19/06/2024 07h00 - Atualizado 19/06/2024 07h52

A interpretação favorável ao consumidor como ferramenta de diminuição da vulnerabilidade em épocas de calamidade

Por Terezinha
para IARGS

A concepção tradicional de contrato centraliza-se na ideia de autonomia da vontade como única fonte contratual. De acordo com essa concepção, a liberdade de forma é praticamente plena e somente encontra obstáculos na lei, que na maior parte das vezes serve para protegê-la e reafirmar sua relevância. Os contratos, dessa forma, têm força obrigatória e devem ser cumpridos como foram estabelecidos em virtude da grande importância e proteção atribuída à autonomia da vontade pelo ordenamento jurídico baseado nas ideias tradicionais.

Como afirma Betti[1], o indivíduo regula por si seus interesses e a lei garante e protege a autonomia privada. O negócio jurídico encontra-se na sociedade a partir de sua forma rudimentar, com a necessidade de troca de mercadorias e desenvolvimento da vida na sociedade e têm como gênese justamente a vida de relações, materializando-se por meio dos atos que os particulares praticam no exercício da iniciativa privada.

No âmbito das relações de consumo, entretanto, os parceiros negociais não estão em situação de igualdade. Como se sabe, a sociedade de consumo tem como características a intensa produção, circulação e distribuição de produtos; a contratação em massa é a regra geral, há extensa cadeia de intermediários entre o produtor do bem e quem consome.

Há crescimento das práticas de marketing e concessão de crédito. A distância entre os polos da relação expande-se cada vez mais. A comunidade de consumo é anônima e complexa, o consumidor não conhece quem produz o bem, não sabe como funciona o processo de elaboração, produto e comercialização dos produtos, não tem conhecimento sobre quem o fabrica ou monta suas partes, não sabendo, muitas vezes, quem acionar em caso de ocorrência de dano.[2]

Como destaca Marques, os contratos são feitos por meio de máquinas, sem pessoas, em um sistema de contratação em silêncio, sem diálogo, como denominado pela doutrina europeia.[3]Essa nova realidade de contratação pode ser descrita e materializada pelos contratos de adesão e pelas condições gerais dos contratos, tendo em vista a necessidade de contratação em massa para que possam ser atendidos todos os consumidores.

Ao explicar a evolução dos contratos, Alpa refere que não apenas novas figuras ou regulamentação de novas técnicas caracteriza esse fenômeno. A evolução interna da concepção de contrato deu-se juntamente com a externa. Mudou-se também o modo de contratar, a contratação é feita em massa, em blocos, muitas vezes por meio de visitas domiciliares ou por meio de aplicativos tecnológicos.[4]

Nesse contexto de intensificação da vulnerabilidade, ganha importância a necessidade de interpretação contratual pró-consumidor, que se relaciona com a proteção de seus interesses e expectativas. Inspirado no artigo 1.370 do Código Civil italiano, o artigo 47 do Código de Proteção e Defesa do Consumidor instituiu como princípio geral a interpretação pró-consumidor. O dispositivo recebe influência do artigo 4º, III do mesmo Código, que dispõe sobre o princípio da boa-fé. Essa ideia de proteção do consumidor, sujeito vulnerável da relação, é baseada no mandamento constitucional de proteção, disposto no artigo 5º, XXXII da Constituição da República. Os artigos 1º e 7º do CDC também iluminaram a determinação da interpretação favorável.

Trata-se, todavia, não de simples interpretação a favor dos interesses do consumidor, mas da imposição de aplicação de normas em diálogo e integração de eventuais lacunas, da lei ou do contrato. Deve ser considerada a primazia da norma favorável, uma vez que a justiça contratual objetiva a aplicação concreta da norma protetiva do consumidor e a interpretação das normas em diálogo.

A interpretação pró-consumidor é ume regra geral do sistema de direito brasileiro, público e privado que no CDC consubstancia-se por meio da norma do art. 47, mas nela não se exaure. Desde Roma conhece-se a interpretação especial conforme o papel do sujeito no contrato. No direito brasileiro, o artigo 112 do Código Civil traz regra que privilegia mais a intenção do que sentido literal da linguagem.  O artigo 423 do CC, por sua vez, traz regra de interpretação mais favorável ao aderente, em caso de cláusulas ambíguas ou contraditórias em contrato de adesão.

