Métodos Autocompositivos em Contexto de Crise – Aspectos da Adequação
para IARGS
Na forma da Lei 12.608/12, Decreto 10.593/20 e Portaria 260/22 do Gabinete MDR, o governo do estado do Rio Grande do Sul, reconhecendo a gravidade dos danos e a necessidade de resposta coordenada, emitiu decreto estadual declarando estado de calamidade pública[1], permitindo a mobilização de recursos para assistência emergencial às áreas afetadas pelo desastre que acometeu o estado pelas inundações, enchentes, alagamentos e desmoronamentos no final do mês de abril 2024. O governo federal, através do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional/Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, reconheceu sumariamente o estado de calamidade pública no Rio Grande do Sul[2], necessário para liberação de outros recursos ao apoio do ente federativo afetado. O mesmo aconteceu por diversos municípios afetados e Capital gaúcha[3]. Assim se dá a forma, agora é verificar na prática o efetivo ingresso dos recursos.
A exemplo do ocorrido em 1941, vencida a etapa de socorro às vidas por voluntários da pátria e já com as águas de volta aos leitos dos rios, deve se iniciar de imediato acolhimento e abrigo aos sobreviventes, análise multidisciplinar das causas e responsabilidades, operação de resposta aos danos, recuperação das áreas e dos serviços atingidos, fiscalização e controles do efetivo recebimento e destinação de recursos, para retorno da normalidade no dia a dia dos sobreviventes e da população com garantia da dignidade da pessoa, criança, adolescentes e idosos, dos seres sencientes, e, para dar conta de tudo isso, da retomada da economia do estado do Rio Grande do Sul.
Os danos causados ainda são imensuráveis em 90% dos municípios gaúchos (447 de 497 municípios – IBGE). Muitos deles irrecuperáveis nas vidas dos sobreviventes ao desastre. Segundo a Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (FIERGS), a região afetada abrange 94,3% da economia do Estado[4], que tem população de cerca de 11,3 milhões de habitantes. Exemplo de dificuldade a ser vencida com colaboração de todos vem da notícia[5], de maio de 2024, da transferência ao FUNDEC[6] do valor total de cento e oitenta milhões de reais, provenientes de depósitos judiciais em todos os tribunais do país referentes à aplicação de multas pelos juízos criminais[7], valor que foi distribuído entre 95 municípios gaúchos atingidos pelas enchentes, incluída a Capital.
Esta transferência oficial de recursos transparece o sentido de colaboração e de iniciativa[8] quando evidenciada dificuldade que afeta pessoas que pertencem a nossa comunidade (local, regional, nacional etc.)[9]. Neste sentido, recorda-se da reportagem em jornal de grande circulação em Porto Alegre/RS lá em 19/06/2017 sobre crise com a seguinte manchete: Judiciário Gaúcho Superlotado, há 2,78 milhões de processos acumulados na Justiça Estadual no encerramento do ano, com média de um caso para cada quatro habitantes, atrasando soluções e alimentando a má fama de lentidão do sistema[10].
Em medida de colaboração naquela ocasião, a OAB/RS, diagnosticando prejuízo para a advocacia e para a cidadania, referia a criação da Casa de Mediação inaugurada em março de 2011 como iniciativa pioneira no Brasil[11]. A Defensoria Pública RS, órgão do executivo estadual, divulgava criação de câmara de mediação e conciliação em 2017, notadamente para conflitos familiares[12]. A Procuradoria Geral de Porto Alegre instituiu câmara de mediação e conciliação tributária, indenizações administrativas e precatórios[13]. A iniciativa privada também disponibiliza investimento nos Métodos Autocompositivos de Resolução de Conflitos (MARC) com a criação da CAMERS pela FIERGS[14], entre outras câmaras[15].
O judiciário buscava solucionar a crise com gradativa implementação, então, das demandas repetitivas e ações coletivas, também prometendo emprego de maior rigor para a concessão da AJG, além de referir sobre via alternativa da conciliação. Atualmente investe em pesquisa[16] e contratação de serviço de IA (legaltechs)[17]. Em que pese aparentar normalizado o estado crítico em que se encontra a judicialização do conflito (a lide), por conta da era digital, e o investimento para o desafio de gestão, esta crise tende a agravar em calamidade pública.
Mesmo com a intenção e iniciativas de colaboração ao enfrentamento da superlotação do judiciário (fenômeno da judicialização), pelo acompanhamento dos dados do relatório da série “Justiça em Números” do CNJ, verificou-se ainda um aumento em 12% no número de processos judiciais em tramitação (estoque) no Poder Judiciário desde 2017 (74 milhões) até 2023 (83,8 milhões). O aumento de 2016 a 2017 foi de 3% (1,9 milhões); de 2022 a 2023 foi de 9,4% (3 milhões). Se fosse possível interrupção de novos ajuizamentos, se mantidos níveis de temperatura e pressão, o tempo estimado para esvaziamento do estoque é de 2 anos e 5 meses. Tempo reduzido em 7 meses em relação ao estimado em 2017. Alvissareiro ao gestor em tempos do direito constitucional à duração razoável do processo[18]. A questão que surge é saber interpretar a expressão “razoável”, considerando-se ainda permanecerem como os maiores litigantes o próprio estado/previdência, os bancos e as empresas de telefonia[19].
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que detém 6,3 milhões de processos daquele estoque, alcançou o melhor Índice de Produtividade Comparada da Justiça (IPC-Jus), que mede a produtividade e eficiência relativa dos tribunais do país[20]. Dentre ações iniciadas e implementadas a partir de 2020 pelo CNJ, na ocasião para dar conta da calamidade pandêmica mundial provocada pela Covid-19 (Justiça 4.0, Juízo 100% Digital, Núcleos de Justiça 4.0, Balcão Virtual, Codex, Painel de Grandes Litigantes), este ranking passa a integrar a política judiciária de gestão como meta de produtividade e desempenho (“ritmo de trabalho”), com transparência nos dados de melhoria (ou não), de modernização dos fluxos processuais e da administração gerencial no judiciário brasileiro, que resultou no aumento de 5% de produtividade em 2023 segundo critérios escolhidos[21]. Quando há investimento e se desenvolve TI em organizações, se detém informações automatizadas, então o céu é o limite.
Mas, o que tem a ver o estado de calamidade pública com a judicialização e seus dados estatísticos? Em comum são os desafios para enfrentamento de crises que, pela necessidade, convidam à ampliação de escopo, à criatividade e à inovação com embasamento nas ciências. Problemas enfrentados na administração da justiça que, ao fim e ao cabo, se somam para a resolução dos conflitos de forma razoável e humanizada: a crescente judicialização e a calamidade pública. Deve se encontrar o acessível e o possível a todos que exercem sua atividade no âmbito jurídico para entornar esta realidade de volta aos leitos dos rios. Existem métodos autocompositivos a demandas atuais e de recursos humanos e de infraestrutura disponíveis. A judicialização desenfreada permanece como catalisador desse problema[22] que se agrava pelo atual estado de calamidade pública. Depois da enxurrada, agora se forma uma onda que provavelmente arrebentará no judiciário.
A maioria dos profissionais do direito recebemos esta formação do litígio desde a academia (apenas constatação). Há a impressão comum de que, onde houver pretensão resistida, o judiciário deve uma solução. E o próprio judiciário contribui a esta impressão, fazendo-se crer detentor do monopólio da solução. Até quando isto será possível? Como referido, atualmente a contratação de IA para gerenciar, ou até mesmo julgar, por meio de algoritmos (criar filtros), trazendo melhoria do rendimento institucional à gestão dos processos judiciais, buscando atenuar, pelo digital, o sentimento de morosidade da justiça. Perde-se mesmo é a percepção sensorial do problema, pois não há mais espaço tridimensional para o atendimento pessoal e para enxergarmos as prateleiras (que estão nas nuvens). Ainda assim as estatísticas demonstram números ínfimos em acordos homologados com média de 12,1%[23].
Dentre os Métodos Autocompositivos de Resolução de Conflitos (MARCs) que devem receber investimento e incentivo[24], a Mediação está inserida na legislação como procedimento que permite a comunicação entre pessoas em conflito (ou pelo menos evita bloqueio da comunicação) e com benefícios em todos os aspectos – à formação do diálogo pertinente e qualificado, ao aprendizado pela utilização de equipe multidisciplinar, à autodeterminação e corresponsabilidade, ao protagonismo da decisão (autocomposição), à simetria informacional à decisão informada, à sensível economia de tempo, à simplificação processual.
