17/06/2024 07h00 - Atualizado 17/06/2024 09h09

Vulnerabilidade da criança em face da enchente 2024

Por Terezinha
para IARGS

Em razão do difícil momento que estamos vivenciando, entendemos importante propor uma reflexão sobre a vulnerabilidade da criança em situações como a ora experimentada à luz dos direitos fundamentais do art. 227 da CF/88.

Começo com breve retrospectiva do lugar ocupado pela infância na sociedade brasileira com o intuito de demonstrar a vulnerabilidade da criança frente ao mundo adulto. Ao longo da história legislativa, a criança sempre esteve à margem da proteção.

Durante muito tempo, foi vista como objeto a serviço dos interesses dos adultos, exposta a inúmeras formas de violência, na época, vistas como condutas lícitas e autorizadas pelo ordenamento jurídico.

O seu reconhecimento como sujeito de direitos decorre de um longo processo que se iniciou, em nível internacional, com a Declaração de Genebra, em 1924, ao afirmar a necessidade de proclamar à criança uma proteção especial.

Posteriormente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, proclamou o direito a cuidados e à assistência especial à infância, seguida da Declaração dos Direitos da Criança, em 1959, até chegarmos à Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, com força cogente para os países firmatários, onde se inclui o Brasil.

A Convenção, embora tenha sido aprovada, por unanimidade, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em data posterior à CF/88, embasou, em grande parte, a redação do art. 227. Paralelamente, ao tempo da constituinte, o Brasil enfrentava um número grande de crianças vivendo nas ruas, desprovidas de qualquer política pública que lhes assegurasse, alimentação, saúde e educação, em face da falência do 2º Código de Menores de 1979.

O clamor das crianças, manifestado através da sociedade civil organizada, especialmente, pelo Movimento dos Meninos e Meninas de Rua, encontrou resposta no documento, já redigido, mas pendente de aprovação pela Assembleia-Geral da ONU, que, logo a seguir, veio a se constituir em um dos mais importantes da normativa internacional, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, ao regulamentar o art. 227, apresentou, pela primeira vez na história legislativa, um plano para a infância brasileira, garantindo uma gama de direitos a esta parcela da sociedade.

Ao vivenciarmos situações de extrema adversidade, como ocorreu com a COVID e, neste momento, com a fúria das águas, faz-se necessária atenção redobrada a fim de não retrocedermos, buscando, em qualquer situação, por maiores que sejam as dificuldades, a garantia dos direitos fundamentais a esta parcela da população, eleita, pelo comando constitucional, como prioridade absoluta.

 

O Relatório da 27ª Conferência ONU sobre Mudanças Climáticas (COP 27, Egito, nov. 2022) aponta que “as pressões climáticas de desastres ambientais tendem a agravar situações de crianças e adolescentes que vivem em contextos de vulnerabilidade social e negligência, podendo levar à ruptura dos vínculos protetivos e à violação de seus direitos” (Egito, nov. 2022).

Entre os direitos fundamentais arrolados no art. 227 da CF, determinadas situações merecem atenção e união de esforços para minimizar os possíveis danos. Nos últimos dias, muitas crianças foram, ainda que temporariamente, afastadas do direito à convivência familiar no momento de serem resgatadas. Grupos de irmãos, por vezes, foram separados, encaminhados para acolhimentos diversos.

Crianças com autismo e outras formas de deficiência, muitas vezes inseridos em ambientes coletivos, sem atendimento especializado, assim como a incidência de bullying, causando danos emocionais às vítimas.

Além do afastamento de familiares, muitas crianças ficaram sem sua Certidão de Nascimento, documento indispensável para o controle das vacinas e matrícula na escola. Iniciativas, por parte do Poder Judiciário para facilitar a obtenção de segunda via, merecem registro e reconhecimento.

Quanto ao direito à educação, a situação exige maior atenção a curto, médio e longo prazos. Elevação dos índices de evasão escolar, prejuízos no processo de aprendizagem, são dificuldades que já se anunciam e que não serão fáceis de superar, como nos ensinou a Pandemia da COVID.

A paralisação das escolas, importante local de proteção da criança, especialmente para os mais vulneráveis, eleva a probabilidade de violência e maus-tratos. Vale mencionar aqui, o Caso do Menino Miguel, do litoral gaúcho, cujas autoras foram recentemente submetidas à julgamento pelo Tribunal do Júri de Tramandai. Com a pandemia e o afastamento da escola, a violência intrafamiliar encontrou terreno fértil para as terríveis cenas de tortura a que foi submetido o Menino Miguel.

