Enchente e violência: lições aprendidas de outras catástrofes
para IARGS
O uso sistemático de evidências é fundamental para a produção de boas políticas públicas, inclusive na área de segurança pública. Dessa forma, a análise das evidências sobre o impacto de outros desastres sobre os indicadores de segurança e sobre os fatores de risco para a violência podem nos auxiliar a “prever” o futuro com algum embasamento. E, dessa forma, podemos tomar medidas preventivas com maior precisão e efetividade, evitando que novas tragédias sociais venham a ocorrer, em decorrência da catástrofe climática sofrida pelo RS em 2024 e, infelizmente, das próximas que virão.
Uma grande revisão de estudos (Rezaeian, 2013)[1] sistematizou estudos que analisaram os indicadores de violência após a ocorrência de grandes desastres naturais ocorridos entre 1976 e 2011. A lista de catástrofes infelizmente é grande, passando pelos furacões Andrew, Katrina e Floyd nos EUA, até terremotos em Taiwan, Turquia e o grande tsunami no Sri Lanka e as enchentes de Bangladesh.
A análise dos 31 estudos deixa clara a tendência de que, após as catástrofes naturais, ocorram aumentos nos índices de violência. No entanto, mais clara ainda é a tendência de um agravamento muito agudo em termos de saúde mental, levando a uma aceleração muito grande nos índices de suicídio.
Segundo o estudo, as mulheres, crianças, idosos, pessoas de baixa renda – que, em geral, são as mais impactadas em todos os sentidos pelos desastres naturais, também são mais vulneráveis ao desenvolvimento de sofrimento mental ou a serem vítimas de violência após as catástrofes.
O estudo aponta que existem três grandes vetores que provocam esse aumento de violência: i) O aumento da raiva, da frustração e o estresse se transformam em violência autoinflingida e violência interpessoal, em especial em violência doméstica; ii) Aumento de pobreza, do desemprego em especial entre jovens adultos que acresce a vulnerabilidade a grupos violentos; iii) Perda de rendimento e evasão escolar e de acesso a programas para crianças e adolescentes que aumenta a vulnerabilidade a grupos violentos.
Dessa forma, podemos perceber que o risco de aumento dos índices de violência pode ocorrer ao longo de três gerações diferentes:
- A curto prazo através do aumento da atividade de grupos violentos que já existem e de violência interpessoal;
- A médio prazo pelo ingresso de novos homens jovens que perderam suas perspectivas profissionais e se envolvem com atividades criminais;
- A longo prazo em razão do agravamento da situação de saúde mental das crianças atualmente em idade escolar e que acabam perdendo o vínculo com a escola e a perspectiva no mercado de trabalho.
No entanto, quando analisamos a situação criminal do estado, a primeira alternativa, de aumento de índices de violência de curto prazo, parece ser aquela de menor risco. Em razão de políticas adequadas de segurança, em especial o Programa RS Seguro, que implementou um forte modelo de monitoramento integrado de indicadores de criminalidade, o estado tem vivido uma forte queda em todos os indicadores de criminalidade ao longo dos últimos cinco anos, com a queda de 42% dos homicídios, entre 2017 e 2023, e de mais de 60% nos roubos no mesmo período, segundo dados da SSP/RS.
Além disso, nos últimos 12 meses antes da tragédia, o Departamento de Homicídios (DHPP) vinha capitaneando, de forma totalmente integrada com a Brigada Militar e com a Susepe, a implantação de uma nova estratégia chamada de “Dissuasão Focada”, que vinha conseguindo novas quedas recordes nos índices de criminalidade na região metropolitana de Porto Alegre, na ordem de mais de 60%.
Nesse momento, então, o estado vem obtendo grande capacidade para controlar os conflitos entre os grupos violentos e, assim, conseguindo reduzir fortemente os indicadores de homicídios, além de aprimorar suas estratégias de policiamento ostensivo e de investigação, o que também provoca grandes quedas nos índices contra o patrimônio.
Esse cenário local positivo e as evidências internais que destacam o aumento nos índices de violência a curto prazo são uma tendência encontrada em diversos locais, mas não em todos onde foi analisado. Muitas vezes, esse aumento foi até mesmo pequeno ou apenas ao longo da decorrência da catástrofe, logo, podemos afirmar que o risco de aumento dos índices de violência a curto prazo é pequeno.
