Dever de cooperar com o consumidor frente às enchentes: o princípio da manutenção do contrato e a exceção da ruína
para IARGS
É um prazer poder participar das iniciativas do IARGS sob a liderança da querida professora Sulamita Cabral, a quem homenageio por seu engajamento e competência na condução de nosso Instituto. Farei aqui um resumo de um texto já publicado.[1] O centro deste texto, como do anterior é o dever de cooperar. Cooperar é não levar o parceiro contratual à ruína, é ter atitudes cooperativas para que o parceiro em perigo de ruína, ou atingido por uma calamidade, possa pagar a dívida, atingir o bom fim do contato e evitar o seu superendividamento, ainda mais se consumidor.[2] A Lei 14.181/2021 atualizou o Código de defesa do Consumidor-CDC, incluindo este novo princípio do combate à exclusão social no Art. 4, inciso X, sendo a ‘exceção da ruína’ parte integrante do princípio da boa-fé e do dever de cooperar com os parceiros contratuais.
Como vimos durante a pandemia de COVID-19,[3] muitas vezes para evitar a quebra do contrato é necessário reduzir os valores pagos, cooperando para adaptar os contratos, e assim evitando a ruína dos consumidores, flagelados pelos desastres e pandemias. O princípio do combate à exclusão social, a exceção da ruína no superendividamento e na força maior são assim os nossos temas, na parte II desta reflexão sobre o dever de cooperar entre contratantes de boa-fé, especialmente frente à força maior que afete consumidores.
Relembrando, o governador do Estado do Rio Grande do Sul decretou ‘estado de calamidade’ em 1° de maio de 2024. Tivemos 469 municípios afetados, incluindo a capital Porto Alegre, com 169 mortes, 56 desaparecidos e 55.638 pessoas em abrigos, mais de 581 mil pessoas desalojadas, contabilizando ao total 2.345.400 pessoas afetadas[4] por este desastre[5] sem precedentes por sua extensão e longa duração
A Faculdade de Direito da UFRGS, que faz parte do CEPED,[6] instituiu um Observatório dos Desafios e Consequências Jurídicas da Enchente e do Estado de Calamidade no Rio Grande do Sul em 2024, o OCJE, que através de seus professores e grupos de pesquisa procura ajudar com estudos e assessoramento consultivo aos parceiros PROCON-RS, Defensoria Pública do RS, TJ/RS e a SENACON-MJ. Neste sentido, gostaria de chamar a atenção do dever de cooperar ínsito no princípio de boa-fé, que regula todo o CDC (art. 4°, IV do CDC).
Frente a tal desastre ambiental, o momento agora é de cooperação entre consumidor e fornecedor nas relações de consumo para manter os contratos de consumo, readaptados às novas expectativas dos consumidores (Art. 6°, V c/c Art. 54, §2° e Art. 51, §2° do CDC) e para evitar a sua exclusão social (novo princípio da defesa do consumidor incluído pela Lei 14.181/2021 no inciso X do Art. 4° do CDC). É o momento de usar em diálogo as exceções do Código Civil e as regras especiais do CDC para a consolidar mecanismos de proteção do consumidor pessoa natural, como impõe o Art. 5, VII in fine do CDC.
Frente à calamidade pública, mister reconhecer aos consumidores gaúchos não só a vulnerabilidade comum dos consumidores (Art. 4°, I do CDC),[7] mas um estado de vulnerabilidade agravada.[8] Vulnus é ferida ou aquele que pode ser ferido.[9] Vulnerabilidade é o estado resultante de fragilidade, em virtude de determinada posição, status ou situação em que se encontra a pessoa, que pode ser ou foi ferida.[10] Segundo o Código de Defesa do Consumidor todo o consumidor é reconhecido como vulnerável nas relações de consumo, mas defendemos que há uma nova vulnerabilidade dos consumidores face aos desastres ambientais, cada vez mais frequentes. Vejamos, pois, o que deve ser feito segundo os princípios e regras de ordem pública (Art. 1° do CDC) nas relações de consumo para a manutenção dos contratos e para o combate da exclusão social dos consumidores.
O desastre, nas relações privadas, é causa da excludente de força maior (como “fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”, segundo o Art. 393, parágrafo único do Código Civil). Assim, se não for cumprida a obrigação, o devedor não responde por perdas e danos (Art. 389 do Código Civil) nem pelos prejuízos resultantes da força maior (Art. 393 do Código Civil), a exceção que ocorram durante a mora (Art. 399 do Código Civil). Essa excludente de força maior também é utilizada em relações de consumo, mas aqui o diálogo das fontes exige um cuidado maior com os princípios do CDC, em especial o princípio da manutenção dos contratos e da boa-fé.