Quando a família falha, a escola passa a ser uma das possibilidades disponíveis para fortalecer a proteção. Sabedor disto, o legislador de 1990, estabeleceu, no art. 56, inciso I, o dever de os profissionais da educação comunicarem ao Conselho Tutelar os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos vivenciados por seus alunos. O descumprimento do mencionado dispositivo legal gera a infração administrativa, que exige procedimento judicial, prevista no art. 245 do ECA.

No campo da violência, situações estressantes costumam constituir gatilho para diversas práticas, tanto de violência física, emocional, sexual e até de violência fatal em casos extremos, como a história recente tem nos mostrado. Mesmo antes da enchente que assola nosso estado, já tínhamos altos índices de violação de direitos à infância.

Dados do SINAN, Sistema de Informação de Agravos de Notificação, responsável por registrar, pelos profissionais de saúde e outros, de forma compulsória, ocorrências de saúde envolvendo crianças e adolescentes, no período de 2020 e 2023, recebeu 444.906 notificações de violência contra criança e, ainda, no mesmo período, dados do DISQUE 100 da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, sinaliza que, 9 a cada 10 vítimas sofreu violência em mais de uma oportunidade, sendo que, em 84% dos casos, o agressor era alguém da família[1].

Crianças vivendo em aglomerações, nem sempre em boas condições, como ocorreu no primeiro momento em que as pessoas precisaram ser retiradas de casa, aliado ao elevado estresse, à perversão de algumas pessoas, são fatores favorecem a ocorrência de diversas violações de direitos, cujo espaço de maior incidência é a casa da criança, como os dados têm nos sinalizado.

A violência física, hoje vedada pela Lei 13.010/2014, mas muito impregnada na cultura de nosso país, também traz dados preocupantes. Em 2023, o DISQUE 100 registrou, em cada dois minutos, uma denúncia de violência física praticada contra uma criança, sendo que, em 90% dos casos, não se tratava do primeiro episódio. Em 42% dos casos, a vítima tinha de 0 – 6 anos, período abrangido pela primeira infância e, em 88% das ocorrências, o local da violência foi a residência da criança[2].

Observou-se, ainda, na situação atual, violações ao direito ao respeito através da exposição da imagem. A produção de filmagens de crianças acolhidas constitui afronta ao art. 17 do ECA que “assegura o direito ao respeito, consistente na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança, abrangendo a preservação da imagem, identidade, autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”.

No direito à saúde, além do alto índice de prática de violência contra a criança em nossa sociedade, cabe ainda mencionar os prejuízos decorrentes da interrupção do pré-natal de gestantes que, em face da situação atual, deixaram de buscar os profissionais da atenção primária, como prevê §1º do art. 8º do ECA, podendo colocar em risco a saúde de seus bebês.

A leitura do art. 227 da CF sinaliza a importância de nos mantermos vigilantes, família, sociedade e poder público, para evitar a ocorrência de ameaça ou violação de direitos da criança, comunicando, sempre que tomarmos conhecimento, ao sistema de Proteção, representado pelo Conselho Tutelar, bem como ao Ministério Público ou à Defensoria Pública, sempre que se fizer necessário acessar o Poder Judiciário.

Com o intuito de melhor fundamentar o que acabamos de expor, tomamos a iniciativa de buscar, com profissionais que se dedicam à proteção e ao cuidado da criança, alguns registros referentes ao momento que estamos vivendo.

Paola Babos, representante do UNICEF no Brasil, referindo-se à criança e ao adolescente, afirmou: “Eles são os menos responsáveis pelas mudanças climáticas, mas suportarão o maior fardo de seu impacto”.

Simone Martins da Silva, Coordenadora do Centro de Apoio Discente da PUCRS, pedagoga, mestre e doutora em Educação, ao registrar sua experiência de convivência e relações de cuidado humano para com crianças atingidas pelas fortes enchentes de 2024, no abrigo instalado no Parque Esportivo da PUCRS, relata:

“No meio de toda aquela conversação, um bonito encontro aconteceu entre as crianças e os recursos tecnológicos e analógicos que ali estavam. Da tela do celular, as imagens e informações foram sendo significadas naturalmente nas folhas de ofício, lápis de cores e gizes de cera que estavam no centro da mesa. Os pequeninos dedos iam abrindo caminhos para a expressão do pensamento e a elaboração de sentimentos por meio também da arte. Por alguns minutos, silêncio…Apenas rostos, quase colados às folhas e os traços de uma infância que clamava por proteção e cuidado”. Em prosseguimento,  Simone lança algumas indagações: a) a realidade vivenciada nos últimos quinze dias percorre junto o caminho para casa, sem qualquer filtro: e como será o amanhã dessas crianças (e de tantas outras pelo estado a fora) que adentrará maio, se esticará pelo mês de junho e provavelmente se estenderá por 2025, 2026? b) o que podemos fazer, sobretudo quando trabalhamos juntos (família, escolas, comunidade, universidades, rede de proteção) em prol da garantia do direito à educação às crianças e adolescentes que estão vivendo os impactos da enchente? Como usar a teoria, os conhecimentos específicos de cada área/cursos para pensar estratégias pedagógicas e estruturais para reconstruir, na prática, o que foi “perdido em educação”?

