22/05/2024 19h08 - Atualizado 22/05/2024 19h08

O resgate do mínimo existencial sob o olhar dos direitos da personalidade

Por Terezinha
para IARGS

Breve ensaio diante da situação ocorrida no Sul do Brasil.

A compreensão quanto ao Mínimo Existencial está associada à ideia de um núcleo de direitos inderrogáveis, que devem ser protegidos e garantidos, como caracterizadores de um mínimo de garantias e oportunidades para uma existência digna. Isso significa dizer que o direito ao mínimo existencial está alicerçado no direito à vida e na dignidade da pessoa humana

Ainda, caracteriza-se pelo seu status negativo e positivo, sendo certo que não raro se convertem um no outro ou se co-implicam mutuamente na proteção constitucional negativa e positiva, sendo àquela de não intervenção estatal e essa de prestação estatal.

O conceito de mínimo existencial de John Rawls estabelece, em suma, dois princípios básicos: a) todos os indivíduos participam e estão inseridos em um mesmo sistema de direitos e liberdades; e, b) somente se pode alterar esse sistema de forma a beneficiar os mais desfavorecidos, que é conhecido como princípio da diferença. A idéia apregoada por Rawls seria a de que o mínimo existencial não está fixado em uma só maneira, ou um só dispositivo. Para ele deve-se procurar esse mínimo na ideia de liberdade, nos princípios da igualdade, do devido processo legal, da livre iniciativa, nos direitos humanos, nas imunidades e privilégios do cidadão.[1]

O autor, no entanto, quando se refere aos cidadãos, amplia essa noção do mínimo essencial com a ideia de “bens primários” (primary goods). Na verdade, a ideia de bens primários de Rawls tem em vista uma concepção política de justiça e refere-se, portanto, às condições de possibilidade do exercício da cidadania no sentido amplo e não apenas à satisfação das necessidades básicas dos cidadãos (mínimo social). Cumpre observar que o foco são as pessoas como cidadãs. O exercício da autonomia e da cidadania amplia assim as exigências do ser pessoa.

Portanto, para John Rawls o mínimo existencial seria uma espécie de princípio constitucional, que teria de ser moldado de acordo com a realidade experimentada pela sociedade.

Um dos precursores na doutrina brasileira foi o doutrinador Ricardo Lobo Torres, com a publicação do trabalho intitulado: “O mínimo existencial e os direitos fundamentais”, publicado em 1989. De acordo com o autor, se não houver um mínimo que é essencial à existência, irá cessar a possibilidade de sobrevivência do homem, consequentemente, irá cessar seu direito de ser livre. Entende, ainda, serem os direitos sociais pertencentes ao mínimo existencial, assim como qualquer direito, mesmo que originalmente não fundamental, desde que considerado essencial, inalienável e existencial.[2]

Partindo-se deste conceito, damos um salto e ingressamos no pensamento jurídico contemporâneo da repersonalização do Direito Civil, colocando o ser humano como valor fonte do ordenamento jurídico, apontando para uma noção que faça jus à dimensão concreta, histórica e relacional da pessoa humana.

Dentro desta dimensão, a personalidade assume concretude quando assumida como direitos da personalidade, concernentes aos atributos existenciais de cada ser humano. Nas palavras de Nelson Rosenvald,

Sempre frisamos que a noção de personalidade só assume concretude se for assumida como direitos da personalidade, valor intrínseco à condição humana que antecede ao ordenamento jurídico, concernente aos atributos existenciais de cada ser humano. Trata-se de valor-fonte que não pode ser fracionado pela lei, mas tão somente por ela reconhecido e dignificado. A capacidade, ao contrário, diz respeito à subjetividade, a idoneidade do indivíduo de titularizar relações patrimoniais. Daí que o direito reconhece a personalidade e concede a capacidade, sendo infenso ao legislador mitigar o valor da personalidade. Na qualidade de medida de um valor, a capacidade pode sofrer restrições legislativas, desde que razoáveis e motivadas na própria proteção da pessoa.[3]