O Princípio da boa-fé exige cooperação entre consumidor e fornecedor para a realização das expectativas legítimas dos consumidores, que são a continuação do vínculo e o bom fim das relações de consumo. Logo, aqui cooperar é manter os contratos de consumo, mesmo frente aos desastres e as dificuldades consequências, com as adaptações necessárias. Por exemplo, certo é que os serviços essenciais (água, luz, internet, telecomunicações) podem ser interrompidos em caso de inundações, mas devem continuar tão logo seja possível e, em caso de necessidade, sejam readaptados às novas expectativas dos consumidores. O sistema de transporte, de ônibus, de taxis, de aplicativo deve ser adaptado, mas continuar também, assim como o sistema bancário, educacional e outros.
É o princípio da manutenção do contrato, que está insculpido em dois artigos do CDC, no §2° do Art. 54 fica claro que a decisão de manter o contrato ou o rescindir é uma ‘escolha’ do consumidor, mesmo que seja previsto uma cláusula resolutória e no §2° do Art. 51, afirmando que mesmo que sejam retiradas abusividades os contratos de consumo deve continuar, exigindo esforços de integração desta lacuna e sendo apenas a excessiva onerosidade para qualquer das duas partes que leva ao fim do contrato. Repita-se que nos contratos cativos de longa duração, o tempo é o tempo do consumidor,[11] não cabendo ao fornecedor dar fim ao contrato, nem mesmo em caso de desastres, se não lhe sobrevir excessiva onerosidade. Aqui uma adaptação, com cooperação de ambos os parceiros, é necessária para assegurar a continuidade do vínculo, que é o princípio imposto pelo CDC. Deve-se evitar a frustação do fim do contrato de consumo.[12] O CDC também impõe que uma série de práticas (Art. 39) e cláusulas (Art. 51) são abusivas e vedadas, pois estabelecem “obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade” (art. 51, IV, do CDC).
As cláusulas abusivas são nulas de forma absoluta (Art. 51 caput do CDC) e não devem ter nenhuma eficácia, nem em épocas de desastres. Dentre as mencionadas expressamente pelo CDC, são abusivas as cláusulas que permitem ao fornecedor “modificar unilateralmente o preço ou valor pago em contraprestação de serviços ou produtos (art. 51, X, do CDC) e as que permitam ao fornecedor “modificar unilateralmente o conteúdo do contrato, das prestações, da qualidade” (art. 51, XIII, do CDC). Por isso mesmo, em virtude da abusividade da cláusula, estas práticas comerciais só podem ser oriundas dos deveres de cooperação, para evitar a ruína de qualquer dos contratantes, e adaptar o contrato às novas circunstâncias posteriores ao desastre.
O próprio CDC, quanto às práticas abusivas da lista exemplificativa do Art. 39, restringe a apenas duas práticas comerciais a chamada ‘justa causa’ que as autoriza de forma excepcional, a saber, o condicionamento da venda a limites quantitativos (Art. 39, I in fine do CDC), que o PROCON RS tem autorizado, em especial em relação à agua mineral, visando justamente combater o desabastecimento e a elevação do preço (Art. 39, X, regra incluída pela Lei 8.884/1994), que aqui também tem que combater o oportunismo de alguns fornecedores e assegurar o acesso aos produtos necessários para os consumidores em tempos de crise.[13]
A SENACON emitiu uma Nota Técnica nr. 5/2024/CGEMM/DPDC/SENACON/MJ, que estabelece “estratégias destinadas à fiscalização de preços, quantidade e segurança de produtos e serviços, durante estado de calamidade pública ou situação de emergência e dá outras providências. A referida Nota Técnica é clara ao reconhecer a calamidade, e afirmar: “17. Entretanto, durante estado de calamidade pública ou situação de emergência, os fornecedores não poderão afastar a proibição disposta no inciso X, do art. 39, do Código de Defesa do Consumidor.” Quanto à limitação quantitativa, considera que a calamidade é sim base para alguns limites, desde que previamente informados aos consumidores (nr.19). A referida Nota Técnica nr. 5/2024 da SENACON-MJ também destaca que desastres são momentos de vulnerabilidade agravada dos consumidores e palco para muitos abusos, daí a necessidade de prevenir danos. O preço é elemento essencial destes contratos que os consumidores querem celebrar e continuar os contratos. Quanto ao preço, a cooperação pode levar também a sua redução ou adaptação possível, assim nunca é demais relembrar que o Código de Defesa do consumidor assegura como direito básico do consumidor a “modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas” (Art. 6°, V do CDC). Consideramos que aqui o CDC recebeu a teoria da quebra da base do negócio, que visa restabelecer seu sentido econômico de boa-fé (Art. 4, III do CDC c/c Art. 422 do CC).