A médio prazo, a variável econômica parece que será muito decisiva para garantir que os jovens, que estão entrando nesse momento no mercado de trabalho, não percam completamente suas possibilidades e possam vir a migrar para uma atividade criminal e, assim, fazer os índices aumentarem.
E, nessa perspectiva, podemos observar um conjunto muito relevante de medidas que estão sendo tomadas pelo Governo Federal, Estadual e pelos municípios que, embora possam não ser suficientes, parecem indicar um nível de resposta jamais visto e com velocidade importante.
No entanto, é na terceira geração, aquela que atualmente ainda é formada por crianças e adolescentes nas escolas, que a enchente pode vir a provocar os maiores danos, segundo as evidências e onde menos podemos ver a mobilização de esforços estruturados tecnicamente e com o devido suporte financeiro.
Outros estudos mais recentes vêm mostrando que as evidências sugerem que entre um terço e metade de todas as pessoas expostas a desastres naturais acabarão por desenvolver sofrimento mental, por exemplo, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão, transtornos de ansiedade etc.
E o grupo mais atingido por esses transtornos são as crianças. Pesquisas feitas após os furacões Andrew, Floyd, Katrina e Gustav, nos EUA e das enchentes no México em 1999, concluíram que crianças e adolescentes expostos a graves danos provocados por catástrofes naturais desenvolvem graves problemas de saúde mental e comportamentos de risco, que podem aumentar entre 40% a 95% sintomas, como depressão, ansiedade, Síndrome de Stress Pós-Traumático, aumento de uso de drogas e aumento a exposição de violência comunitária e externalização de comportamentos violentos, como agressividade, raiva e autodestruição e graves problemas no desenvolvimento escolar (Shaw et al., 1995; LaGreca et al., 1996; Norris et al. 2002; Baumeister, 2008; Salloum et al, 2011), sendo que aquelas que tiveram suas casas inundadas sofrem os maiores impactos (Russoniello, et al., 2002).
Um estudo destaca que “O número de pais que relatam problemas para levar os filhos à escola mais do que triplicou após o deslocamento. As taxas de violência entre parceiros íntimos (um grave fator de risco para a violência juvenil) pós-deslocamento foram três vezes superiores às taxas de base dos EUA.”
Enquanto vemos – felizmente – bilhões de reais sendo destinados para a reconstrução de pontes e estradas, indústrias e moradias, é muito mais raro ver algum projeto estruturante sendo pensado para a “reconstrução” da saúde mental de crianças e adolescentes e os seus vínculos com escolas e projetos de vida positivos.
Assim como os projetos de novas pontes serão feitos com a melhor engenharia, esses programas de prevenção também precisam, necessariamente, ser feitos com base nas melhores evidências sobre o que funciona e o que não funciona nessa área, sem ações desestruturadas e não embasadas.
Felizmente, a cidade de Lajeado, uma das mais atingidas pelas últimas três cheias, vem realizando, desde antes da pandemia, um dos maiores programas de prevenção à violência já feitos no país, englobando grande programa socioemocional no Ensino Infantil, um grande programa de educação socioemocional para todas as crianças do Ensino Fundamental, com 180 sessões ao longo dos nove anos, além de desenvolver uma forte cultura restaurativa por meio de círculos da paz.
Que o exemplo de Lajeado possa orientar todas as demais cidades a investirem naquilo que é mais importante para qualquer sociedade: as pessoas, em especial nas crianças e nos adolescentes, pois caberá a eles não só reconstruir o estado, como lidar com um mundo onde a mudança climática será a dura realidade.
[1] Rezaeian M. The association between natural disasters and violence: A systematic review of the literature and a call for more epidemiological studies. J Res Med Sci. 2013 Dec;18(12):1103-7. PMID: 24523804; PMCID: PMC3908534.
Alberto Kopittke
Associado do IARGS, Doutor em Políticas Públicas pela UFRGS e Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. É Diretor Executivo do Instituto Cidade Segura que já desenvolveu os planos de segurança das cidades de Pelotas (RS), Niterói (RJ), Caruaru (PE), Rio Grande (RS), entre outras. Presta consultoria para o BID na área de Segurança Cidadã