Eleições e Capitalismo de Vigilância
para IARGS
Às vésperas das eleições municipais, necessário trazer dados sobre o contexto no qual elas ocorrerão, sendo este o principal objetivo do presente artigo, qual seja: colocar em evidência a importância do capital nas eleições. Não há dúvidas que numa sociedade capitalista o exercício do poder político está embasado no poder econômico, de maneira que, para além de incentivar a consciência do voto, é dever das Instituições, da academia e de entidades, como o Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul – IARGS, igualmente buscar expor os mecanismos que engendram esse sistema, reflexão que se pretende de forma sintética ora provocar.
No último pleito envolvendo a escolha de parlamentares e governante para o Município de Porto Alegre, a soma dos votos nulos, brancos e das abstenções somaram 433.751 votos superando o total de votos do candidato mais votado, que recebeu 402.165 (http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/eleicoes/2016/noticia/2016/10/abstencoes-nulos-e-brancos-superam-votos-de-marchezan-em-porto-alegre.html, acesso em 1º/11/2020) o que ocorreu não apenas na Capital do Estado do Rio Grande do Sul, mas também, exemplificativamente, em São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Belém, Belo Horizonte, Aracaju, o que revela, dentre outras questões passíveis de apontamento, a crise que a democracia representativa está a enfrentar.
Há vários fatores que contribuíram para esse distanciamento dos eleitores tanto do próprio pleito, quanto, posteriormente, dos representantes eleitos e do mandato popular que desempenham. Dentre eles, sem dúvida, é possível elencar a falta de confiança nos partidos políticos e igualmente nos próprios candidatos, tanto que as doações às campanhas eleitorais por pessoas físicas, ao contrário de outros sistemas político-eleitorais, de regra, no Brasil, têm baixa importância no montante total de doações. Racionalmente o termo é falta de confiança. Popularmente identifica-se que grande parte do eleitorado consciente se sente “traído” pelos políticos, especialmente a cada novo escândalo que releva as engrenagens venais do sistema político brasileiro. Exceção a esse sentimento, identifica-se no eleitorado que elege governos populistas, que pautam suas ações, mesmo concluído o período do sufrágio, para a maioria que os elegeu, o que igualmente não aprimora o funcionamento da democracia e mais gera um sentimento de intolerância à pluralidade em oposição aos desejáveis consenso e coesão social almejados.
Nesse cenário de desconfiança, que corrói nossa democracia, na medida em que ela deveria estar embasada exatamente na confiança nas instituições democráticas, paulatinamente o perfil do financiamento das campanhas eleitorais desde as eleições de 1994 até a de 2014, conforme exposto detalhadamente por Bruno Carazza, in “Dinheiro, eleições e poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”, Companhia das Letras, 2018, restou alicerçado, ao longo dos últimos anos, no doador pessoa jurídica, sendo que, nas eleições de 2014, 450 pessoas jurídicas doaram acima de R$ 1.000.000,00, de maneira que 60% do financiamento de campanhas eleitorais, naquele ano, restou concentrado nestas pessoas jurídicas e em 33 pessoas físicas, ou seja, 483 agentes tiveram papel fundamental no processo eleitoral num país de 147.918.483 de eleitores (https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Agosto/brasil-tem-147-9-milhoes-de-eleitores-aptos-a-votar-nas-eleicoes-2020, acesso em 02/11/2020).
Assim, considerando que o financiamento de campanha revela um compromisso de futuro dos representantes populares eleitos, o que é demonstrado enfaticamente a cada nova investigação sobre desvio de recursos públicos, fecha-se um círculo vicioso que, repetidas vezes, implica em desvio da finalidade dos mandatos do público para o privado. Situação, por sua vez, que contribui decisivamente para a cada vez maior concentração de renda em nosso País e para a imensa desigualdade social, que traz outra série de consequências perversas, dentre elas, os altos índices de violência, evasão escolar, dentre outros efeitos nocivos à cidadania no Brasil.
Daí que, desde as últimas eleições municipais, a partir de Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil, e diante da inação do Congresso Nacional no tema, o Supremo Tribunal Federal vedou o financiamento empresarial às campanhas eleitorais, com o objetivo de garantir maior equidade na disputa eleitoral, a fim de salvaguardar a nossa democracia de uma possível transformação em uma verdadeira plutocracia.