Já o artigo 47 do CDC representa uma evolução da temática, pois beneficia todos os consumidores em todos os contratos. É papel da jurisprudência identificar se a cláusula é ou não contraditória ou ambígua. Como explana Marques, há no Código de consumo italiano disposição que permite aos julgadores agirem de ofício para proteger os consumidores contra as violações de seus direitos. A referida lei também traz uma vantagem para o consumidor pois determina uma regra de hermenêutica que estabelece que apenas o consumidor está legitimado para alegar a nulidade de proteção.[5]

Na Alemanha a norma de interpretação aplicável aos contratos de consumo amplia a visualização da relação colocando luz nos deveres anexos ao estabelecer que as relações obrigacionais podem instituir que cada uma das partes passe a ter em conta os direitos, o patrimônio e os interesses da outra. No direito brasileiro, em especial no que tange às relações de consumo, a aplicação do princípio da boa-fé materializa-se, por exemplo, nas disposições sobre as práticas comerciais, que trazem critérios hermenêuticos e dão diretrizes para a identificação do verdadeiro conteúdo vinculante do contrato.[6]

A Interpretação contextual pró-consumidor deve procurar o sentido e o alcance da vontade expressa no contrato e em seu contexto negocial, considerando-se a finalidade usual dos contratos de consumo, nas expectativas normais e esperadas para o contrato em si. Considerando-se os atos e informações anteriores à conclusão do negócio como juridicamente relevante, formando o todo a ser considerado, a ser interpretado. O conteúdo do contrato de consumo não é somente o que está escrito, mas também o que foi informado ao consumidor.[7]

No atual contexto de dificuldades trazidas pelas enchentes no Rio Grande do Sul, a interpretação favorável ao consumidor deve ser levada em consideração pelo Poder Judiciário nos casos de necessidade de revisão contratual ou nas ações de responsabilidade civil relacionadas à calamidade. Muitos consumidores não terão condições, por exemplo, de adimplir suas dívidas de consumo ou cumprir seus contratos, surgindo a necessidade de negociação, nos termos as Lei do Superendividamento[8], que alterou artigos do CDC ou outros tipos de ações administrativas ou judiciais, nas quais deve estar sempre presente a necessidade de tutela

[1] BETTI, Emílio. Teoria geral do negócio jurídico. Tradução de Servanda Editora. Campinas, SP: Servanda Editora, 2008. p. 74-79

[2] PASQUALOTTO, Adalberto. Fundamentalidade e efetividade da defesa do consumidor. Direitos Fundamentais e Justiça. Porto Alegre: HS Editora, 2009, p.66-100

[3] MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais.7. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 74

[4] ALPA, Guido. Nuevas fronteras del derecho contractual. THĒMIS-Revista de Derecho, v. 38, Lima: Pontifícia Universidade Católica do Peru, p. 31-40, 1998.  Disponível em:< http://revistas.pucp.edu.pe/index.php/themis/article/view/10308/10754 > Acesso: agosto de 2016.

 

[5] MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais.7. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 961

[6] Exemplos: contrato de cartão de crédito assinado em branco, preenchido pelos bancos; Contrato de seguro de vida em grupo preenchido pelo empregador ou terceiro sem realização de exames para averiguar doença prévia.

[7] KRETZMANN, Renata Pozzi. Informação nas relações de consumo: o dever de informar do fornecedor e suas repercussões jurídicas. Belo Horizonte: Letramento, 2019.

[8] Lei 14.181 de 2021.

Renata Pozzi Kretzmann

Advogada atuante no âmbito do Direito Civil, especialmente Direito do Consumidor e Proteção de Dados Pessoais. Mestre em Direito do Consumidor e Concorrencial pela UFRGS, especialista em Direito dos Contratos e Responsabilidade Civil pela Unisinos e pós-graduada pela Ajuris.

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