Direito do Clima e as inundações no Estado do Rio Grande do Sul
para IARGS
O Estado do Rio Grande do Sul sofreu, em abril e maio de 2024, com inundações históricas e devastadoras, que constituíram um dos piores desastres climáticos da história do Brasil. Não se trata de um evento isolado: houve três outros eventos climáticos extremos no Estado desde junho de 2023, e é preciso considerar com seriedade a possibilidade de esses desastres se repitam. Foram centenas de mortos e feridos e milhares de desalojados e desabrigados. 90% do Estado do Rio Grande do Sul – uma área equivalente à do Reino Unido – foram atingidos pela tragédia. A Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul estimou que as inundações atingiram 80% da atividade econômica do Estado, responsável por 6,6% do PIB nacional. Estudo publicado em junho pela iniciativa World Weather Attribution, vinculada ao Imperial College London, constatou que o fenômeno El Niño foi exacerbado pelas mudanças climáticas antrópicas, redundando nas precipitações causadoras do desastre.
O enfrentamento às mudanças climáticas é um dos maiores problemas coletivos da atualidade. O Ministro Luiz Edson Fachin, no julgamento da ADPF 708, disse em seu voto que “[a] questão climática é a questão de nosso tempo. É a pergunta interrogante que nos lança o destino e as respostas que nós pudermos formular decidirão qual futuro terá a humanidade – ou se haverá algum futuro. Não há outra pauta, não há outro problema, não há outra questão. A emergência climática é a antessala de todas as outras.”
Nos últimos anos, as mudanças climáticas deixaram de ser um tema de nicho, e ganharam as manchetes e a opinião pública no mundo todo. Seus efeitos afetam populações inteiras – e, desproporcionalmente, as pessoas mais vulneráveis –, o setor produtivo e a prestação de serviços públicos. Dois conceitos básicos do combate às mudanças climáticas são os de mitigação e adaptação: mitigação é o objetivo de frear o aquecimento global, e adaptação, como o nome sugere, é o garantir que a sociedade tenha condições de adaptar-se àquelas mudanças que já estão àquelas mudanças que já estão ocorrendo e que ainda ocorrerão. Esses dois objetivos precisam andar em paralelo: de um lado, reduzir as emissões de gases de efeito estufa; de outro, investir em sistemas coordenados de prevenção e resposta a desastres, para minimizar seus efeitos catastróficos. O Brasil, como presidente pro tempore do G20 – que tem, sob a presidência brasileira, o desenvolvimento sustentável como uma de suas três dimensões prioritárias – e como país-sede da COP30, que acontecerá em 2025 em Belém, precisa urgentemente focar em adaptação, resiliência e vulnerabilidade urbana.
O objetivo do Acordo de Paris, principal tratado internacional sobre o combate às mudanças climáticas, é o de limitar o aquecimento global a 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais, ou, pelo menos, bem abaixo de 2ºC. No Acordo de Paris, os países informam suas contribuições nacionalmente determinadas (Nationally Determined Contributions, ou NDC), que são definidas de acordo com a realidade local, revistas periodicamente e precisam ser progressivamente ambiciosas. Um tema fundamental nas discussões é o de financiamento climático, isto é, como reorganizar a economia para que os recursos financeiros fluam para a transição para a economia de baixo carbono, sobretudo nos países mais dependentes de combustíveis fósseis, e o de perdas e danos, que envolve a transferência de recursos a países em desenvolvimento.
O Sexto Relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC AR6) informa que, desde 1850, o planeta aqueceu em média 1,1°C, e que o aquecimento médio global deve atingir ou exceder 1,5º C nos próximos 20 anos. O relatório alerta que a população afetada por enchentes e deslizamentos pode crescer entre 100% e 200% no Brasil, em um cenário de aquecimento global de 1,5ºC. Não se trata, entretanto, apenas de enchentes e inundações: as mudanças climáticas também causam calor extremo, seca, incêndios florestais, danos à saúde física e mental, danos à agricultura e insegurança alimentar, aumento do nível do mar, perturbação de ecossistemas e impactos sobre cidades e infraestrutura. As estratégias de resposta, portanto, precisam ser coordenadas, e devem envolver não só o governo, mas também o setor produtivo e a sociedade civil. Não agir contra as mudanças climáticas custará mais caro do que agir. Por exemplo, um relatório dos Climate Change High-Level Champions da ONU estimou que o agronegócio poderá, até o fim desta década, perder 26% do valor de mercado, e sofrer um baque comparável ao do setor financeiro na crise de 2008.
A frequência e a gravidade de eventos climáticos físicos de grandes proporções obriga gestores públicos e o setor privado a repensarem suas estratégias. Riscos que antes poderiam parecer distantes vêm se materializando no presente, afetando todos os setores da sociedade. Especificamente quanto a desastres, a Lei 14.750/23 estabelece, desde dezembro de 2023, que é dever do empreendedor público ou privado, de acordo com o risco de acidente ou desastre e o dano potencial associado do empreendimento, a adoção de medidas preventivas de acidente ou desastre. A recente 14.904/24, que estabelece diretrizes para a elaboração de planos de adaptação climática nos âmbitos federal, estadual e municipal, visa a reduzir a vulnerabilidade e a exposição a riscos dos sistemas ambiental, social, econômico e de infraestrutura, com base na Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), veiculada na Lei 12.187/09. A norma determina que os planos de adaptação devem incluir a gestão de riscos climáticos nas políticas públicas existentes e nas estratégias de desenvolvimento em todos os níveis governamentais.
O Direito do Clima impõe uma releitura de outras áreas do Direito à luz dos fenômenos e das normas climáticas. De seguros à administração da Justiça, da responsabilidade civil ao acesso a crédito, apenas para citar alguns exemplos, as mudanças climáticas determinam a reinterpretação de uma vasta gama de institutos e atividades. Os arcabouços normativos de combate às mudanças climáticas e de prevenção e enfrentamento a desastres precisam dialogar, transversalmente, com outras áreas do Direito e com outros domínios do conhecimento, evitando-se, de um lado, uma abordagem de silos, e, de outro, normas e políticas públicas contraditórias.
O cenário é desafiador e corremos contra o tempo, mas, citando Ariano Suassuna, é preciso que sejamos realistas esperançosos: há muito o que fazer em muitas frentes – de políticas públicas, de regulação, de tecnologia e inovação -, e, hoje, temos um nível de consciência e de articulação sobre o problema muito maior do que décadas ou mesmo poucos anos atrás, o que aumenta nossas chances de, como sociedade, enfrentar com êxito a questão de nosso tempo.
Alessandra Lehmen
Advogada habilitada no Brasil e em Nova York, doutora pela UFRGS, mestre por Stanford, especialista em negociação por Harvard e certificada em ESG pelo CFA Institute. Diretora do Departamento de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul.