27/05/2024 07h00 - Atualizado 23/05/2024 15h59

Meio ambiente, razão de ser

Por Terezinha
para IARGS

A tragédia foi anunciada. As mudanças climáticas estão em curso já faz tempo. Com consequências diferentes pelo mundo, a emissão de gases desregulou o delicado equilíbrio do efeito estufa e provocou mudanças climáticas severas (FLANNERY, 2007, p. 41). O Brasil é especialmente sensível a efeitos negativos desse processo, pois apresenta grande diversidade natural e tem na agricultura e na pecuária boa parte de sua economia. Seca na Região Norte e excesso de chuva do Sul são representativos da diversidade das consequências desse processo de desregulação climática.

A profusão de normas de tutela do meio ambiente somada aos aparatos de Estado destinados a proteção ambiental não são mais suficientes frente às demandas atuais e futuras que se apresentam. A tragédia climática no Rio Grande do Sul revelou a fragilidade da sociedade frente aos efeitos das mudanças climáticas e reforçou a necessidade de lidar com uma nova realidade já antecipada pela ciência. Uma nova atitude da sociedade em relação ao meio ambiente se impõe como condição de existência e não mais apenas como escolha.

James Lovelock foi o criador da importantíssima “hipótese de Gaia”, uma teoria integrativa entre todos os elementos que compõem a Terra, não apenas os vivos, como também os inanimados. Essa relação essencial entre todos os elementos do planeta demonstra que o meio ambiente é um grande sistema interdependente que não pode ser adequadamente compreendido fracionado em partes. Uma abordagem sistêmica é cada vez mais necessária, um reconhecimento genuíno de que o meio ambiente é a razão de ser e não objeto.

Fiódor Dostoiévski em sua obra “Os Irmãos Karamázovi”, nos legou uma interessante metáfora da relação paradoxal da humanidade com o meio ambiente. O autor narra a passagem do Grande Inquisidor, a qual se dá em Sevilha no século XVI, no contexto de Inquisição. Dostoiévski relata a ação do Inquisidor, o qual tinha como função identificar e levar à fogueira os inimigos da cristandade.

Na obra, o Inquisidor testemunha a ressurreição de uma menina, fato extraordinário que causou grande comoção. O milagre levou à prisão o homem que o produziu, sendo ele levado ao edifício do Santo Ofício para interrogatório pelo Inquisidor que não lhe dá oportunidade de falar, pois tem muito a dizer sobre seu retorno naquelas circunstâncias paradoxalmente heréticas; “Não digas nada, cala-te. Aliás, que poderias dizer? Sei demais. Não tens o direito de acrescentar uma palavra mais do que já disseste outrora. Por que vistes estorvar-nos? Porque tu nos estorvas, bem o sabes.” (DOSTOIÉVSKI, 1971, p. 187)

O Inquisidor prossegue sua diatribe acusatória contra o homem que sabia tratar-se do próprio Jesus Cristo que retornou depois de quinze séculos e passou a ser vítima da censura do Inquisidor, que o reconhece como Cristo ressuscitado, mas o considera inoportuno a ponto de ser um estorvo dispensável: “Mas sabes o que acontecerá amanhã? Ignoro que tu és e não quero sabê-lo: tu ou apenas tua aparência; mas amanhã eu te condenarei e serás queimado como o pior dos heréticos.” (DOSTOIÉVSKI, 1971, p. 187)

O Grande Inquisidor afronta Cristo dizendo-lhe tudo aquilo que pensava sobre ele, como se a muito desejasse fazê-lo pessoalmente. Acredita que o filho de Deus voltou para atrapalhar os homens na sua jornada.  Jesus não cabia mais naquele contexto que se reproduzia em seu nome enquanto messias morto. Foi relegado à posição de acusado, condenado pela estrutura da Igreja e preparado para enfrentar a fogueira.

Trata-se de representação paradoxal extremamente rica e útil para o contexto ambiental a passagem de Dostoievski. O Grande Inquisidor, um idoso que dedicou a vida a perseguir os hereges se defronta com o próprio Cristo reencarnado e não aceita a sua nova presença entre os homens. O fundamento de sua existência como membro da Igreja se deve essencialmente a primeira vinda do Cristo. A razão de existir de sua Igreja era a mensagem de amor e liberdade que o Inquisidor criticou tão severamente para o próprio Cristo, o qual passou a ser dispensável naquele contexto. A sua razão de ser como importante e temido ator da sua época era justamente aquele homem que prendeu e levou para a fogueira no dia seguinte.

Ao agir assim, o Inquisidor destrói simbolicamente a sua condição de ser naquele mundo, o seu fundamento. Ele está convencido de que pode afastar o filho de Deus da humanidade utilizando-se do poder físico de queimar o homem e, mesmo assim, prosseguir com seu ofício, como se nada tivesse acontecido. O Inquisidor subestima a realidade e sua própria razão de ser, afastando um princípio essencial e fundamentador em nome de uma ordem posta, descolada de seu fundamento.

Como poderia o Inquisidor acreditar ser possível destruir justamente aquilo que o fundamenta e continuar atuando em defesa do fundamento destruído? Trata-se de um paradoxo que pode ser útil na análise da relação humana com o meio ambiente, a qual se revela igualmente paradoxal, na medida em que o fundamento da existência humana é o meio que habita e constitui como parte inseparável, não podendo ser concebidos como elementos distintos, na medida em que todos os elementos estão interconectados e interdependentes como muito bem sintetiza Capra: “Toda a matéria viva da Terra, juntamente com a atmosfera, os oceanos e o solo, forma um sistema complexo com todas as características de auto-organização.” (CAPRA, 2006, p. 278)

As trágicas consequências dos eventos climáticos extremos repercutirão por muito tempo na sociedade. Além dos efeitos negativos imediatos e emergentes da tragédia, inúmeros desafios precisam ser enfrentados para retomar a normalidade. Resiliência e adaptação são as palavras-chave nesse processo, o qual se projeta para além da reconstrução, pois a nova realidade climática exige respostas consistentes que possam dar conta de futuros eventos desse tipo, os quais, infelizmente, serão recorrentes.

A crença humana na técnica e na possibilidade de controle das situações de risco provocadas por sua ação transformadora está desacreditada. Uma nova realidade se coloca como desafio para toda a humanidade. Partindo da premissa de que somos parte integrante e inseparável do meio ambiente, necessário se faz resgatar essa condição de ser para poder evoluir, construindo caminhos adaptativos.

Referências bibliográficas

CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 2006.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Os irmãos Karamázovi. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Abril, 1971.

FLANNERY, Tim. Os senhores do clima. Tradução: Jorge Calife. Rio de Janeiro: Record, 2007.

LOVELOCK, James. A vingança de Gaia. Tradução: Ivo Korytowski. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2006.

André Rafael Weyermüller

Especialista, mestre, doutor e pós-doutor em Direito. Advogado

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