Dentro da temática, encontramos os direitos gerais da personalidade, localizados nos arts. 11 e 12 do Código Civil, que se caracterizam por serem situações jurídicas existenciais que tutelam os atributos essenciais do ser humano e o livre desenvolvimento da vida em relação. Ainda, há os direitos específicos da personalidade, esculpidos nas regras dos arts. 13 a 21 do Código Civil. Assim, a característica básica dos direitos da personalidade é de que não são estanques nem mesmo taxativos, mas abertos e detentores de elasticidade para abarcar os projetos inovadores do ser humano que estão por vir, eis que cada um é protagonista de sua história e autor de sua biografia.

Nesta linha, enquanto que a codificação civil refere o direito ao nome, em rol exemplificativo do direito da personalidade, no art. 16, cresce a consagração do direito à identidade pessoal, como direito nascido da necessidade da tutela da verdade pessoal, que vai além da identificação, quando abarca elementos mais subjetivos atrelados ao autoreconhecimento de posições identitárias.

O direito à identidade pessoal é uma construção jurídica que busca tutelar a identidade de cada sujeito, inserido no âmbito dos direitos da personalidade. Seu desenvolvimento iniciou-se no século XX, nas décadas de 1970 e 1980, especialmente no cenário italiano. Até então, prevalecia a ideia de que a identidade se restringia aos fatores de identificação (documentos, compleição física, signos distintivos, etc.). Tratava-se de uma visão atrelada ao imaginário jurídico da época, quando os interesses patrimonialistas imperavam sobre os interesses pessoais[4].

Nas décadas de 1970 e 1980, passou-se a considerar que a identidade pessoal compreendia mais do que os meros dados de identificação ou de individualização social, tal como os documentos de identificação pessoal, o nome, o pseudônimo, a imagem, o estado civil, a nacionalidade, a compleição física. Para tanto, passaram a ser considerados também os valores e as questões não materialmente quantificáveis de cada pessoa, como as posições espirituais, culturais, ideológicas e morais. Logo, o desenvolvimento de um direito à identidade pessoal abarca tanto os signos distintivos quanto os atributos não físicos de uma pessoa, sempre que estes tiverem projeção social e eventualmente efeitos intersubjetivos, no intuito de se chegar a uma verdade pessoal[5].

Tal concepção de verdade pessoal deve ser lida sobre uma dupla perspectiva: uma de consideração ao passado e ao presente, na qual a pessoa deve ter sua biografia e a sua realidade tuteladas, a fim de que não seja considerada outra pessoa total ou parcialmente; e uma segunda noção voltada para o futuro, para o devir, onde tutela-se o livre desenvolvimento da sua personalidade[6]

Portanto, o direito à identidade pessoal presta-se tanto para o respeito e defesa da identidade passada e presente de uma pessoa, quanto para a promoção da livre (des)construção da sua identidade no futuro. Isso impõe que tal direito seja tutelado de forma pré e pós-violatória, não apenas judicialmente, mas especialmente via políticas públicas[7].

A situação de calamidade pública experimentada no sul do Brasil, em que devastou mais de 400 municípios, deixando mais de 150 mortos e mais de 100 pessoas desaparecidas[8], deflagra não só a necessidade de retomada da identificação pessoal das pessoas atingidas, com a expedição de segunda via de documentos, que os identifica socialmente e juridicamente para garantia de direitos mínimos existenciais (saúde, educação, habitação, previdência, etc), mas também a necessidade da busca da identidade pessoal de cada um: de seu passado, sua história, suas memórias, seus lembranças, seus rastros que foram levados pelas enxurradas.

O direito da identidade pessoal, do passado, do presente e da projeção ao futuro, merece guarida especial neste momento, haja vista a proteção ao direito de pertencimento e do direito à historicidade única de cada ser humano.

A reflexão do sentido de pertença e a formação da identidade referem-se a pertencer a um lugar, um tempo, um povo, um território. Ou seja, os territórios dos afetos nos conduzem a um lugar comum, um tempo comum, a um trabalho de memória que atualiza nossa identidade e sentimento de pertença[9].

