06/06/2024 07h00 - Atualizado 16/09/2024 15h07

Pequena reflexão sobre a tragédia de maio de 2024 no RS

Por Terezinha
para IARGS

No último mês (maio/2024), fomos invadidos, literalmente, pelas águas dos rios que banham o Estado do Rio Grande do Sul, Província de São Pedro. Águas essas que transbordaram, inundaram e devastaram inúmeras cidades do Estado. Com a força de um tsunami de água doce, água perversa, causando uma destruição sem precedentes.

O Rio Grande do Sul é o Estado da Federação que é dividido em três grandes bacias hidrográficas: a do Rio Uruguai, a do Guaíba e a Litorânea. A bacia hidrográfica do Lago Guaíba (ou Rio Jacuí), como chamavam os indígenas Guaranis, primeiros habitantes da região), tem uma área de aproximadamente 496 km² quadrados. Entretanto, segundo um artigo de Engenharia Ambiental elaborado por professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a região hidrográfica, ou seja, área composta pelas diversas ramificações das bacias, corresponde a 30% do território estadual e abrange 251 municípios, inseridos total ou parcialmente1.

Nesse panorama, as enchentes de maio/2024 são um marco divisor na história das inundações (maior do que a de 1941) e mesmo do Brasil, talvez do mundo, por conta da extensão dos danos causados. Cidades inteiras foram devastadas, milhares de desabrigados, mortos, desaparecidos. Ruas, praças, casas invadidas. Destruídas.

Durante esses dias, a população (sociedade civil), o Governo Federal, Estadual e Municipal se revezaram e se ajudaram mutuamente. Obviamente, em casos tais nada é suficiente. Tudo é pouco. Ainda é. Vivemos a inundação. Mas e depois?

Passada a “adrenalina” do momento do salvamento, surge o questionamento: como pode isso acontecer? Quem são os culpados? Quem são os responsáveis por isso? Porque essa pergunta inexoravelmente vem. Obviamente, não é uma resposta simples, em nenhum aspecto.

Eu, como Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul, trabalhei continuamente, e sempre que possível, no sentido de afastar ou minimizar eventual condenação judicial por indenização ao Estado. Não é tarefa fácil, já que corriqueiro se tentar responsabilizar o Estado pelos atos e omissões de seus agentes. Todavia, é preciso sempre relembrar que esse Ente Público, o “Estado”, nada mais é do que todos nós, diante do contrato social que fizemos ao viver em sociedade. Esse contrato é, basicamente, um pacto por meio do qual os cidadãos abrem mão de seus direitos individuais e consentem com o poder de uma autoridade – ente político – na qual depositam confiança (Jean Jacques Rousseau, Do Contrato Social)2. A ideia não é nova, e influenciou diretamente a Revolução Francesa e a história da humanidade.

Desse modo, ao fim e ao cabo, essa “indenização”, essa conta chega para nós, os contribuintes, normalmente e simplicissimamente através dos impostos. Como já se disse no passado: “There’s no such thing as a free lunch”. Ou seja, “não há almoço grátis”, frase citada por Milton Friedman (1912-2006), economista e escritor norte-americano em um dos seus livros e que expressa que tudo que nos é oferecido tem um preço a ser pago por alguém3.

Destarte, a questão não é simples. Não nesse caso. E aqui é preciso sair da velha “caixa” e olharmos esse fato social e trágico em todos os seus aspectos e as futuras consequências dele. É preciso uma múltipla análise: social, econômica e jurídica. Eu acrescentaria, até emocional. Só assim há contribuição possível, dada a magnitude das enchentes, de proporções inimagináveis.

Em casos tais, na investigação do fato, por exemplo, é preciso analisar quanto à área degradada, a topografia do lugar, ou seja, localidades mais baixas, com grandes possibilidades de alagamentos e acúmulo de água. Áreas com habitação irregular, ou não permitida, exatamente em face dos riscos lá existentes. Importante também verificar se há alta concentração urbana e industrial, como nas regiões metropolitanas, em que o valor do metro quadrado é mais acessível exatamente por estar em localização mais plana e “menos nobre”, possivelmente mais suscetível à degradação por água ou outras questões, como a possibilidade de aterramentos não permitidos. Quanto aos instrumentos de proteção de enchentes, não se pode esquecer décadas de sucateamento de maquinário, bombas, barreiras de contenção, diques. Destaque importante é a verificação da situação dos esgotos e escoamento de águas fluviais em decorrência de grandes precipitações de chuva.

Não se pode esquecer, forma igual, problemas ambientais, desmatamentos, descongelamento de geleiras, crise climática mundial, poluição de toda espécie. Tirar questões ambientais da “conta” seria desconsiderar a nova realidade mundial.

Questão de relevo também é a utilização de contratos de seguro, com cobertura ou não para tais fatos. Nesse último aspecto, ressalta-se que, segundo a Folha de São Paulo (folha.com)4, a Confederação Nacional das Seguradoras informou que os sinistros já acionados no Rio Grande do Sul, em decorrência das enchentes de maio somaram um impacto estimado em 1,673 bilhões. O valor, porém, ainda é incerto. Matéria semelhante está igualmente reportada na revista digital “Infomoney”5, de 24/05/24, salientando que as enchentes ocorridas no Rio Grande do Sul são uma das maiores catástrofes climáticas já acontecidas no Brasil.

