22/06/2021 10h50 - Atualizado 22/06/2021 10h54
Artigo- O papel do Supremo Tribunal Federal na concretização do Federalismo
Por Terezinha
para IARGS
para IARGS
Artigo do advogado, professor do PPGD da UNISC, Dr Ricardo Hermany[1],
associado do IARGS e diretor de Cursos Especiais da ESA/RS
Tema: O papel do Supremo Tribunal Federal na concretização do Federalismo
1. Considerações iniciais
A pandemia da Covid-19 tem causado impactos e desafios à concretização do federalismo cooperativo brasileiro, tendo em vista que no Direito são enfrentadas situações de conflitos federativos jamais vivenciados – especialmente com relação à divisão de competências dos entes –, o que tem gerado uma crescente judicialização da crise perante o Supremo Tribunal Federal. Salienta-se que o modelo de federalismo adotado no Brasil, desde sua origem, enfrentou períodos de centralização e descentralização do poder, onde o papel dos governos municipais foi significativamente alterado ao longo das Constituições.
Em tempos de pandemia, é fortalecida a importância do debate sobre o poder dos entes subnacionais e a garantia da autonomia local no âmbito de um Estado federal, principalmente nos embates travados diante da judicialização da crise. Nesse sentido, o artigo tem como escopo o de contextualizar o federalismo brasileiro e a crise de engenharia institucional, especialmente com relação às competências federativas – ênfase para a ação paradigmática – ADI 6341 – e as decorrentes.
2. Contextualização do federalismo brasileiro a partir da Constituição de 1988
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988, passou a distribuir os poderes de forma mais equilibrada entres as esferas de governo, adotando um modelo de federalismo cooperativo[2], o qual visa a garantir uma atuação em que haja colaboração e coordenação – atuação solidária e conjunta – na realização das metas comunitárias e na consecução dos objetivos constitucionais. Além disso, a Constituição de 1988 passou a prever os municípios com status de entes federados, maior avanço no que toca a constitucionalização da autonomia local[3].
Desta forma, evidencia-se que a Constituição prevê no artigo 1° que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos estados-membros, municípios e do Distrito Federal, formando o Estado Democrático de Direito. Outrossim, institui um modelo federalista de divisão espacial de poder e autonomia entre os entes federativos – União, estados-membros, Distrito Federal e municípios, nos termos do caput do artigo 18.
Cabe salientar que os entes locais passaram a ter um acréscimo de autonomia que jamais haviam experimentado, estabelecendo, entre outras atribuições, a capacidade de edição de Lei Orgânica própria e a admissão de diversas tarefas constitucionais por meio de processos de municipalização. Bonavides[4] ressalta que, em virtude da previsão de autonomia aos entes municipais[5], não existe na atualidade outra forma de Estado federal que “tenha alcançado grau de caracterização política e jurídica tão alto e expressivo quanto aquele que consta da definição constitucional do novo modelo implantado no País com a Carta de 1988”. Assim, diferente de outras federações, a brasileira é instituída por um sistema composto por três níveis de governo, desenvolvendo um federalismo trino e sui generis.
A Constituição Federal, em função do complexo quadro de entes federados, fez previsão de um modelo diferenciado de repartições de competências[6], o qual se extrai por meio da leitura dos artigos 21 ao 30 – a “coluna vertebral” que suporta a divisão de competências entre os entes[7]. Registre-se que o federalismo trino brasileiro apresenta situações interessantes, visto que estão previstas constitucionalmente competências privativas e competências concorrentes que se intercalam – de modo cumulativo ou não-cumulativo –, em que os três entes federativos devem atuar de forma coordenada e conjunta.
A Constituição prevê expressamente o federalismo cooperativo no artigo 23, com as competências materiais administrativas comuns para todos os entes – União, estados-membros, municípios e Distrito Federal. Importante observar que todos os entes desempenham tais competências comuns em condições de igualdade – sem subordinação – visto que a atuação de um não exclui a dos demais.
Evidencia-se que o Pacto Federativo brasileiro tem enfrentado na pandemia uma verdadeira crise de engenharia institucional, tendo em vista que municípios, estados-membros e o Governo Federal vêm editando decretos – semanalmente em muitos casos – disciplinando o exercício das atribuições em política sanitária, que integra o campo das atribuições comuns. Isso ocorre tendo em vista a ausência de um diálogo federativo – especialmente entre o Governo Federal e os governos estaduais – com a colisão entre decretos, gerando uma situação de incerteza, principalmente aos entes locais que são, apesar de inexistir subordinação jurídica, os mais hipossuficientes na prática.
Neste contexto de complexidade, os prefeitos precisam definir – de modo concreto – qual será a medida mais acertada, pois são os gestores locais que decidem questões relacionadas às políticas públicas de saúde e a aplicação de restrições – com a respectiva dosimetria – às atividades econômicas. Destaca-se – como exemplo de conflito positivo de competências – a discussão travada no Agravo de Instrumento n. 5044337-47.2021.8.21.7000, interposto pelo Estado do Rio Grande do Sul, em face de uma decisão que suspendeu provisoriamente o retorno da Gestão Compartilhada (Cogestão) com os Municípios no Sistema de Distanciamento Controlado. Registre-se que a Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Rio Grande do Sul – atuou nos autos na condição de amicus curiae, sendo favorável ao compartilhamento das decisões e, por conseguinte, da responsabilidade, a partir dos pressupostos do federalismo cooperativo.
Este processo de constante debate com a citada crise de engenharia institucional potencializa o exercício do controle abstrato de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal em que se constatam ações que estão diretamente relacionadas à concretização do federalismo cooperativo e a salvaguarda da autonomia no enfrentamento da pandemia. Desta forma, passa-se a análise da ação paradigma – ADI 6341 – determinante em uma série de julgamentos concernentes ao pacto federativo.
3. A formatação concreta do Pacto Federativo a partir da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6341[8]
No Supremo Tribunal Federal observa-se que tramitam, atualmente, quase nove mil ações relacionadas ao enfrentamento da pandemia. No entanto, a maioria das ações são relativas a habeas corpus.[9] Dentre as diversas ações referentes a temática – relacionada às competências federativas, comuns e concorrentes, em matéria sanitária, principalmente às pertinentes à adoção de medidas restritivas – é importante observar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.341, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello, proposta com a finalidade de declarar a incompatibilidade parcial de dispositivos da Medida Provisória (MP) 926/2020, de 20 de março de 2020, que introduziu o artigo 3º, caput, incisos I, II e VI, e parágrafos 8º, 9º, 10 e 11, da Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.
Examina-se que o referido dispositivo atribuiu ao Presidente da República a centralização das prerrogativas de isolamento, interdição de locomoção, quarentena e de serviços públicos e atividades essenciais. Desta forma, a inconstitucionalidade apontada centrava-se no argumento de que a MP 926/2020 esvaziaria as competências e responsabilidades dos estados-membros e municípios para a execução de medidas sanitárias, administrativas e epidemiológicas pertinentes ao combate à pandemia da Covid-19. Portanto, a ação objetivava que as medidas adotadas para o enfrentamento da pandemia pelo Governo Federal não afastasse a competência comum e concorrente dos municípios, estados-membros e Distrito Federal.
O Relator – em sede de Medida Cautelar – acrescentou interpretação conforme a Constituição ao artigo 3° da Lei n° 13.979/2020, reafirmando a competência dos estados-membros, municípios e Distrito Federal para adotarem medidas de combate à pandemia, considerando a competência comum do artigo 23, inciso II, da Constituição, entre todos os entes, para cooperação em saúde pública. Ademais, o Supremo Tribunal Federal em sessão plenária, em 15 de abril de 2020, por unanimidade, referendou a medida cautelar na ADI n° 6.341[10], reafirmando a competência dos estados-membros, municípios e Distrito Federal para estabelecerem determinações mais restritivas durante a pandemia da Covid-19, ou seja, as medidas impostas pelo Governo Federal não afastam as providências administrativas e normativas – baseando-se em pressupostos científicos de acordo com a legislação federal infra e constitucional – dos demais entes.
4. Dos reflexos jurisprudenciais da ADI 6341 nas demandas federativas
Em decorrência da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6341, como reflexo, foram exaradas uma série de decisões pelo Supremo Tribunal Federal, reafirmando as competências – comuns e concorrentes – de todos os entes federativos para o estabelecimento de medidas para o enfrentamento da pandemia, em matéria de saúde pública. Portanto, diante da edição de leis e decretos sanitários, pela União, que façam previsão de medidas para o controle e restrição de circulação, visando a contenção da disseminação do vírus, dentre outras medidas, os estados-membros e municípios poderão legislar de forma complementar. De tal forma, frisa-se que a complementação deve ser no sentido de prever normas mais restritivas, ou seja, os entes subnacionais não podem prever normas mais brandas e que ofereçam menor proteção.
Vale mencionar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6343[11], de relatoria do Ministro Marco Aurélio, a qual visava a sustar a necessidade de autorização do Governo Federal para entes subnacionais impor medidas de restrição à locomoção intermunicipal e local durante o estado de emergência, suspendendo parcialmente a eficácia de dispositivos das Medidas Provisórias (MPs) 926/2020 e 927/2020. Destaca-se que a ação teve a liminar referendada[12] em parte, em 06 de maio de 2020, em que o Supremo, por maioria, concedeu parcialmente a cautelar para suspender parcela dos dispositivos impugnados; assim como conferiu interpretação conforme aos referidos dispositivos no sentido de que as medidas neles previstas devem ser precedidas de recomendação técnica e fundamentada. Com isso, o STF confirmou as competências dos estados-membros e municípios que podem adotar medidas de restrição à locomoção intermunicipal e local, durante a pandemia da Covid-19, sem que os governadores e prefeitos necessitem de prévia autorização do Ministério da Saúde para a decretação de isolamento, quarentena, dentre outras providências.
Vislumbra-se que, em 2021, a falta de diálogo entres os entes permanece gerando a propositura de ações junto ao Supremo, as quais colocam em xeque, novamente, o Pacto Federativo quanto às competências no enfrentamento da pandemia da Covid-19. Destaca-se a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 806[13], de relatoria do Ministro Marco Aurélio, contra a decretação de lockdown e toque de recolher por governadores e prefeitos de todo o país como forma de combater a disseminação do novo Coronavírus e o colapso do sistema de saúde. Esta ação teve seu pedido sumariamente indeferido, em março de 2021, e logo após foi baixada ao arquivo do STF. O relator salientou na decisão de indeferimento que não foram cumpridos os requisitos da subsidiariedade, tendo em vista que a ação só pode ser admitida quando não houver outro meio eficaz capaz de sanar a lesividade apontada[14].
Outra decisão que merece destaque e que vai ao encontro da ADI 6341 é a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6764[15], novamente de relatoria do Ministro Marco Aurélio – proposta e assinada exclusivamente pelo Presidente da República – tendo como objeto central decretos emitidos pelos Estados da Bahia, do Distrito Federal e do Rio Grande do Sul, os quais estabelecem medidas restritivas para combate à pandemia da Covid-19, determinando o fechamento total de atividades não essenciais e o toque de recolher noturno. O Ministro relator negou seguimento a ação[16], salientando que o Chefe do Executivo personifica a União, atribuindo-se ao Advogado-Geral a representação judicial e a prática de atos em Juízo. Assim, considerando se tratar de erro grosseiro, não coube o saneamento processual, tendo destacado que o artigo 103, inciso I, da Constituição Federal é pedagógico ao prever a legitimidade do Presidente da República para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade, sendo impróprio confundi-lo com a capacidade postulatória. Por fim – e o mais relevante – destacou a importância da cooperação dos entes, referindo o paradigma da ADI 6.341, em que o relator afirmou “que há um condomínio, integrado pela União, estados-membros, Distrito Federal e municípios, o qual deve ser voltado para o cuidado da saúde e assistência pública – nos termos do artigo 23, inciso II”.
