Artigo- Reflexões em Tempos de Pandemia
para IARGS
Artigo do Dr Norberto da Costa Caruso Mac Donald,
professor da UFRGS, Membro do Conselho Superior
e presidente do Conselho Fiscal do IARGS
Tema: Reflexões em Tempos de Pandemia
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Em meados do ano passado, o IARGS divulgou artigo em que teci rápidas considerações sobre reflexos da pandemia no Direito. No início da exposição, seguindo a lição do cientista político Yascha Mounk, a nossa época anterior à pandemia foi classificada como “extraordinária”, em razão das mudanças que vêm ocorrendo abruptamente. O sociólogo Boaventura de Souza Santos (1) reforça esse entendimento ao afirmar, no limiar deste século, “que vivemos um período em que o ritmo, a escala, a natureza e o alcance das transformações sociais são de tal ordem que os momentos de destruição e os momentos de criação se sucedem numa cadência frenética, sem deixar tempo nem espaço para momentos de estabilização e de consolidação. É precisamente por isso que caracterizo o período atual como sendo um período de transição.”
No final do referido artigo, concluí, pelo exame das circunstâncias, que caberia classificar a época pós-pandemia não apenas como “extraordinária”, mas como “excepcional” ou “atípica”, esperando-se que a “atipicidade” seja caracterizada não só pela quantidade e excepcionalidade de medidas tomadas pelo poder público, mas que essas, assim como os comportamentos individuais e coletivos, reflitam lições extraídas da pandemia.
Agora, além de leituras inspiradoras de reflexões sobre a atualidade, o tempo decorrido permite, ao menos, duas constatações em consonância com questões então expostas: a primeira é que, como se tornou lugar-comum, não estamos todos no mesmo barco, mas em face da mesma tempestade, sendo a disparidade dos meios para enfrentá-la sobretudo resultado da desigualdade socioeconômica, que cada vez mais se acentua; a segunda constatação confirma a nossa dependência recíproca, de que uma das consequências é demonstrar a imprescindibilidade e importância das profissões em geral.
Recente obra do filósofo e professor da Universidade de Harvard, Michael J. Sandel (2), fornece, numa admirável síntese, fundamentos para sustentar que devemos manter sempre presente a disposição que estimula movimentos de solidariedade em tempos “atípicos”. Vale citá-lo: “E não é possível deliberarmos sobre propósitos e fins comuns sem senso de pertencimento, sem nos enxergarmos como membros de uma comunidade à qual devemos gratidão. Apenas enquanto dependemos dos outros e reconhecemos nossa dependência teremos motivos para reconhecer a contribuição do outro ao nosso bem-estar coletivo. Isso exige senso de comunidade suficientemente robusto para possibilitar que cidadãos digam, e acreditem, que ‘estamos todos juntos nisso’– não como um ritual mágico em momentos de crise, mas como descrição plausível de nossa vida diária.” (grifei)
Certamente, o reconhecimento de nossa dependência mútua, da exigência do senso de comunidade não significa a anulação do “indivíduo” resultante de processo civilizatório, cujas origens remontam aos últimos anos da Idade Média; tampouco a pretensão de restabelecer os vínculos orgânicos e as relações de dependência pessoal que faziam com que as formações pré-modernas se constituíssem como unidades. Como elucida Paulo Mac Donald (3), sendo a comunidade formada por seres humanos, animais políticos segundo a filosofia aristotélica, eles só desenvolvem suas características verdadeiramente humanas na vida comunitária (o discurso, a amizade, a razão dialética, a deliberação sobre o bem etc.). Porém, a pessoa, que faz a comunidade, é um todo em si; além de parte de um todo (comunidade), é também unidade. Portanto, o indivíduo participa da comunidade, mas não chega a ter sua individualidade nela dissolvida. Duas falsas doutrinas entre si opostas devem ser evitadas: a do individualismo, segundo a qual o indivíduo basta a si mesmo, e a do coletivismo, que, ao invés, deifica o Estado e a comunidade. Cumpre preservar a eminente dignidade da pessoa com o respeito aos seus direitos inatos, tendo presente a necessidade da sociedade para o seu desenvolvimento. Já em 1876, Fiódor Dostoiévski (4), movido pelo sentimento de que a vida social era gradualmente dilacerada pelo egoísmo, declarava estar constantemente com a impressão de ter ingressado numa época em que “tudo se rompe e se fragmenta, e não por grupos mas por unidades”. E o egoísmo, como historicamente comprovado, não constitui uma motivação que redunde na efetivação dos direitos humanos.