A par disso, como se sabe, infelizmente, o Estado, modo geral, é deficitário. Normalmente, e por questões talvez que remontam o descobrimento do Brasil, os gestores trabalham com contenção de despesas, pois sempre se teve um “cobertor curto”, para um frio que castiga demasiadamente. Nada de novo no mundo, inclusive.

No entanto, sob o enfoque jurídico, na seara da responsabilização pelos danos causados pelas enchentes, é impossível esquecer, em primeiríssimo lugar, o disposto no Artigo 21, XVIII da CF/88, verbis:

“Art. 21. Compete à União:

(…)

XVIII – planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações;”6

Tal “orientação fundante” é de extrema relevância para toda a apreciação jurídica da questão e a partir da qual, outras se desdobram. As normas gerais postas na Lei Fundamental exercem um papel relevantíssimo, pois são os fundamentos para todas as demais, indicando os rumos e os caminhos que todas as demais devem seguir.

Considerando que vivemos em um ambiente social, os indivíduos tendem a ter um núcleo consciente de valores básicos, advindos de viver no mesmo território e no mesmo tempo histórico. Dentro desse quadro há uma hierarquia de valores e competências, que pela sua gravidade, intensidade e extensão, e em nome da racionalidade, segurança, bem comum, devem restar a cargo da União Federal.

Nesses casos, em eventos de extrema gravidade se justifica que assim seja pois a União Federal, composta por todos os Estados, tem maior capacidade econômica e logística para atuar. É a União, portanto, que tem o dever de planejar e promover a defesa permanente contra calamidades públicas, especialmente as secas e inundações – art. 21, inciso XVIII, da CF.

Logicamente, nada que está posto no texto Constitucional é sem fundamento ou coerência. Basicamente a Constituição Federal é composta por regras, mandamentos e ‘signos’ que servem para organização da sociedade, já que a linguagem é a expressão do pensamento. Isso não é novo. É fruto da interpretação Semiótica (Charles S Peirce 1839-1914)7. Cada artigo vem embutido de valores e princípios. São comandos especialmente eleitos com determinada função e propósito.

E aqui, especificamente nessa regra da nossa Constituição Federal, não há “ruido”, ambiguidade ou vaguidade. A regra é clara. A partir daí se desencadeia uma teia complexa de responsabilidades, contratuais ou não, que devem ser aferidas caso a caso, com rigoroso estudo e de acordo com as competências assumidas.

Por fim, importante pontuar que em situações como a das enchentes de maio de 2024 no Rio Grande do Sul, toda e qualquer responsabilização deve ser apurada levando-se em consideração não apenas o cenário jurídico, contratual, mas a complexa situação da Bacia Hidrográfica do Estado, e mesmo, o volume e a intensidade sobrenatural das chuvas, e a capacidade normal de contensão desses eventos. Todo o evento sobrenatural, ou de grandes proporções tem que ser analisado de forma criteriosa. Ou seja, minimamente: A consequência está dentro do esperado? Havia meios eficientes para conter esse desastre natural? Esses meios eficientes seriam suficientes? Ultrapassada essas premissas, quem poderia ter atuado e não atuou? Por quanto tempo?

Muitas questões surgirão. Muitas serão as consequências dessa devastadora inundação, de toda ordem. Ainda é prematuro apontar qualquer caminho como definitivo, ao meu sentir. E aqui, para concluir, e retornando então à Jean Jacques Rousseau, que assertivamente afirmava que “O Homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe”, talvez possamos contra argumentá-lo apenas com um dado social recente dessa catástrofe, catalogado em mídias digitais ou não, ao constatar que a população, voluntários de todas as áreas, a sociedade civil como um todo, em conjunto com as autoridades Federais, Estaduais e Municipais, e outros Estados da Federação, com um espírito de solidariedade genuíno, promoveram uma grande onda de empatia, nunca antes vista. E essa, para mim, é uma grande revolução, Rousseau.

E é o que consola.

Olga Orlandini Cavalcante

Associada do IARGS, Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul, com atuação nas Procuradorias Regionais de Uruguaiana/RS, Erechim/RS, Caxias do Sul/RS e Gravataí/RS; Pós-Graduada em Direito Tributário. Atua na Procuradoria de Passivos Judiciais

Fonte bibliográfica:

  1. https://www.scielo.br/j/esa/a/8fQdYrLS3wCKtRdcY4D8Ztz/?lang=pt
  2. “O Contrato Social” – Jean-Jacques Rosseou, 1762.
  3. “There’s no such thing as free lunch”- Milton Friedman, 1975.

4.https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/05/tragedia-no-rs-e-o-maior-sinistro-enfrentado-pelas-seguradoras-no-brasil-diz-setor.shtml

5.https://www.infomoney.com.br/mercados/tragedia-rio-grande-do-sul-como-as-seguradoras-da-b3-estao-lidando-com-o-maior-sinistro-historia-setor/

6.Constituição brasileira de 1988.

“Interpretação Semiótica” -Charles S Peirce, 1999.

Olga Aline Orlandini Cavalcante

Associada do IARGS, Procuradora do RS, com atuação nas Procuradorias Regionais de Uruguaiana, Erechim, Caxias do Sul e Gravataí; Procuradoria do Domínio Público; Procuradoria Fiscal – Equipe Recursos e Contencioso Fiscal; Procuradoria Trabalhista; Procuradoria de Precatórios e RPVS; Procuradoria de Liquidação e Execução; e atualmente na Procuradoria de Passivos Judiciais. Pós-Graduada em Direito Tributário

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