10/09/2024 07h00 - Atualizado 09/09/2024 11h21

Filiação decorrente de Reprodução Assistida

Por Terezinha
para IARGS

Por projeto parental pode-se compreender, para fins de ponto de partida, como planejamento por parte do indivíduo, em torno da materialização do ato de procriar, de forma simbólica ou real, por vias naturais de reprodução, ou por meio da proposição científica, ou no contexto socioafetivo, respeitada a liberdade procriativa de cada sujeito.

Dentro desse contexto, os direitos sexuais e reprodutivos asseguram o direito de todos de organizar a vida reprodutiva e de optar pela via científica com o fito de restabelecer a saúde sexual e reprodutiva, estando enaltecidos tanto o direito a ter filhos como o de não gerar, uma vez que alicerçados no exercício da liberdade e da autonomia.

As novas tecnologias reprodutivas (tecnologias reprodutivas conceptivas, procriação medicamente assistida ou técnicas de reprodução assistida) são procedimentos biomédicos que substituem a relação sexual no ato da concepção. As técnicas surgem como resposta à ausência involuntária de filhos[1]. Embora tenham sido idealizadas como solução para infertilidade de casais heterossexuais, seu uso se difundiu entre pessoas cujas práticas sexuais não geram filhos por motivos não clínicos: pessoas solteiras, sem companheiro(a), casais homossexuais masculinos e femininos, parentalidade tardia, preservação de material genético em situações de submissão à tratamentos médicos.

O desejo de ter filhos, transposto à categoria de direito fundamental reprodutivo, impulsiona a necessidade de satisfação pela via de tratamento, fazendo emergir em importâncias as tecnologias reprodutivas conceptivas como mecanismo de consagração da identidade e dignidade humana.

O direito ao projeto parental, portanto, está intrinsecamente ligado à idéia de saúde como produção humana e à autonomia de cada indivíduo em relação ao próprio corpo, numa percepção de efetivação e garantia, o que faz caracterizar os direitos humanos como uma constante construção e desconstrução.

Após 20 anos da promulgação da lei civil, a iniciativa da Comissão de Juristas para Elaboração de um anteprojeto de revisão e atualização do CC/02 tem como um dos seus objetivos trazer uma roupagem mais próxima às relações jurídicas contemporâneas.

Nos termos da atual proposta, o CC/02 contará com uma reformulação do art. 1.597 (presunções de filiação), a inserção do art. 1.598-A (presunção de filiação em matéria de Reprodução Humana Assistida – RHA) e a inserção de um novo Capítulo, inserido no Livro IV – Direito de Família, intitulado “Da filiação decorrente da reprodução humana assistida”, incluindo os arts. 1.629-A a 1.629-V, distribuídos em seções sobre disposições gerais, doações de gametas, cessão temporária de útero, reprodução assistida post mortem e consentimento informado[2].

No que diz respeito à RHA, as técnicas saem do âmbito do art. 1.597 e ganham dispositivo próprio no art. 1.598-A, com o seguinte teor: “Presumem-se filhos dos cônjuges ou conviventes os havidos, a qualquer tempo, pela utilização de técnicas de reprodução humana assistida por eles expressamente autorizadas”. A partir da análise dessa disposição, pode-se dizer que: (i) embora não haja mais menção expressa, abarca tanto as modalidades de RHA homólogas (efetivadas pelo uso de gametas do casal), quanto as heterólogas (que utilizam o gameta de pelo menos um doador ou doadora); (ii) aplicam-se também às famílias homoafetivas, constituídas pelo casamento ou pela união estável, uma vez que se retirou as menções expressas à “diversidade de sexos” de ambos os institutos; e (iii) ao estabelecer que a presunção decorre da “expressa autorização” dos cônjuges ou conviventes, parece adotar a ideia “vontade procriacional”[3] para estabelecer os vínculos de filiação; sendo, portanto o consentimento dos autores do projeto parental o cerne do estabelecimento desses vínculos paterno-materno-filiais.

O anteprojeto se preocupa em conceituar o que seriam as práticas de RHA, por isso, passam a ser compreendidas como o emprego de técnicas cientificamente aceitas que possam interferir, de maneira direta, no sistema reprodutivo humano para viabilizar a fecundação e a gravidez (1.629-A).

Ademais, não há uma preocupação em determinar o que seriam práticas homólogas e heterólogas, tal qual há no art. 1.597 da legislação vigente.

A redação do texto reforça a igualdade de filiação, trazendo que toda e qualquer pessoa que tenha nascido a partir do uso das técnicas de RHA, isto é, a partir de acompanhamento médico especializado em clínica, terá os direitos e garantias assegurados àqueles que tenham sido concebidos de forma natural, (art. 1.629-B).

Ainda, de acordo com a disposição, toda e qualquer pessoa, desde que maior de idade e plenamente capaz, poderá fazer uso das tecnologias (art. 1.629-C). Tal dispositivo é pertinente no sentido em que o estado de conjugalidade, a expressão de sexualidade ou a autopercepção de gênero da pessoa humana passam a ser critérios irrelevantes para o acesso de uso às técnicas de RHA.

Na atualidade, as técnicas de RHA não se restringem a garantir tratamentos da infertilidade biológica humana, destinam-se também a viabilizar projetos parentais das ditas infertilidades não-médicas.

O art. 1.629-D esclarece quanto às práticas vedadas. Assim, a utilização das técnicas principais e auxiliares não poderá: (a) Possuir finalidade diferente da reprodução humana: ou seja, o único propósito de utilização das técnicas deverá ser tão somente o tratamento da infertilidade humana para dar cabo ao projeto de parentalidade; (b) Ter intenção de criar seres humanos geneticamente modificados: de maneira incontroversa, incide aqui a lógica da integridade do patrimônio genético humano, a partir do avanço da ciência. Sobre o tema, na atualidade, permite-se falar, ainda, a evocação da ideia do princípio jurídico da diversidade no patrimônio genético humano, como um limitador da autonomia do planejamento familiar, conforme o avanço da terapia gênica coligada às técnicas de RHA[4]; (c) Fecundar embriões com a finalidade exclusiva de pesquisa científica: difere da situação dos embriões excedentários que estejam crioconservados há mais de 3 (três) anos e que foram destinados para pesquisa, conforme vontade dos autores do projeto parental, nos termos do art. 5º da Lei nº 11.105/2005; (d) Escolher o sexo, eugenia ou para originar híbridos ou quimeras: a proposta parece indicar uma vedação relativa à manipulação do material genético em linhagem germinativa para produzir: (d.i) escolha do sexo ou sexagem: a possibilidade da escolha costuma ocorrer através do diagnóstico genético pré-implantacional (DGPI), onde se faz a leitura do patrimônio genético do embrião; (d.ii) eugenia: a eugenia surge, no campo da filosofia, para distinguir práticas que possam ser qualificadas a partir do protocolo terapêutico ou de aprimoramento humano. A crítica moderna ao conceito de eugenia, por sua vez, repousa na possibilidade de não se saber distinguir, na prática, entre esses dois protocolos a partir dos valores sociais; (d.iii) híbridos: é a mestiçagem entre espécies (precisamente este dispositivo se refere à coligação da estrutura do DNA humano com o de outras espécies); (d.iv) quimeras: a ciência compreende que o “quimerismo” pode ocorrer tanto de maneira natural como artificialmente. A preocupação específica pauta-se na forma artificial, uma vez que se trata de condição natural raríssima em que um indivíduo possui dois tipos distintos de DNA[5]; (e) Intervir no genoma: o inciso V merece ser desmembrado em dois comentários. A primeira parte dele reproduz, em certa medida, o mesmo sentido do inciso II, no qual se determina uma vedação à modificação do patrimônio genético humano em linhagem germinativa, em consonância com a diretriz do art. 25 da Lei de Biossegurança.

Excepciona-se, por sua vez, a possibilidade da prática da “terapia gênica para identificação e tratamento de doenças graves via diagnóstico pré-implantacional”. Neste ponto, merece distinção conceitual a prática da terapia genética e o diagnóstico genético pré-implantacional. A terapia gênica diz respeito à intervenção direta no genoma humano a partir do tratamento especializado por meio de técnicas de edição genética disponíveis. Na atualidade, tem-se como mais eficaz a técnica do CRISPR-Cas9, a qual funciona como uma tesoura genética capaz de inserir, recortar ou modificar o genoma humana de qualquer ser vivo (planta ou animal). Por outro lado, o DGPI consiste em ferramenta auxiliar que se propõe a fazer a leitura do patrimônio genética individual do embrião, possibilitando conhecer suas características genéticas. O ponto controverso do dispositivo estaria na determinação a respeito do que seriam doenças graves, para não se incorrer em discriminações genéticas indevidas (Inciso V do art. 1.629-D)[6].

O uso da RHA deverá ser indicado enquanto um tratamento apto à infertilidade, desde que seja considerado viável para o quadro clínico do(s) integrante(s) do projeto parental. Além disso, conforme o quadro clínico do(s) sujeito(s) envolvido(s), deverá ser informado os possíveis riscos, seja em relação à saúde física corporal ou relativa à descendência (art. 1.629-D). Para tanto, essas informações deveram constar de prévio consentimento livre e esclarecido, devidamente tratado na redação do anteprojeto.

No tocante à doação dos gametas reprodutivos (espermatozoide e óvulos), foi autorizada desde que pura e simples e na modalidade gratuita (art. 1.629-F), devendo o doador ser pessoa maior de 18 (dezoito) anos, manifestando, por escrito, sua vontade livre e inequívoca (art. 1.629-G). Em relação às vedações, vedou-se aos médicos e aos integrantes da equipe multidisciplinar que integram as clínicas, unidades e serviços de tratamento figurarem como doadores nos locais em que atuam (art. 1.629-G, parágrafo único), tendência essa que já se encontrava prevista nas resoluções do CFM, cujo intuito era justamente evitar conflitos de interesse, notadamente aqueles relativos à filiação.

A escolha dos doadores caberá ao médico responsável pelo procedimento, devendo garantir, sempre que possível, a máxima semelhança fenotípica, imunológica e máxima compatibilidade entre com os receptores (art. 1.629-H).

Outro ponto que se evidenciou foi o sigilo das informações (dos dados de doadores, receptores e demais recorrentes das técnicas), não se podendo facilitar a divulgação das identidades dos doadores e dos receptores (art. 1.629-I). No mesmo sentido, garantiu-se o sigilo do doador, salvo no tocante: (i) ao direito da pessoa nascida ao conhecimento da sua origem biológica, mediante autorização judicial, com a finalidade de preservação da sua vida e sua saúde física e psíquica; ou, (ii) por outros motivos justificados (art. 1.629-K). Frise-se que tal garantia também foi assegurada àquele, nos casos de riscos para sua vida, saúde ou outro motivo relevante, a critério do magistrado (art. 1.629-K, §1º).

Aqui é perceptível que se optou por um sigilo absoluto nessas doações, não sendo possível a identificação das pessoas envolvidas. Curioso é, contudo, o fato de as resoluções do CFM, que antes empregavam esse mesmo modelo de sigilo absoluto, relativizaram-no, desde 2021, admitindo-se as doações de pessoas conhecidas, desde que parentes até 4º grau colateral dos receptores e que não incidisse em consanguinidade, ou seja, que não se fecundasse gametas daqueles que eram parentes entre si, em razão da vedação ao incesto que vigora no nosso ordenamento.

Note-se que tal alteração foi introduzida justamente em razão de decisões judiciais que já vinham reconhecendo tal possibilidade, dentre outras razões, por conta: a) do direito fundamental ao exercício do planejamento familiar; b) da ausência de proibição legal; c) a consolidação da socioafetividade na legislação, doutrina e jurisprudência brasileiras; d) a solidificação da distinção entre direito à origem genética e estado de filiação na reprodução heteróloga; e e) a possibilidade da gestante substituta ser conhecida na gestação por substituição.

Por fim, chama-se igualmente atenção para a obrigação legal imposta às clínicas, hospitais e centros de RHA de informar ao Sistema Nacional de Produção de Embriões (SisEmbrio) – que, por sua vez, será incumbido de manter arquivo perene dos dados relativos aos nascimentos de crianças com material genético doado, seus dados registrais e os dados do doador, a fim de oportunizar a consultas futuras pelos Ofícios de Registro Civil das Pessoas Naturais – RCPN no tocante a verificação de impedimentos matrimoniais (art. 1.629-J). Tal disposição é pertinente não apenas para evitar casamentos e uniões putativas – situação que, no âmbito das normas deontológicas, apenas tinha espaço nas disposições de limitação de uso por número de habitantes –, como também para oportunizar uma fiscalização sobre a atuação das clínicas.

Em relação à cessão temporária de útero, estabeleceu-se que somente será permitida para os casos em que a gestação não seja possível em razão de causa natural ou em casos de contraindicação médica (art. 1.629-L). Numa primeira leitura, pode-se fazer crer que o mencionado dispositivo esteja restringindo, em certa medida, o âmbito de uso da técnica da Gestação de Substituição aos casos de infertilidade biológica, uma vez que se fala em “causa natural ou em casos de contraindicação médica”. Porém, por causas naturais, compreendem-se também as infertilidades não-médicas, como as relações homoafetivas.

Foi estabelecida natureza de gratuidade, vedada qualquer finalidade “lucrativa ou comercial” (art. 1.629-M), seguindo a inteligência majoritária de vedação à comercialização de partes do corpo, contida no art. 199, §4º da CF/88. Ainda, estabeleceu-se a preferência pela existência de vínculo de parentesco entre a gestante e os beneficiários (art. 1.629-N). Essa já era tendência adotada pelo CFM ao estabelecer que a gestante deveria ser parente consanguínea até 4º grau dos beneficiários, estando outros casos submetidos a parecer dos Conselhos Regionais de Medicina (CRM).

Por óbvio, o art. 1.629-N acabou por expandir a disposição do CFM, ao não fazer distinção entre parentesco consanguíneo ou socioafetivo, medida que já se impunha em função do princípio da Igualdade entres os Filhos, o qual veda qualquer forma de discriminação quanto à origem, constante do art. 227, §6º da CF/88 e do art. 1.596 do CC/02. Ademais, indicou-se a preferência, mas não obrigatoriedade da presença desses vínculos, o que leva à compreensão de que será possível o uso da técnica mesmo quando não houver relação de parentesco entre beneficiários e gestante.

O art. 1.629-O indica que a gestação por útero em substituição deve ser formalizada em documento escrito, público ou particular, firmado antes do início do procedimento de implantação, no qual deverá constar, obrigatoriamente, a quem será atribuído o vínculo de filiação.

O art. 1.629-P cuidou da efetivação do registro daquelas crianças oriundas do emprego da técnica, determinando que: (a) será levado a efeito no nome dos autores do projeto parental; (b) para tanto, deverão ser apresentados a Declaração de Nascido Vivo (DNV) ou documento equivalente, o termo de consentimento informado, firmado na clínica que realizou o procedimento e o documento escrito firmado antes do início dos procedimentos médicos de implantação (§1º); (c) não deverá ser publicizado, em nenhuma hipótese, o assento de nascimento ou dados dos quais se possa inferir o caráter da gestação (§2º). Tal dispositivo mostra-se bastante pertinente, uma vez que finalmente sedimenta a facilitação do registro das crianças nascidas pelo emprego da referida técnica, que, até então, é regulado pelo provimento nº 149/2023 do CNJ.