Todavia, importante mencionar que a ação foi julgada parcialmente procedente, não tendo sido acolhido o pedido relativo à fixação de parâmetros isonômicos de doações de pessoas físicas, mantendo-se igualmente regra elástica para o autofinanciamento, de maneira que o poder econômico, sob novas roupagens, segue interferindo excessivamente no resultado eleitoral. Nesse sentido, em 2016, o Prefeito de São Paulo foi eleito investindo 4,4 milhões de sua fortuna pessoal na campanha, o mesmo ocorrendo com o Prefeito de Betim, que desembolsou 4,5 milhões.
Além disso, em que pese de difícil quantificação por razões óbvias, aponta-se que a vedação ao financiamento empresarial às campanhas eleitorais teria aumentado a utilização do “Caixa 2”, bem como de pessoas físicas “laranjas”, cujos números de inscrição no CPF são utilizados nas prestações de contas de campanha, sem falar na elevação do financiamento público, o que, num País de miseráveis, traz não só o custo da despesa pública em si, mas também um custo social indireto da escolha por esse gasto em detrimento de outros igualmente relevantes.
Entretanto, mais do que todos esses fatores identificados, as eleições não só no País, mas nas democracias ocidentais em especial, têm sofrido os efeitos da tecnologia em nossa liberdade de opções inclusive eleitorais. As inovações tecnológicas, embora sinônimo de modernidade, eficiência e adaptação aos novos tempos, acabaram saindo do espaço libertário do Vale do Silício, e chegaram ao campo de dominação do poder econômico e do poder político, num espaço de muitas dificuldades de regulação seja do poder estatal, seja do próprio mercado. O recurso mais valioso do mundo hoje não é o petróleo, são nossos dados (https://www.economist.com/leaders/2017/05/06/the-worlds-most-valuable-resource-is-no-longer-oil-but-data, acesso em 1º/11/2020). A afirmação tanto é verdadeira quanto para comprová-la é suficiente verificar quais são as marcas mais valiosas no mundo: Apple, Google, Microsoft, Amazon e Facebook (https://www.forbes.com.br/listas/2020/07/as-marcas-mais-valiosas-do-mundo-em-2020, acesso em 1º/11/2020). Diante desse cenário, Shoshana Zuboff, dedicou-se a identificar e definir o que denominou de capitalismo de vigilância, existente há mais de vinte anos, segundo a autora, na obra “The Age of Surveillance Capitalism – The fight for the human future at the new frontier of power”, sendo sua matéria-prima os dados comportamentais extraídos, grande parte de maneira gratuita, de nossas relações conectadas, seja por meio das redes sociais, sites de buscas, de compras, seja por meio de equipamentos de uso doméstico, carros, roupas e acessórios pessoais inteligentes, aplicativos de celulares, etc, todos os quais, por meio do que se denomina de machine learning, são capazes de predizer nosso comportamento. Desse modo, nossos dados adquirem valor e passam a ser negociados num grande mercado de futuros comportamentais. Sem dúvida, o capitalismo de vigilância e a influência desse poder econômico na autonomia humana e, por conseguinte, nas democracias liberais pode ser considerado um desafio sem precedentes, por sua dimensão, para nossa sociedade.
É interessante termos consciência de que ao consumirmos produtos on-line ao mesmo tempo em que estamos consumindo um produto, estamos sendo consumidos, isto é, estamos dando informações sobre nossos gostos, o melhor horário para vendas, por exemplo, o que definirá, futuramente, quais produtos aparecerão preferencialmente nas nossas buscas nas redes e na nossa linha de notícias nas redes sociais, o que, por sua vez, terá impacto sobre nossas escolhas, tirando-nos a própria liberdade de fazê-las sem interferências diretas do próprio mercado. Esse é o grande desafio a ser enfrentado não só pela sociedade brasileira, mas pela humanidade. Teremos como proteger nossas escolhas, nossa liberdade política, nossa democracia, desse poder? Entre o Cyber Dream e o Cyber Leviathan nos cabe encontrar mecanismos para proteção dos regimes democráticos. Nesse sentido, o esforço deste artigo, isto é, de ser necessária uma ação emergencial, iniciada em nosso País pela própria legislação envolvendo o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados, para limitar o avanço que os gigantes tecnológicos viabilizam sobre nossas democracias, já identificado em vários países.