A outra questão acentuada pela pandemia é a desigualdade socioeconômica. Recorro novamente à acuidade de um escritor consagrado. George Orwell (5) escreveu sobre o pânico causado pela peça radiofônica produzida por Orson Welles, baseada na fantasia A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells. Embora sem a intenção de pregar uma peça, a emissão teve uma repercussão espantosa e imprevista. Milhares de pessoas a confundiram com um programa de notícias e, ao menos por algumas horas, acreditaram mesmo que os marcianos tinham invadido os Estados Unidos. Assim conclui Orwell: “A conexão evidente entre infelicidade pessoal e prontidão para aceitar o inacreditável é aqui o achado mais interessante” [de uma pesquisa então realizada]. “Pessoas que estavam desempregadas ou à beira da falência por uma década talvez ficassem aliviadas ao saber do fim iminente da civilização. É um estado de espírito que levou nações inteiras a se lançar nos braços de um Redentor.” (grifei) Esse comentário final revela que uma desigualdade intensa e crescente não só causa preocupação com a fome, a doença, o desemprego…, mas contém uma dimensão capaz de subverter o próprio convívio social. A observação de Orwell ocorreu na época em que os totalitarismos se apresentavam vigorosos e seus líderes eram aclamados como “redentores”. Dispensável lembrar o seu final. Para prevê-lo, bastaria considerar a evidência de que seres humanos “redentores” não existem. Eles se travestem de “salvadores” para sabotar a vida social e erodir a democracia. É vão esperar soluções mágicas de um “demiurgo”. Sabedoria prática e virtude cívica constituem, em vez disso, as credenciais almejáveis num líder íntegro.
A filósofa Myriam R. d’Allones (6), em artigo sobre o século XX, expõe a lúcida observação de que nós estamos [no século XXI], aparentemente, muito além dos grandes debates ideológicos e políticos que estruturaram a oposição entre democracia e totalitarismos. Mas podemos, no entanto, constatar que, ao paroxismo de violência ideológica que caracterizou o século XX, não se sucedeu o reinado de um mundo sereno e pacificado. A autora remata seu artigo lembrando a sempre atual formulação premonitória de Hannah Arendt, que abona considerações acima abordadas: “as soluções totalitárias podem muito bem sobreviver à queda dos regimes totalitários sob a forma de fortes tentações, que surgirão cada vez que pareça impossível aliviar a miséria política, social e econômica de uma maneira que seja digna do homem.” (grifei)
Em suma: considerando as peculiaridades da época presente, que conduzem a caracterizá-la como “atípica”, inclusive por se encontrarem subitamente agravados problemas que já vinham sendo enfrentados, impõe-se que lições emanadas destes tempos de pandemia não sejam esquecidas ou ignoradas. A compreensão – revelada em movimentos de solidariedade nos momentos de crise – , de que estamos todos juntos, de nossa dependência recíproca, da importância das profissões em geral, da desumanidade de um desnível socioeconômico em ascensão, deve permanecer como diretriz de vida, inspirando o modo de conceber o bem comum e o comportamento dos indivíduos e das instituições. Tal atitude conduz a uma busca constante de afirmação da dignidade humana e constitui uma verdadeira salvaguarda dos valores democráticos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(1) Boaventura de Souza Santos – Poderá o Direito ser emancipatório? –
Revista Crítica de Ciências Sociais – Coimbra, maio 2003
(2) Michael Sandel – A tirania do mérito – Ed. Civilização Brasileira – Rio de Janeiro, 2020
(3) Paulo Baptista Caruso Mac Donald – Propriedade e direitos humanos: os limites do individualismo possessivo – Revista da Ajuris, nº 101
(4) Fiódor Dostoiévski – Contos Reunidos – apud Fátima Bianchi – Apresentação – Ed. 34 – São Paulo, 2017
(5) George Orwell – Sobre a verdade – Companhia das Letras – São Paulo, 2020
(6) Myriam Revault d’Allonnes – Le XXe siècle ou la critique de la démocratie – Le Point – Paris, set./out. 2008