No tocante à RHA post mortem – atualmente tratada no art. 1.597, III do CC/02 sem maiores cuidados, o art. 1.629-Q autoriza expressamente o uso de material genético de qualquer pessoa (espermatozoide, óvulo ou embrião) após sua morte, desde que haja expressa manifestação autorizando, em documento escrito, sendo vedada a sua coleta e a utilização no tocante àquela pessoa que não consentiu expressamente, mesmo que haja manifestação de seus familiares em sentido contrário (art. 1.629-R).

Para tanto, o documento em que consta a anuência deve indicar: (a) a quem deverá ser destinado o gameta (espermatozoide ou óvulo) e quem deverá gestar após a concepção; e, (b) a pessoa que deverá gestar o ser já concebido, no caso de embrião. Não obstante, é preciso que tal artigo seja lido em concomitância com aquilo que fora previsto no parágrafo único do art. 1.598-A, que estabelece forma específica para concessão de tal consentimento, sendo ela através de testamento público ou escritura pública[7].

No tocante a atribuição de direitos sucessórios, fora previsto, no art. 1.798, ao estabelecer a legitimidade sucessória passiva no livro das Sucessões, que se legitimam a suceder: (a) os nascidos ou já concebidos no momento da abertura da sucessão (caput, primeira parte); e (b) os filhos gerados por RHA post mortem (caput, parte final), desde que: (i) gerados após a abertura da sucessão dentro do prazo de até 5 (cinco) anos contados da abertura desta, para fins de reconhecimento de seus efeitos sucessórios (§1º); e, (ii) mediante autorização expressa e inequívoca do autor da herança para uso do material crioconservado, realizado por meio de escritura pública ou testamento público (§2º), revogável a qualquer tempo (§2º)[8];

Determina-se, ainda, que, para os fins da RHA post mortem, o vínculo entre filho concebido e genitor falecido se estabelecerá para todos os efeitos jurídicos da relação paterno-filial (art. 1.629-Q, parágrafo único), mesmo que ultrapassado o limite temporal de 5 (cinco) anos previsto no §1º do art. 1.798 (art. 1.798, §6º), medida que se impõe dada a imprescritibilidade do reconhecimento do estado de filiação em sua dimensão existencial (súmula 149 do Supremo Tribunal Federal – STF[9]).

Em relação ao consentimento informado, o mesmo já se encontrava presente nas resoluções do CFM relativas à RHA, havendo, em todas elas, a necessária manifestação da vontade dos autores do planejamento familiar em relação à concordância do tratamento a partir das informações prestadas aos beneficiários. Ao firmar o termo, deverão ser informados os riscos e benefícios do tratamento médico indicado, de modo que o paciente esteja munido das informações necessárias para dar cabo à sua tomada de decisão genuína (art. 1.629-T).

Em realidade, essa exigência se fundamenta na possibilidade de garantir a capacidade de autodeterminação da pessoa humana a partir da garantia do princípio bioético da autonomia, pensando-se na teoria principialista. Ainda, necessário que se dê integralmente o processo de consentimento informado, com a concessão de todas as informações necessárias para que a pessoa entenda o quadro clínico e possa, a partir disso, tomar a decisão que corresponda ao seu projeto de vida.

O dispositivo estabelece como critério a concordância expressa do cônjuge ou companheiro, no ato de firmar o consentimento informado, quando houver a utilização do procedimento indicado e com o uso ou não de material genético de doador (RHA heteróloga) (art. 1.629-U). Além disso, em caso de vício no consentimento, abre-se a ressalva de ser admitida a ação negatória de parentalidade, não se confundindo, portanto, com a lógica da desistência. Por fim, admite-se a manutenção da relação parental caso haja comprovada socioafetividade.

Afora isso, o termo de consentimento deverá prever o destino do material biológico crioconservado em caso de: (a) dissolução conjugal; (b) doença grave; (c) falecimento; ou (d) desistência do tratamento (art. 1.629-V).

