos tecnológicos (Brasil, 2022). Por outro lado, experiências internacionais, como as da Espanha e de Portugal, demonstram um tratamento mais aprofundado e consolidado da temática:

A Espanha possui um sistema de proteção de dados mais estruturado e consolidado que o brasileiro, com tradição normativa iniciada ainda no século passado. A Ley Orgánica de Protección de Datos (LOPD) 15/1999, em vigor desde 1999, já estabelecia um regime amplo de proteção de dados pessoais, aplicável de forma geral a todos os cidadãos. Em 2018, essa legislação foi atualizada para se adequar ao Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia (RGPD – Regulamento 2016/679), sendo substituída pela nova Ley Orgánica de Protección de Datos Personales y Garantía de los Derechos Digitales (Lei 3/2018), que ampliou as garantias individuais no ambiente digital e reforçou o compromisso com a transparência e a autodeterminação informativa (Brito, 2020).

Em Portugal, o assunto é regulamentado no próprio Código do Trabalho. O artigo 20 do mencionado dispositivo, regulamentado pela Lei n.º 7/2009, estabelece que o empregador “não pode utilizar meios de vigilância a distância no local de trabalho, mediante o emprego de equipamento tecnológico, com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador”, salvo quando houver “finalidade a proteção e segurança de pessoas e bens ou quando particulares exigências inerentes à natureza da atividade o justifiquem” (Portugal, 2009).

Nesse contexto, aponta-se, por relevante, decisões de ambos os países. Na Espanha, caso em que se reconheceu a ilicitude do controle de ponto por meio de reconhecimento facial, sem consentimento, e condenou uma empresa ao pagamento de indenização por violação à privacidade dos trabalhadores (Espanha, 2023). A decisão portuguesa, por sua vez, vedou o uso de imagens obtidas por sistemas de videovigilância para justificar dispensa por justa causa, justamente por considerar que houve desvio de finalidade no uso de imagem (Portugal, 2020).

O que se percebe, a partir de uma análise geral das diversas fontes examinadas, é a formação de um entendimento convergente: o uso de tecnologias de monitoramento, baseados em IA, são instrumentos legítimos para o exercício do poder diretivo do empregador, o qual, entretanto, deve observar alguns limites.

A aplicação da IA no mundo do trabalho não deve ser vista, necessariamente, como uma ameaça. Trata-se de uma ferramenta poderosa, que pode contribuir para ambientes mais eficientes, transparentes e seguros, desde que seu uso esteja adequado.

Conclui-se, assim, que a aplicação da inteligência artificial no mundo do trabalho deve ser compreendida como um instrumento legítimo de gestão, desde que observados os limites constitucionais e legais. O maior desafio atual talvez seja justamente equilibrar inovação e direitos fundamentais, tarefa que exigirá dos operadores do Direito sensibilidade interpretativa, atuação preventiva por parte dos empregadores e, sempre que possível, diálogo social.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 01 jun. 2025.

 

BRASIL. Decreto-Lei n.º 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial da União: seção 1, Rio de Janeiro, 1 maio 1943.

 

BRASIL. Lei n.º 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 5.452, de 1º de maio de 1943, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2017.

 

BRASIL. Lei n.º 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 ago. 2018. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm>. Acesso em: 3 out. 2024.

 

BRASIL. Justiça do Trabalho. Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região. 13ª Vara do Trabalho de Fortaleza. Sentença no processo nº 0000527-58.2021.5.07.0013. Relator: Juiz do Trabalho Substituto Vladimir Paes de Castro. Fortaleza, 11 jul. 2022.

 

BRITO, Maria Ervanis. Análise comparativa do exercício do poder diretivo por meio de videovigilância no ambiente laboral no Brasil e Espanha. In: LIMA, Francisco Gérson Marques de (org.). Direito comparado do trabalho: no mundo globalizado. Fortaleza: Excola Social, 2020. p. 221–246.

 

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 19. ed. São Paulo: LTr, 2019.

 

ESPANHA. Juzgado de lo Social n.º 2 de Alicante. Sentencia n.º 190/2023, ECLI:ES:JSO:2023:2644; n.º de recurso 489/2023, de 15 set. 2023. Relatora: Isabel Redondo López. Diario La Ley, n.º 10389, 16 nov. 2023. Disponível em: <https://www.supercontable.com/boletin/E/sentencias_boletin/SJSO_2644_2023.pdf>. Acesso em: 22 jun. 2025.

 

FACCHINI NETO, Eugênio; DAMILANO, Cláudio Teixeira. A responsabilidade civil do empregador pelo uso da tecnologia de inteligência artificial no controle das atividades dos trabalhadores. In: PINHO, Anna Carolina (coord.). Manual de direito na era digital: trabalho. Indaiutuba: Editora Foco, 2023. p. 21–62.

 

PORTUGAL. Tribunal da Relação de Évora. Acórdão de 24 set. 2020. Processo n.º 931/20.1T8STB-B.E1. Relator: Moisés Pereira da Silva. Évora, 2020. Disponível em: <https://www.jusnet.pt>. Acesso em: 22 jun. 2025.

 

RAMOS, Marien. Uso de inteligência artificial aumenta e alcança 72% das empresas, diz pesquisa. CNN Brasil, 8 jun. 2024. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/economia/negocios/uso-de-inteligencia-artificial-aumenta-e-alcanca-72-das-empresas-diz-pesquisa/>. Acesso em: 22 jun. 2025.

 

TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 3ª REGIÃO. NJ Especial: Rastreamento de dados e controle patronal do computador usado em serviço pelo empregado configuram invasão de privacidade? Notícias Jurídicas – TRT-3, Belo Horizonte, 17 dez. 2016. Disponível em: <https://portal.trt3.jus.br/internet/conheca-o-trt/comunicacao/noticias-juridicas/importadas-faltantes/nj-especial-rastreamento-de-dados-e-controle-patronal-do-computador-usado-em-servico-pelo-empregado-configuram-invasao-de-privacidade-17-12-2016-06-04-acs>. Acesso em: 22 jun. 2025.

Lucas Velho

Associado do IARGS, Advogado. Mestrando em Direito pela PUCRS. Pós-graduado em Direito Agrário e do Agronegócio pela FMP. Pós-graduando em Direito e Processo do Trabalho pela PUCRS

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