5. Notas conclusivas
Em notas finais, constata-se que, diante da situação pandêmica, justamente quando se torna imprescindível o diálogo institucional entre os entes visando à concretização de um federalismo trino cooperativo, colaborativo, coordenado e harmônico, a experiência evidencia outra realidade. Desse modo, vislumbra-se que, diante da absoluta falta de coordenação nacional, não observância de evidências científicas no início da gestão da crise sanitária e a resistência em aderir a protocolos mais restritivos – por parte do Governo Federal –, os entes federados regionais e locais foram colocados em situação de constante desgaste e eventuais crises de legitimidade frente à sociedade que se observa atônita a verdadeiros abismos institucionais.
As decisões, ora destacadas, reafirmam a necessidade de os entes adotarem providências e ações coordenadas, visando a um diálogo harmônico, republicano e coerente – necessário para a concretização e o restabelecimento de um federalismo cooperativo. Ademais, é fundamental que sejam reduzidos os apelos ao Judiciário, nas matérias relacionadas ao enfrentamento da Covid–19, pois a efetividade das medidas sanitárias exige prudência e tolerância gerencial para que só assim possam ser minimizadas as consequências e as demandas emergenciais, a partir de uma gestão efetivamente responsiva.
Referências
BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. Painel de ações COVID-19. Disponível em: <https://transparencia.stf.jus.br/extensions/app_processo_covid19/index.html>. Acesso em: 18 jun. 2021.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 314.
CORRALO, Giovani da Silva. O poder municipal na elaboração e execução de políticas públicas. 2012. Revista do Direito. Santa Cruz do Sul, n. 37, p. 116-130, jan/jun. 2012.
KRELL, Joachim Andreas. Leis de normas gerais, regulamentação do Poder Executivo e cooperação intergovernamental em tempos de Reforma Federativa. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31. ed., rev. e atual., São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2008.
TAVARES, André Ramos, Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
[1] Advogado. Professor da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Direito- Mestrado/Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC; Diretor de Cursos Especiais da ESA/RS e Coordenador da Comissão Especial do Pacto Federativo e Controle Social da OAB/RS. Consultor jurídico da Confederação Nacional dos Municípios – CNM. ORCID: <https://orcid.org/0000-0002-8520-9430>. E-mail: <hermany@unisc.br>.
[2] Importante salientar que o sistema de cooperação entre os entes federativos começa através do reconhecimento de que cada ente tem o dever de colaborar com os demais, tendo em vista a orientação, coordenação e controle do processo político-administrativo. De tal forma, esse sistema é efetivado por meio da repartição de competências verticais e se fundamenta em razão de que os governos central, regional e local têm como meta a execução das tarefas estatais que beneficiem os cidadãos – concretizando o interesse público. Além disso, os entes passam a assumir uma cooperação subsidiária, buscando auxiliar os entes menores – que se encontram mais próximos dos cidadãos – na realização das tarefas que não forem possíveis de serem executadas sozinhas. (KRELL, Joachim Andreas. Leis de normas gerais, regulamentação do Poder Executivo e cooperação intergovernamental em tempos de Reforma Federativa. Belo Horizonte: Fórum, 2008.).
[3] Autonomia compreende a capacidade de autogoverno, autolegislação, autoadministração e auto-organização.
[4] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 314.
[5] A autonomia municipal encontra-se prevista nos artigos 18; 29; e 34, inciso VII, alínea “c” da Constituição.
[6] Destaca-se que as competências são definidas como diversas modalidades de poder, concedidas para que os órgãos ou entidades estatais executem suas funções, bem como é a esfera delimitada de poder que se outorga a um órgão ou entidade estatal, conforme as especificações das matérias sobre as quais se exerce o poder de governo. (SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31. ed., rev. e atual., São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2008.).
[7] CORRALO, Giovani da Silva. O poder municipal na elaboração e execução de políticas públicas. 2012. Revista do Direito. Santa Cruz do Sul, n. 37, p. 116-130, jan/jun. 2012.
[8] Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5880765>.
[9] Ver mais em “Painel de ações Covid-19” do STF. Disponível em: <https://transparencia.stf.jus.br/extensions/app_processo_covid19/index.html>.
[10] Link da decisão na íntegra. Acesso em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15344964720&ext=.pdf>.
[11] Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5881008>.
[13] Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6132935>.