A tendência de se exigir a manifestação da vontade dos autores do planejamento familiar, no momento de contratação do serviço, já existia em todas as resoluções do CFM. Todavia, ressalta-se que, a qualquer tempo, devido à natureza do termo tratar-se de bens da personalidade, isto é, a livre disposição do corpo, poder-se-á revogar o que fora pactuado.

No parágrafo único, o suporte fático do dispositivo ratifica, também, a possibilidade de destinação para pesquisa ou entrega para projeto parental alheio, em conformidade com as diretrizes da Lei de Biossegurança. Por fim, na parte final do parágrafo único, o anteprojeto solidifica explicitamente a lógica de que o material criopreservado não poderá ser descartado.

De forma geral, o capítulo destinado à filiação decorrente de reprodução assistida aborda os principais pontos que dizem respeito à temática. Dito isso, o ingresso na redação do anteprojeto da atualização do Código Civil há de ser comemorada, haja vista a necessidade de orientações legislativas no tema. Todavia, acredita-se que não se afastarão as resoluções do CFM que, muitas vezes, trazem conceitos técnicos mais assertivos, afora rapidez na evolução conceitual, seja nas tecnologias e métodos, seja no campo social, abarcando novas situações pulsantes das relações parentais.

Assim, no que diz respeito aos pontos de convergência entre as disposições legais e a atual Resolução do CFM (nº 2320/22) nada a se comentar. Necessário serão as ponderações daqueles pontos em que a resolução parece estar mais avançada e dialoga de forma mais linear com a prática médica. Aqui, mais uma vez, a relevância da bioética que colabora com uma visão sistêmica e atenta à complexidade das novas situações.

 

Referências

 

ALVARENGA, Bruno Henrique Andrade. Reprodução Humana Assistida: Aspectos jurídicos na seleção pré-implantacional de embriões. 1ed, Curitiba: Appris, 2020.

 

BRASIL. Senado Federal. Anteprojeto de lei para revisão e atualização da lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil. Relatório final da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Brasília DF: 11 abr. 2024. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/3f08b888-b1e7-472c-850e-45cdda6b7494. Acesso em: 24 abr. 2024.

 

CORRÊA, Marilena Villela. 2001. Novas Tecnologias Reprodutivas: Limites da Biologia ou Biologia sem Limites?. Rio de Janeiro, Brasil: EDUERJ,

 

DANTAS, Carlos Henrique Félix. O princípio jurídico da preservação da diversidade no patrimônio genético humano como um limitador da autonomia no planejamento familiar. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LÔBO, Fabíola. (Org.). Constitucionalização das relações privadas: fundamentos de interpretação do direito privado brasileiro. 1ed.Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 169-184.

 

LAMM, Eleonora. La importância de la voluntad procreacional em la nueva categoria de filiación derivada de las técnicas de reproducción assistida. Revista de Bioética y Derecho. Barcelona, n. 24, p. 76-91, 2012. Disponível em: http://revistes.ub.edu/index.php/RBD/article/view/7610/9516. Acesso em: 08.09. 2024.

 

NETTO, Manuel Camelo Ferreira da Silva e DANTAS, Carlos Henrique Félix. Disponível em: https://editoraforum.com.br/noticias/reproducao-humana-assistida-o-que-ha-de-novo-no-anteprojeto-de-atualizacao-do-codigo-civil-parte-1/; https://editoraforum.com.br/noticias/reproducao-humana-assistida-o-que-ha-de-novo-no-anteprojeto-de-atualizacao-do-codigo-civil-parte-2/. Acesso em 09.09.2024.

 

RAMOS, Ana Virgínia Gabrich Fonseca Freire; CUNHA, Lorena Rodrigues Belo da. Um outro eu: o caso das quimeras humanas. Revisto Bioética y Derecho, Barcelona, n. 38, p. 101-117, 2016. Disponível em: http://scielo.isciii.es/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1886-58872016000300008&lng=es&nrm=iso. Acesso em: 08.09.2024.