Finalize-se que o consumidor tem direito a manter o contrato, caso necessite, só podendo o fornecedor usar a cláusula resolutiva, como impõe o Art. 54, §2° do CDC, a opção deve ser do consumidor. O consumidor também pode rescindir unilateralmente os contratos, em virtude do desastre. Em muitos contratos, a utilidade do próprio contrato é considerável, mesmo em contratos não considerados de consumo, como a locação, se o imóvel inundado não tem mais utilidade para a pessoa, não é necessário renovar este contrato.[14] Outra possibilidade é reduzir os valores pagos, cooperando para adaptar os contratos, mas é necessário evitar a ruína dos consumidores flagelados pelos desastres, como impõe agora o CDC atualizado pela Lei 14.181/2021. Cooperar para evitar a ruína (exceção da ruína) e a exclusão social do consumidor (Art. 4, X) no superendividamento, por meio da ‘revisão e da repactuação da dívida’ (Art. 6, XI), eis a alma da Lei 14.181/2021, que atualizou o Código de Defesa do Consumidor.
[1] Veja MARQUES, Claudia Lima. Vulnerabilidade agravada do consumidor nos desastres e o dever de cooperar, in https://www.conjur.com.br/2024-mai-23/vulnerabilidade-agravada-do-consumidor-nos-desastres-e-o-dever-de-cooperar
[2] Veja detalhes in BENJAMIN, Antonio Herman; MARQUES, Claudia Lima, Os fundamentos da concessão responsável do crédito, da prevenção e do tratamento do Superendividamento, in BENJAMIN, Antonio Herman, MARQUES, Claudia Lima; LIMA, Clarissa Costa de; VIAL, Sophia. Comentários à Lei 14.181/2021: a atualização do CDC em matéria de superendividamento. São Paulo: RT, 2021, p. 99.
[3] MARQUES, Claudia Lima; BERTONCELLO, Karen; LIMA, Clarissa Costa de. Exceção Dilatória para os Consumidores frente à Força Maior da Pandemia de COVID-19: Pela Urgente Aprovação do PL 3.515/2015 de Atualização do CDC e por uma Moratória aos Consumidores. Revista de Direito do Consumidor, v. 129, p. 1-23, 2020, p. 2 e seg.
[4] Veja Defesa Civil atualiza balanço das enchentes no RS – 27/5, 9h – Defesa Civil do Rio Grande do Sul (Acesso em 27.05.2024)
[5] Veja sobre desastres, CENTRO UNIVERSITÁRIO DE ESTUDOS E PESQUISAS SOBRE DESASTRES UFSC. Atlas brasileiro de desastres naturais 1991 a 2010. volume Brasil. Florianópolis: Ceped UFSC, 2012.
[6] Centro Universitário de Pesquisa e Estudo sobre Desastres – UFRGS, criado em 2011 pela Resolução CONSUN 461/2011 (Dec416-11-CriacaoeRegimentoCEPED.pdf (ufrgs.br) e liderado pelo IPH-Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, veja também do IPH Previsões atualizadas de níveis d´água no Guaíba – Sábado 04/05/24 11:00 – IPH (ufrgs.br) e da UFSC, .
[7] Veja os tipos de vulnerabilidades do consumidor, técnica, jurídica, fática e a vulnerabilidade informacional, in MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 9 ª Ed., São Paulo: Ed. RT, 2019, p. 312 e seg.
[8] Expressão de 2014 de MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 5. ed. São Paulo: Ed. RT, 2014, p. 68, hoje aceita pelo Art. 54-C, inciso IV do CDC.
[9] Veja detalhes in MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis, cit., p. 120 e seg.
[10] MAZIÈRE, Pierre. Le principe d’égalité en droit privé. Marseille: Presses Universitaires d’Aix-Marseille, 2003,p. 229 e seg.
[11] MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 9 ª Ed., São Paulo: Ed. RT, 2019, p. 755.
[12] Veja decisão do STJ, REsp n. 595.631/SC, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 8/6/2004, DJ de 2/8/2004, p. 391 E MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 9 ª Ed., São Paulo: Ed. RT, 2019, p. 1317.
[13] Veja detalhes in MIRAGEM, Bruno. O ilícito e o abusivo, in Revista de Direito do Consumidor, vol. 104 (2016), p. 99-127, mar.-abr/2016, p. 9.
[14] Assim o Código Civil: “Art. 567. Se, durante a locação, se deteriorar a coisa alugada, sem culpa do locatário, a este caberá pedir redução proporcional do aluguel, ou resolver o contrato, caso já não sirva a coisa para o fim a que se destinava.”
Cláudia Lima Marques
Diretora da Faculdade de Direito e Professora Titular do da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Doutora pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), Mestre em Direito (L.L.M.) pela Universidade de Tübingen (Alemanha). Presidente da IACL- International Association of Consumer Law e do Committee on International Protection of Consumers, ILA (Londres). Professora Permanente do PPGD UFRGS e UNINOVE. Membro do IARGS. Advogada e Parecerista