Este método pode ser utilizado como etapa do Desenho de Sistema de Disputa (DSD) que integre negociação indireta, conciliação, dispute board, até arbitragem (juízo arbitral) ou adjudicação (decisão judicial), a depender das peculiaridades do conflito, seja ele empresarial, familiar, de planejamento sucessório, contratual, de agronegócio, sindical, condominial[25]; e, dispensando-se, em sua aplicação, o tempo médio de três anos dedicados à tramitação dos processos judiciais no primeiro grau na Justiça Estadual em todo o país, se poderia apurar outra estatística. Caso contrário, mantendo-se o percurso, chegaremos no mesmo lugar de crise anunciada que se agrava pela calamidade pública.
A leitura do Código de Processo Civil se inicia a partir de princípios constitucionais, dentre os quais, destaca-se aqui o da boa-fé objetiva processual (lealdade e cooperação). É a necessidade de se incentivar a comunicação e a negociação para dirimir os conflitos[26]. E os métodos autocompositivos têm esse papel, estão acessíveis e disponíveis e dever deontológico ao advogado[27], “primeiro juiz da causa” nos dizeres de Francesco Carnelutti, sob apoio e fiscalização do órgão de classe[28]. Quando capacitado a compreender os benefícios advindos a seu cliente e para seu escritório, o ajuizamento encontra oportunidade, não a única[29].
Este o intuito de trazer o tema diante da a) urgência de se encontrar caminhos para a crise que deve se agravar pelo estado de calamidade pública, b) incentivar cada vez mais sessão de conciliação ou de mediação se valendo do permissivo do artigo 168 CPC – contando com a inconteste e imediata influência positiva que pode o juiz sobre as partes, c) urgência em se racionalizar os recursos, até mesmo para o atendimento e o restabelecimento da infraestrutura atingidos e a retomada da economia. Refletir no âmbito jurídico sobre a possibilidade de ampliação da oferta e utilização dos Métodos Autocompositivos de Resolução de Conflitos (MARCs), para beneficiar pessoas e promover a desjudicialização[30]. Este recrudescimento da lide (parcela do conflito) deve se dar com a colaboração da comunidade jurídica, sobretudo em tempos de calamidade pública que se soma à crise do judiciário. Cônscia dos benefícios da evitação do processo judicial litigioso com todos os esforços e competência, encontrando na Justiça Multiportas a segurança jurídica e o acesso[31], somente garantidos com participação essencial da advocacia[32].
[1] Decreto n° 57.596/24: Decretos – Atos do Governador – Publicação no Diário Oficial do Rio Grande do Sul (diariooficial.rs.gov.br)
[2] Portaria Ministerial n° 1.354/24: PORTARIA Nº 1.354, DE 2 DE MAIO DE 2024 – PORTARIA Nº 1.354, DE 2 DE MAIO DE 2024 – DOU – Imprensa Nacional (in.gov.br)
[3] Na Capital gaúcha, Decreto n° 22.647/24: Decreto 22647 2024 de Porto Alegre RS (leismunicipais.com.br)
[4] Estudo da FIERGS mostra que sobe para 94,3% o percentual da atividade econômica no Estado afetada pelas chuvas
[5] Poder Judiciário Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (tjrs.jus.br)
[6] Decreto 57.292/23: Decreto 57292 2023 do Rio Grande do Sul RS (leisestaduais.com.br)
[7] atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5552. A esclarecer se por crimes e/ou infrações ambientais, como permissivo do art. 9°, inciso II-A da Lei 12.340/10.