[1] CORRÊA, Marilena Villela. 2001. Novas Tecnologias Reprodutivas: Limites da Biologia ou Biologia sem Limites?. Rio de Janeiro, Brasil: EDUERJ,

 

[2] No ponto, o presente estudo utilizou como fonte, entre outros, os artigos Reprodução humana assistida: o que há de novo no anteprojeto da atualização do Código Civil? (parte 1 e Parte 2) de NETTO, Manuel Camelo Ferreira da Silva e DANTAS, Carlos Henrique Félix. Disponível em: https://editoraforum.com.br/noticias/reproducao-humana-assistida-o-que-ha-de-novo-no-anteprojeto-de-atualizacao-do-codigo-civil-parte-1/; https://editoraforum.com.br/noticias/reproducao-humana-assistida-o-que-ha-de-novo-no-anteprojeto-de-atualizacao-do-codigo-civil-parte-2/. Acesso em 09.09.2024.

[3] Sobre o tema, Eleonora Lamm nos ensina: ‘Se está ante nuevas realidades que importan una “desbiologización y/o desgenetización de la filiación”, y en cuya virtud el concepto de filiación ganó nuevos contornos comenzándose a hablar de “parentalidad voluntaria” o “voluntad procreacional”’. LAMM, Eleonora. La importância de la voluntad procreacional em la nueva categoria de filiación derivada de las técnicas de reproducción assistida. Revista de Bioética y Derecho. Barcelona, n. 24, p. 76-91, 2012. Disponível em: http://revistes.ub.edu/index.php/RBD/article/view/7610/9516. Acesso em: 08.09. 2024.

[4] DANTAS, Carlos Henrique Félix. O princípio jurídico da preservação da diversidade no patrimônio genético humano como um limitador da autonomia no planejamento familiar. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LÔBO, Fabíola. (Org.). Constitucionalização das relações privadas: fundamentos de interpretação do direito privado brasileiro. 1ed.Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 169-184.

[5] RAMOS, Ana Virgínia Gabrich Fonseca Freire; CUNHA, Lorena Rodrigues Belo da. Um outro eu: o caso das quimeras humanas. Revisto Bioética y Derecho,  Barcelona,  n. 38, p. 101-117, 2016. Disponível em: http://scielo.isciii.es/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1886-58872016000300008&lng=es&nrm=iso. Acesso em: 08.09.2024.

[6] Sobre o tema ALVARENGA, Bruno Henrique Andrade. Reprodução Humana Assistida: Aspectos jurídicos na seleção pré-implantacional de embriões. 1ed, Curitiba: Appris, 2020.

[7] Anteprojeto de Revisão e Atualização do Código Civil (grifo nosso): “Art. 1.598-A […] “Parágrafo único. A autorização para o uso, após a morte, do próprio material genético, em técnica de reprodução humana assistida, dar-se-á́ por manifestação inequívoca de vontade, por escritura pública ou testamento público, respeitado o disposto no art. 1.629-Q deste Código”.

[8] O art. 1.798 trata ainda: (i) da possibilidade de nomeação pelo juiz de curador para o concepturo em caso de ausência de genitor supérstite ou conflito de interesses com o inventariante ou com os demais herdeiros, para resguardar os interesses sucessórios daquele, até o seu nascimento com vida (§4º); e (ii) que o curador ou genitor sobrevivente podem requerer a reserva do quinhão hereditário pelo prazo de 5 (cinco) anos previsto do §1º (§5º).

[9] Súmula 149 do STF: “É imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não o é a de petição de herança

Laura Affonso da Costa Levy

Advogada; Consultora em Biodireito; Mestre em Bioética; Professora; Membro da Comissão Especial do Direto à Saúde da OAB/RS; Coordenadora do GT pesquisa da Comissão Especial do Direto à Saúde da OAB/RS; Coordenadora do Departamento de Direito e Bioética do IARGS; Membro da Sociedade Brasileira de Bioética – Seccional RS.

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