Crianças e adolescentes no espaço cibernético: o desafio da proteção diante das disposições da Lei 15.211/2025
para IARGS
De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), uma a cada três pessoas com acesso à Internet no mundo é uma criança. Em tempos em que os limites entre a vida online e a vida no espaço físico são cada vez mais imbricadas, não é possível abordar a realidade da infância sem considerar os direitos das crianças e dos adolescentes no ambiente digital.
Em meio ao contexto de aprovação da nova Lei 15.211, em 17 de setembro último, que dispõe sobre a proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais (Estatuto Digital da Criança e do Adolescente), este breve ensaio busca traçar um panorama geral sobre o contexto da vulnerabilidade contemporânea deste público no espaço cibernético. Ao mesmo tempo em que a internet é um espaço de comunicação e interação para as gerações de crianças e adolescentes de hoje, é também onde se reproduzem as violências e riscos que existem no mundo externo, ou da sociedade real.
Aliás, o avanço das tecnologias e a convivência no espaço virtual tem demandado do Direito – em várias de suas especialidades – a solução de muitos problemas, os quais só podem ser resolvidos retomando-se os fundamentos da regulação, dos limites entre Estado e direitos individuais, entre vida privada e vida em sociedade. Na área da infância não é diferente: torna-se premente o debate jurídico sobre como é possível garantir que sejam observados os princípios da Convenção o dos Direitos da Criança e do Adolescente – 1989, como a doutrina da Proteção Integral, o princípio do interesse superior e da autonomia progressiva, no espaço cibernético. Dá mesma forma, é preciso orientar sobre a aplicação no espaço digital dos preceitos constitucionais pátrios que reproduziram as mesmas diretrizes normativas.
Desde a Constituição Cidadã de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, paulatinamente o Brasil passou a superar as contradições do “menorismo” em favor da Doutrina da Proteção Integral, que é a base valorativa que fundamenta os direitos da infância e da juventude. A partir daí, reconheceu-se a condição especial das pessoas dos 0 aos 18 anos, que devem ser respeitadas enquanto sujeitos de direitos em desenvolvimento, necessitando de proteção e garantia por parte dos adultos, o que se materializa em deveres do Estado, família e sociedade. Trata-se, assim, da responsabilização pelo cuidado e garantia do exercício da cidadania e dignidade.
Ou seja, crianças e adolescentes são reconhecidos como sujeitos de direito em condição peculiar de desenvolvimento, a partir da adoção do paradigma da Doutrina da Proteção Integral. A Convenção Internacional sobre Direitos da Criança de 1989 inaugura este modelo de tratamento normativo e político em relação à infância e à juventude – a partir de uma perspectiva de participação, reconhecendo-se o direito do adolescente formar opiniões e expressá-las de acordo com seu progressivo amadurecimentos.
Em busca da efetivação de tais princípios no contexto virtual, o Comitê dos Direitos da Criança e do Adolescente das Nações Unidas ONU editou uma recomendação, de especial interesse dos países da América Latina, considerando a vulnerabilidade social da Região – Orientação Geral nº 25 da ONU.
O documento aborda a necessidade de proteger os direitos das crianças no ambiente digital. Recomenda a superação da exclusão digital para garantir o acesso igualitário a tecnologias e informações seguras, a proteção contra discriminação e ódio online, o respeito à privacidade e o acesso a conteúdo adequado à idade. O Comitê enfatiza que o ambiente digital pode ser muito produtivo para crianças, mas também apresenta riscos, exigindo ações de governos, empresas e educadores para sua utilização segura e equitativa.
Destaca, especialmente, a dificuldade de equilibrar a proteção online com o direito de participação e expressão. De outra parte, reconhece os riscos quanto à garantia de privacidade, bem como da proteção dos dados pessoais das crianças e de seus familiares. Destaca os riscos da violência que vitimiza crianças e adolescentes na sociedade, com ênfase na reprodução de preconceitos e discriminações. Neste particular, sabe-se o quanto crianças e adolescentes estão expostos a grupos de ódio contra mulheres, pessoas negras, estrangeiras, entre outros. Grupos que são, muitas vezes, espaço de acolhimento para adolescentes que no contexto de suas famílias e escolas não se sentem pertencendo. Problemas, portanto, que são das sociedades e de como crianças e, especialmente, adolescentes, não tratados no espaço social.
Diante dos avanços tecnológicos em velocidade, como é o caso da inteligência artificial, o desafio regulatório é de grande envergadura. Não apenas porque se faz necessário contar com a participação das próprias crianças e adolescentes, mas também porque há limites de regulação interna aos países, quando o espaço cibernético é transnacional.
Nesse contexto, o Brasil foi um dos países pioneiros a normatizar o espaço digital com o intuito de proteção da infância. A nova Lei traz avanços importantes e, na prática, estende ao ambiente virtual os princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), criando obrigações legais para plataformas, apps, provedores e responsáveis, com foco na proteção integral em ambientes digitais.
Trata-se de uma Lei com certa complexidade, pois regula temas novos e suas relações com diferentes ramos do Direito. Aborda a obrigação das plataformas digitais de adaptar sistemas de verificação de idade, moderação automática e filtros seguros, o que deve demandar investimentos altos e inovações contínuas. Por outro lado, propõe o engajamento de pais, educadores e sociedade civil, com ferramentas de controle que dependem de uso e acompanhamento responsável.
Trabalha sobre o tema da segurança e privacidade, pois plataformas acessíveis a crianças e adolescentes deverão operar com configurações protetivas como padrão, limitando coleta de dados, restrições de rastreamento e evitando práticas que comprometam a privacidade.
Em outra dimensão, conta com forte foco no consumo e na publicidade, na proibição do monitoramento de comportamentos, uso subjetivo das crianças e adolescentes e monetização dos seus acessos para a venda de produtos, especialmente aqueles inadequados. Técnicas de análise emocional ou impulsionamento de anúncios para menores são vedadas e ferramentas obrigatórias permitirão limitar tempo de uso, controlar compras e monitorar conteúdos acessados.
Para casos mais graves, estabelece a possibilidade de bloqueio de conteúdos ilegais ou impróprios, como os que envolvam pornografia, violência extrema, exploração sexual, discurso de ódio ou assédio, ou que possam incentivar suicídio, os quais deverão ser barrados desde de seu aparecimento nas redes. Neste sentido, determina a remoção imediata, sem necessidade de ordem judicial, desde que haja notificação por vítimas, seus representantes, o Ministério Público ou entidades de defesa.
Responsabiliza em grande medida as empresas e plataformas digitais, que terão que ter representantes legais no Brasil e estarão sujeitas a sanções e multas em caso de descumprimento do que estabelece a Lei, naquilo que lhes cabe.
Certo é que se trata de uma Lei que propõe uma mudança cultural no uso do espaço cibernético por crianças, adolescentes e seus responsáveis, exigindo bastante envolvimento da sociedade, das instituições em geral e do Estado. Tanto que propõe a criação de uma agencia reguladora própria, responsável pela fiscalização e monitoramento do cumprimento da Lei e dos fluxões entre as instituições já atuantes na proteção da infância.
Cedo ou tarde, o país assume o protagonismo neste tema tão importante. No entanto, prossegue o desafio de que o Direito e o Estado acompanhem avanços tecnológicos. A cada avanço regulatório, novos espaços de violação podem ser criados e novas formas de violência podem vir a ser operadas. O espaço cibernético é apenas “um espaço”, no qual as contradições da sociedade contemporânea estão expostas.
Ana Paula Motta Costa
Associada do IARGS e Diretora da Faculdade de Direito da UFRGS