A perspectiva de pertencer, atrelada à expressão da consciência, espiritualidade e sentimento datam de cerca de 25 mil anos dentro da história humana evolutiva, quando considera-se que os primeiros hominídeos passaram a ter consciência do ser e, de certa maneira, de pertencimento[10].

Dito isto, dentro da reconstrução existencial e material de cada ser humano afetado pelas enchentes do sul do Brasil não se pode olvidar do direito à identidade, inserido dentro do direito de personalidade, como extensão a dimensão existencial.

Muito mais do que a ideia do mínimo existencial tradicional, como sendo as garantias e oportunidades, o dever prestacional da eficácia positiva dos direitos da personalidade exige uma ampliação para além de uma perspectiva reducionista no intuito de efetivamente prestigiar uma existência digna.

[1] RAWLS, John. –Political Liberalism. New York. Columbia University Press, 2005, p. 179.

 

[2] TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os Direitos Fundamentais. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/rda/article/view/46113/44271. Acesso em 18.05.2024

[3] ROSENVALD, Nelson. A personalização da personalidade. Disponível em https://www.jusbrasil.com.br/artigos/a-personalizacao-da-personalidade-artigo-de-nelson-rosenvald/346128676. Acesso em 13.05.2024.

[4] CHOERI, Raul Cleber da Silva. O direito à identidade na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 178.

[5] SESSAREGO, Carlos Fernández. Derecho a la identidad personal. Buenos Aires: Austrea, 1992, p. 23.

[6] Idem. p. 100-101.

[7] SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 220.

[8] Dados levantados em 16.05.2024. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/05/aumenta-para-151-o-numero-de-mortos-na-tragedia-no-rio-grande-do-sul.shtml

 

[9] SILVA, Maria Angelita; Ferreira, Jarliane da Silva; MORI, Nerli Nonato Ribeiro. Identidade e pertencimento: quando a natureza, sujeito de direito, promove o direito dos sujeitos. In: Revista VIDERE, v. 13, n. 27, maio/ago., 2021. p. 28. Disponível em https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/158380/4.identidade_pertencimento_quando_silva.pdf. Acesso em 15.05.2024.

[10] Até recentemente, os arqueólogos acreditam que os Cro-Magnon desenvolveram gradualmente sua rate rupestre, começando com desenhos muito grosseiros e desajeitados e atingindo seu ápice com as famosas pinturas de Lascaux, que tem cerca de 16 mil anos. No entanto, a sensacional descoberta da Caverna Chauvet, em dezembro de 1994, obrigou os cienstitas a revisar radicalmente suas ideiais. Essa grande caverna na região de Ardèche no sul da França consiste em um labirinto de câmaras subterrâneas repletas de mais de 300 pinturas altamente bem realizadas. O estilo é semelhante ao da arte de Lascaux, mas cuidadosas datações por radiocarbono demonstram que as pinturas em Chauvet t:em, pelo menos 30 mil anos de idade. Tais pinturas, por si mesmas, marcam a presença do moderno Homo sapiens sobre a Terra. Só as pessoas pintam, só as pessoas planejam expedições até as extremidades mais afastadas de cavernas úmidas e escuras por razões cerimoniais. Só as pessoas enterram seus mortos com poupa. A procura pelos ancestrais históricos do homem é a procura pelo contador de histórias e pelo artista. In: CAPRA, Fritjof. LUISI, Pier Luisi. A Visão Sistêmica da Vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014, p. 304/305.

 

Laura Affonso da Costa Levy

Advogada; Consultora em Biodireito; Mestre em Bioética; Professora; Membro da Comissão Especial do Direto à Saúde da OAB/RS; Coordenadora do GT pesquisa da Comissão Especial do Direto à Saúde da OAB/RS; Coordenadora do Departamento de Direito e Bioética do IARGS; Membro da Sociedade Brasileira de Bioética – Seccional RS.

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