[8] Iniciativa do Tribunal de Contas RGS sobre Lei 14.133/21 (Licitação e Contratos Administrativos): Cartilha Perguntas e Respostas – Calamidade Pública nos Municípios do RGS – Nextcloud (tce.rs.gov.br)
[9] Iniciativa em ação conjunta de vários órgãos: Estado realiza mutirão de serviços e documentação gratuita à população – Portal do Estado do Rio Grande do Sul
[10] Com quase 3 milhões de processos, Judiciário gaúcho tem média de um caso para cada quatro habitantes | GZH (clicrbs.com.br)
[11] OAB/RS – Comissão (oabrs.org.br)
[12] Mediação e Conciliação – Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul (rs.def.br)
[13] Mediação e Conciliação | Prefeitura de Porto Alegre
[14] Câmara de Arbitragem, Mediação e Conciliação do CIERGS – CAMERS
[15] Poder Judiciário Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (tjrs.jus.br); OAB/RS – Centro de arbitragem e mediação da OAB-RS (oabrs.org.br); Conima – Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem
[16] Pesquisa vai contribuir para a utilização de inteligência artificial no Judiciário – Portal CNJ
[17] Startups jurídicas comemoram fala de Barroso sobre inteligência artificial | VEJA (abril.com.br)
[18] Art. 5°, inciso LXXVIII CF.
[19] Poder Judiciário – Grandes Litigantes (cnj.jus.br)
[20] cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/08/justica-em-numeros-2023.pdf
[21] Já houve até a criação do Índice de Atendimento à Demanda (IAD), atualmente está em 99,2%.
[22] Segundo consta na introdução do relatório CNJ Justiça em números 2017: “Assim como o tempo do processo e o afã por diminuí-lo, também a conciliação e a mediação, importantes meios para tanto, são apostas institucionais não apenas antigas, mas também da mais alta prioridade, dadas as taxas de judicialização do nosso país não apenas serem das mais altas internacionalmente, como estarem crescendo contínua e incessantemente. A conciliação e a mediação, a despeito de serem agendas antigas do CNJ, ainda não haviam seus números oficiais divulgados ampla e sistematicamente. Além disso, o índice de conciliação servirá de mensuração inicial apta a avaliar o impacto das recentes alterações advindas do novo Código de Processo Civil, conferindo ainda mais importância ao relatório neste novo contexto legal”. (http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/pj-justica-em-numeros). (o grifo não é original).
[23] Em 2015 a média era de 11%, e o relatório apontava esperança pela aplicação do então “novo Código de Processo Civil” que trazia a inovação da imposição para realização de audiências de conciliação e de mediação. Melhores dias virão?
[24] Lei 9.307/96 (Arbitragem), Lei 13.105/15 (CPC) e Lei 13.140/15 (Mediação).
[25] FALECK, Diego. Manual de Design de Sistemas de Disputas – criação de estratégias e processos eficazes para tratar conflitos. 2ª tiragem. 2020. Ed. Lumen Juris.
[26] Como se vê na abertura do CPC. §2º do art. 1º: “O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos”. §3º do art. 1º: “A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial”.
[27] Resolução 02/2015 – Código de Ética e Disciplina da OAB no inciso VI do parágrafo único do art. 2º: “estimular a conciliação e mediação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios”: file_61292363b5d99.pdf (oabrs.org.br). Essa norma nos era muito cara quando orientávamos estágio supervisionado no escritório acadêmico de faculdade de direito entre 1987 até 2015.
[28] Vide nota 20 acima.
[29] Muitos casos existem da distribuição direta de ação consensual, ou seja, em que houve prévia mediação sugerida pelos advogados. Processo n°0011415-51.2014.8.21.3001 que foi distribuído como consensual em 25/09/2014, homologação em 09/10/2014 (14 dias) e baixado em 26/03/2015 (6 meses). Processos como este viram estatística de acordos homologados pela Justiça.
[30] Mediação é fundamental para enfrentar a crise, afirma ministro Noronha em debate na internet (stj.jus.br).
[31] Inciso XXXV do Artigo 5º da Constituição Federal: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
[32] SUSSKIND, Richard. Advogados do Amanhã – uma introdução ao seu futuro. Coordenação da tradução: Valéria de Sousa Pinto. 3ª edição. 2023. Ed. Emais.
Paulo Ricardo D’Oliveira
Advogado e Mediador Judicial, Diretor do Departamento Métodos Autocompositivos de Resolução de Conflitos (MARCs) do IARGS, Mestre Direito do Estado PUCRS, Pós-Graduação em Psicologia Forense SBPJ