Catia Olivier Mello, psicanalista, psicóloga e Mestre em Psicologia do Desenvolvimento, membro do CEAPIA – Centro de Estudos, Atendimento e Pesquisa da Infância e Adolescência, e da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, nos alerta:

“Num contexto de calamidade como o que estamos vivendo no RGS, em 2024, os adultos que acolhem crianças desabrigadas são representantes das suas figuras estáveis e de confiança e têm muito o que fazer para evitar aumentar a sua vulnerabilidade neste momento. Isso significa manter a integridade física e a sua dignidade. Garantir que não seja abusada física, emocional ou sexualmente, assim como que não seja fotografada. Não falar diretamente na tragédia que sofreu a menos que ela a mencione é medida de respeito que busca evitar retraumatizá-la. Como alternativa, proporcionar espaços emocionalmente seguros de brincar proporciona à criança que possa se expressar conforme as suas possibilidades pessoais; neste momento é um modo de respeitar o seu direito de seguir sendo criança, mesmo na adversidade”.

Da contribuição de Vivian Peres Day, médica psiquiatra, membro da SPPA e professora supervisora e coordenadora do curso em formação em psicoterapia do CELG/HCPA, extrai-se: “a grave situação que se abateu sobre o povo gaúcho transbordou as margens dos rios, lagos e, até ruas, causando-nos grandes feridas físicas, sociais, econômicas e certamente emocionais. Nesta perspectiva real, as crianças, muito mais suscetíveis que os adultos, estão ainda mais expostas a um evento mais traumático e impactante para seu aparelho psíquico, principalmente para o que vem após este evento. Após garantidos os recursos básicos de sobrevivência, como saúde física, higiene, nutrição e a preservação de seus cuidados pelos familiares e responsáveis, sempre que possível, é importante pensar nas possíveis consequências e riscos de retraumatização que estarão sujeitas principalmente no convívio com estranhos, adultos, diferentes faixas etárias num ambiente sem privacidade nos abrigos”. Vivian prossegue: “a bússula da criança é o adulto, portanto, cuidar das mães e de outros cuidadores seria ainda mais importante que a própria abordagem da criança. Onde estão os amores da criança estará seu lar, o reforço em seus objetos internos e externos tem muito mais força do que a casa física”. Conclui indagando: “teremos condições de não largar a mão dessas famílias ao longo do tempo?”

João Rocha, responsável pelo Pão dos Pobres, que acolhe mais de 100 crianças, nosso parceiro no Grupo de Estudos da Escola de Direito da PUCRS, menciona:

“A calamidade provocada pelas enchentes no Rio Grande do Sul desvelou vários sentimentos…tristeza pelas vidas que se foram, pela destruição dos bens…pela impotência…mas também sentimentos de esperança pela solidariedade das pessoas e o desejo de superação desta situação.

“No Pão dos Pobres, ficamos num primeiro momento incrédulos, não queríamos acreditar que as águas iriam subir e inundar totalmente o Pão…mas também está sendo um grande aprendizado, pela união da equipe, pela força de vontade e o esforço coletivo, desde o momento de organizar as equipes, a evacuação do prédio e a construção de novas instalações para abrigar crianças e adolescentes.

“Para as crianças e adolescentes, afirma João, tem sido um grande desafio…tanto de uma forma simbólica como na realidade pois, antes da enchente, já eram vulneráveis e tiveram que                                            sair de suas casas e vir para o Pão como medida de proteção…e, agora, ter que sair do Pão inundado e ir para outro local…pois o Pão também está vulnerável.

“O verbo Esperançar tem sido conjugado a cada dia, a cada olhar…nas incertezas…mas também na força e união em prol do bem comum. João conclui:

“Vamos Superar”!

[1] CADÊ PARANÁ, crianças e adolescentes em dados estatísticos. Centro Marista de Defesa da Infância

[2] CADÊ PARANÁ, crianças e adolescentes em dados estatísticos. Centro Marista de Defesa da Infância

Maria Regina Fay Azambuja

Procuradora de Justiça e Professora da PUCRS

 

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